Pinochet, traição e embuste econômico

Publicado em 12.12.2006 em Folha de São Paulo

Os sinais foram dados ainda na transição, antes da posse de Salvador Allende. O general René Schneider, relacionado com a Democracia Cristã, foi assassinado por um comando que se dizia de ultra-esquerda. Quem escolhia o presidente no Chile, sempre e quando não alcançava a maioria absoluta nas urnas, era o Congresso. A tradição era escolher o mais votado. Com Allende poderia ser diferente.

Contatos feitos e acordo firmado: a estrutura de organização interna das Forças Armadas seria intocável. Dois anos depois, o quadro era de instabilidade. Proteger a zona de Santiago era fundamental, pois representava uns 40% da população chilena. O que se dizia é que o general Pinochet era de confiança por seu relacionamento com um setor socialista. Era militar de confiança para trabalhar e apoiar o general Carlos Prats, comandante do Exército de Allende, de vocação democrática (assassinado em Buenos Aires a mando de Pinochet em 1974).

A certeza da boa escolha veio na tentativa prematura de golpe -uns 30 dias antes do 11 de Setembro-, conhecida por “Tancazo”. Vá a uma vídeolocadora e peça a “Batalha do Chile”. Busque entre os DVDs o dos tempos próximos ao golpe.
Veja e ouça Pinochet reprimindo o golpe e caminhando em frente ao palácio La Moneda, acompanhado do ministro da Defesa, José Tohá, amigo e de total confiança de Allende.

Momento da traição
Sua expressão e suas palavras pareciam garantir o acerto da sua escolha. O momento da traição não se conhece, mas a probabilidade de ter aderido a um golpe em gestação é muito grande. Continue vendo o DVD e fique atento à locução dele no momento do golpe. Sinta a traição nas palavras. A resistência esperada por muitos não veio, desmistificando o que se dizia. A Marinha sabia disso quando, alegando tráfico de armas pela esquerda, ocupou Valparaíso e outros locais e fábricas e vasculhou tudo. Dizem que para comprovar o que se soube após o golpe. Mas a inexistência de qualquer exército preparado por Allende não serviu para nada. Por um longo tempo assassinava-se por qualquer pretexto e cometiam-se as atrocidades comprovadas depois.

Ingênuos
Alguns ingênuos relevam a barbárie de Pinochet, justificando-a pelas mudanças na economia que explicariam a situação exemplar do Chile de hoje. Outro embuste. A economia foi entregue aos mais ortodoxos monetaristas da escola de Chicago. Aplicou-se o receituário mais horizontal possível. As empresas quebraram, a economia desintegrou.
No período 1950-1971, o PIB por habitante do Chile cresceu 2% ao ano. Entre 1972 e 1983, o PIB por habitante decresceu à taxa de 1,1% ao ano. Insisto: 1,1% ao ano, negativos. Em 1970, a relação do PIB por habitante do Chile em relação ao dos EUA era de 35,1%. Em 1992, era de 33,6%. Isso depois de um forte crescimento nos últimos anos de Pinochet.
Dos 17 anos de ditadura, o período de desenvolvimento econômico veio quando os conselheiros de Pinochet sugeriram que ele saísse de nomes ortodoxos e apostasse num economista brilhante que trabalhava na Oficina de Planejamento e havia participado, assessorando, da área da Previdência Social.
A propaganda de Pinochet, depois de uma queda abissal do PIB nos primeiros anos, apresentava números positivos que nada mais eram que uma reação ao abismo. Depois de 12 anos de fracasso, assumiu o Ministério da Fazenda/Economia Hernán Buchi (que os chilenos pronunciam Birri). Com poderes plenos, atuou como uma espécie de premiê econômico.

Transformações
Foram nesses cinco anos sob o comando de Buchi que a economia chilena viveu as transformações que conhecemos: reforma do Estado, focalização nos setores com vantagem comparativa, abertura da economia, desvalorização para estimular as exportações, controle de capitais especulativos, gestão monetária e fiscal flexíveis (a reforma previdenciária custou 10% do PIB).
Quando veio a primeira eleição pós-ditadura, com a Concertação entre democrata-cristãos e socialistas apresentando um político experimentado, Patricio Aylwin, Pinochet não tinha um nome para apresentar. Recorreu a Buchi e o lançou sem nenhuma experiência política anterior e com seu cabelinho de corte à príncipe valente.

