Indivíduo e política

Publicado em 02/01/2010 em Folha de São Paulo

CURIOSA CONVERGÊNCIA entre populismo, liberalismo tradicional e marketing político. Para eles, quem faz a história é o indivíduo, de acordo com a sua vontade. Assim se acha o líder populista, que se considera o próprio movimento. Já na lógica da análise liberal, tradicional, a história se confunde com os indivíduos que lideram os processos. As circunstâncias ou são eles mesmos ou são aleatórias.

Sempre é bom lembrar um repetido trecho de Marx no início do “18 de Brumário” (1851): “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; nem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas legadas e transmitidas pelo passado”.
Se não bastasse esse binário simplificador da história, nas últimas décadas, a tecnologia publicitária aplicada às campanhas eleitorais maximizou a função do indivíduo.
Por vezes potencializando uma de suas características e, não poucas vezes, criando um personagem ao fantasiar o candidato com esse figurino. A cada dia é maior o destaque do indivíduo como a razão da politica. Por isso a obsessão em controlar a imprensa, na medida em que a individualização da liderança só consegue ver a imprensa como competidor. O método marxista, que reduzia o papel do indivíduo a mero fantoche das classes sociais abstratas, se esvai, mas não no caminho da assertiva do “18 de Brumário”. Quando aquelas “se foram”, ficaram os líderes e o culto à personalidade.
A mercadologia política norte-americana, ao dar à publicidade a razão do sucesso eleitoral, minimizou as circunstâncias e maquiou os personagens. A tecnologia audiovisual exacerbou o papel do indivíduo e presidencializou as eleições no parlamentarismo. São os governos de líderes populistas os que mais tendem a intervir na imprensa. São os líderes produzidos por marketing os que são atraídos pelo populismo e pela intervenção na mídia. Ou que, alternativamente, gastam milhões com publicidade, convencidos de que esse é o caminho da popularidade. Quando isso não ocorre, a culpa é da imprensa.
Esse foco na pessoa dos chefes de governo tirou visibilidade de seus assessores, possíveis sucessores.
Lula é exemplo disso. Por um lado, sente cócegas para intervir na mídia. Não podendo, gasta bilhões. E, naturalmente, sua candidata o é por decisão pessoal. Ela nunca disputou eleição, não tem currículo no partido. É levada como andores da romaria de N.Sra. da Pena, em Vila Real, para que seja percebida.
As campanhas eleitorais se resolvem em si mesmas. Por isso o candidato da oposição não tem pressa. A imprevisibilidade aumenta, a politica se torna inorgânica, representantes se descolam de representados e os riscos relativos ao governo eleito se multiplicam.

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CESAR MAIA escreve aos sábados nesta coluna.

Últimas bolivarianas!

Publicado em 09/01/2010 em Folha de São Paulo

EVO MORALES , reeleito presidente da Bolívia, determinou a prisão de Manfred Villas, ex-oficial do Exército, ex-governador de Cochabamba e seu adversário mais próximo, com uns 20% de votos. Reyes já não estaria no país.

Em 1º de janeiro, foram presos três chefes de polícia e destituídos os diretores de Inteligência e da Interpol. Nesse mesmo dia, Morales informou que as decisões da justiça indígena serão inapeláveis. O projeto de lei, preparado pelo Ministério da Justiça, diz que “as decisões da jurisdição indígena são de cumprimento obrigatório, têm o caráter de coisa julgada e não poderão ser revistas”. A base é a Constituição aprovada em fevereiro de 2009. A justiça indígena só existe por tradição oral. Os juristas consideraram esse ato uma aberração jurídica.
Daniel Ortega, num pacto antigo com o ex-presidente (na época em prisão domiciliar), mudou a Corte Suprema da Nicarágua e dividiu-a com aquele. Agora conseguiu que essa corte anulasse dispositivo constitucional que proibia a reeleição. A oposição não reconhece a decisão. No dia 3 de janeiro, a imprensa destacou a ausência do presidente Ortega há 18 dias. Em seu último ato, orientou o Exército a ter calma nas operações contra o narcotráfico na comunidade indígena de Walpa Siksa, corredor para o Caribe. A ausência de Ortega não admira ninguém, pois é sua esposa, Rosário Murillo, que governa de fato.
Rafael Correa, presidente do Equador, abriu o ano denunciando uma suposta conspiração “na qual estão envolvidos certos elementos das FFAAs vinculados aos Gutiérres”, líderes do Partido Sociedade Patriótica -PSP. E chamou ao apoio popular para defender o regime. Correa disse que, a partir deste mês, começarão uma série de protestos da União dos Educadores e da Confederação de Nacionalidades -Conaie. “Nós não temos oposição, mas obstrução, conspiração e desestabilização, mas lhes temos dado com a pedra nos dentes, porque o Equador profundo está contente”, disse.
Chamou o Movimento Popular Democrático (MPD) de partido franco-atirador. Questionou a Conaie, dizendo que essa organização indígena “sempre se presta para os jogos da direita”.
Chávez fechou o ano apresentando os equipamentos militares que comprou da Rússia. Disse que está pronto para a guerra. Formalizou as Milícias Bolivarianas como vetor das FFAAs. Lugo, presidente do Paraguai, contido pelo Parlamento, conseguiu a anulação dos atos de 2007 de destituição de dois ex-ministros da Corte Suprema. O Senado não reconheceu. Novos filhos do ex-bispo continuam a aparecer -e fala-se em 17. E, por aqui, espera-se que o decreto atropelando a Lei de Anistia seja apenas mais uma trapalhada.

Resistência parlamentar

Publicado em 16/01/2010 em Folha de São Paulo

AS ELEIÇÕES parlamentares no Brasil ocorrem num quinto plano, como se não tivessem importância. Minimizadas pela cobertura da imprensa, ridicularizadas pelas aparições na TV e não alcançadas pelas pesquisas, os curiosos só vão descobrir o resultado da eleição proporcional com a publicação dos nomes pelos jornais no dia seguinte. Ali, um ou outro garimpa o seu candidato.

E os analistas tratam, então, graficamente, da composição do novo Congresso. Num quadro pluripartidário inorgânico como o brasileiro, se tem dito: “tanto faz”. Afinal, nenhum partido chega perto dos 20% na Câmara dos Deputados. E o Executivo contrata a sua maioria.
Mas a atenção hoje deveria ser outra, com os exemplos que correm pela América Latina, que sinalizam riscos e, assim, a necessidade, em 2010 e daí para a frente, de se dar atenção muito maior às eleições parlamentares.
Na Venezuela, no Equador e na Bolívia, os políticos, os partidos, os intelectuais, os analistas e a imprensa concentraram suas atenções no líder populista, nas pesquisas indicando a sua popularidade, nos plebiscitos que propõem, nas reeleições. Com isso, os Parlamentos foram desossados. Na Venezuela, na eleição parlamentar anterior, os partidos de oposição decidiram não concorrer, e a Câmara passou a ser, literalmente, de partido único.
Com isso, esses governos passaram a tratar a lei como um ato administrativo seu e avançaram sobre as instituições, o direito de propriedade e as liberdades individuais, de expressão e de imprensa. A exceção é o Paraguai. Com a vitória inevitável de Lugo, os partidos concentraram-se na formação de um Congresso de resistência. E é exatamente aí onde as extravagâncias chavistas não conseguem avançar. Se os Kirchner se coçavam na busca de uma variante do chavismo, ao perderem, nas eleições de 2009, a maioria na Câmara e Senado, essa aventura passou a enfrentar resistências.
Aqui, os dois decretos do governo Lula, um atropelando a Lei de Anistia, outro, um pout-pourri de excentricidades autoritárias, acenderam a luz vermelha sobre as eleições de 2010. A esquerda autoritária, pós-mensalão, perdeu a hegemonia para o sindicalismo no partido e no governo. E abriu para esse as delícias dos fundos e dos conselhos de administração. E agora recobra força, mostra suas unhas afiadas com um “programa de governo”, quem sabe para aplicar em 2011.
Os distraídos continuarão a concentrar toda a sua atenção na eleição presidencial. No dia seguinte, lerão nos jornais o nome dos parlamentares eleitos. Se antes tanto fazia, agora não. Eleger um Congresso com força suficiente para resistir a aventuras chavistas é tão importante quanto a própria eleição presidencial: daqui para a frente.