Assim mesmo, Buchi obteve 40% dos votos. Confundir o desastrado período Pinochet com os últimos cinco anos dos 17 em que ele mandou e que, no fim, apelou para outra direção econômica, assim como querer atribuir ao período ditatorial uma façanha econômica é no mínimo outra impostura. Hoje, Buchi dirige seu Instituto Liberdade e Desenvolvimento e continua prestando serviços ao Chile com seu talento.

CESAR MAIA é prefeito do Rio e viveu no Chile entre 1969 e 1973

Cleptocracia

Publicado em 30.11.2006 em Folha de São Paulo

A série de fatos que envolvem governos e políticos introduz um conceito novo na manipulação do setor público brasileiro.

Durante décadas, os pesquisadores desenvolveram conceitos como patrimonialismo e clientelismo. O primeiro tratava de explicar as relações do setor privado com os governos, como fornecedores privilegiados ou como destinatários de vantagens e privilégios. Aos políticos e funcionários cabem as comissões. O segundo desenhava um quadro de troca de pequenos favores por votos.

É claro que são conceitos que continuam a ser aplicados e até se sofisticaram, tanto pelas oportunidades que o mundo financeiro oferece quanto pelo cardápio de assistencialismo que, hoje, os governos oferecem.

Nos últimos anos, contudo, surgiu uma modalidade nova. É um elenco de alternativas de desvio de dinheiro público, por iniciativa autônoma de políticos e dirigentes de governos, com a finalidade de financiar as máquinas políticas, enriquecendo-se ou não. A criatividade não tem mais limites. Todas as semanas surge um sistema novo. E não se trata de fato novo, mas de sistemas novos.

O “valerioduto” é um sistema em que a empresa que doava recursos aos políticos prescindia de fazê-lo diretamente e usava uma agência de publicidade como veículo. Esta, por sua vez, cobrava comissão como se fossem serviços formais da agência. Um delito quase perfeito, se do outro lado da boca do caixa os recebedores tivessem como registrar o que receberam.

Esse sistema introduziu duas novidades. Uma delas foi a tentativa de comprar a maioria em bloco, no Legislativo. A outra foi o aperfeiçoamento das mensalidades defensivas -já existentes em alguns Legislativos regionais e locais- por parte de setores patrimonialistas que não querem correr riscos no Legislativo. Uma espécie de antecipação ao achaque.

Lembre-se que, ao contrário, as ordens de pagamento, ou “valerianas”, vinham centralizadas desde os gabinetes do entorno palaciano. Outro sistema, porém de mais difícil documentação, é o uso dos fundos de pensão em operações financeiras de vários tipos.

O mapa desse sistema é descrito no mercado pela identificação dos gestores políticos das operações, articulados a corretores determinados, numa espécie de divisão do trabalho preestabelecida entre partidos ou setores de partidos que estão no poder. Outro mais conhecido é o caso dos sanguessugas. Pela tipologia, deve ter se repetido em outros ministérios, empresas ou órgãos. É o controle dos fornecimentos, articulados com emendas parlamentares e de execução autorizada pelos mesmos gabinetes do entorno palaciano. Se alguém tinha dúvida do comando central, deixou de ter quando apareceu o caso do dossiê.

Há, ainda, outro novo sistema de grande capilaridade: a criação generalizada de ONGs por parte de políticos, registradas ou não em seus próprios nomes ou no de amigos e parentes.

Atropelando concorrência, concurso público ou qualquer critério de prioridade ou transparência orçamentária, essas ONGs passam a ser abastecidas por empresas ou ministérios, de forma a financiar partidos ou grupos dentro dos partidos.

Esse é o mais interessante, pois não há a necessidade de interveniência corruptora do setor privado. É um processo interno ao Estado, com recursos públicos desviados para fins políticos e político-privados, isto é, uma corrupção intra-estatal-política.

Fiquemos por aqui e deixemos aos pesquisadores a tarefa de ampliar com mais exemplos. Permito-me sugerir para este novo conceito um nome: cleptocracia, ou seja, a corrupção como forma de governo ou modo de produção política.

E não se trata de querer dar a nenhuma instância de governo o privilégio de ter o monopólio da cleptocracia. Os casos das máfias do lixo, os casos Santo André e Rondônia, a enorme probabilidade de uma prisão recente de deputado eleito identificar um esquema quase perfeito de transferência de dinheiro de e para fora, por meio de empresas criadas para este fim, via sub/superfaturamento ou operações financeiras, e tantos filhotes, como no caso das ONGs e subsistemas do tipo sanguessuga estão por aí…

Cesar Maia, economista, é prefeito do Rio de Janeiro pelo PFL