Herança perversa

Folha de São Paulo 19/02/2001

As primeiras medidas do governo Dilma em relação aos cortes nos gastos públicos, ao câmbio, aos juros e à política externa são apresentadas como herança recebida do governo Lula. São vistas como produto das distorções eleitorais relativas aos anos de 2009 e 2010. Por isso, sua abordagem cria no governo um certo constrangimento.

Mas nada disso é problema. Ao contrário. Dilma aparece como mais centrada, mais racional e mais dedicada às questões administrativas, o que a eleva ao andar de cima do meio acadêmico, empresarial, jornalístico e político.

Com todos os desdobramentos relativos a essa herança, ela certamente não é o problema que Dilma e seu governo terão de enfrentar.

Todas as pesquisas nos últimos anos, em relação às funções do governo, mostraram uma avaliação mais próxima do regular. Mas as mesmas pesquisas mostraram uma avaliação ótima de Lula.

É como se o personagem que criou, inserido nas massas e confundido com elas, nada tivesse a ver com seu governo.

Até o fato de a crise financeira de 2008/2009 não ter chegado aos países emergentes como chegou aos desenvolvidos foi percebido como efeito Lula.

Seus atos são sempre confundidos com seu populismo retórico. As inaugurações de pedras fundamentais eram percebidas como realizações, e a “caravana holiday” de seus comícios inaugurava nada, mas que -em outras partes do país, via satélite- era percebido como tudo.

Com o mensalão de 2005, Lula abandonou o uniforme de líder operário urbano e incorporou o jeito de líder retirante num populismo protorreligioso que tão bem se conhece Brasil afora, desde a segunda metade do século 19.

Essa condição é que é a herança perversa. Nem Dilma nem nenhum outro nome cogitado no processo pré-eleitoral desde 2008 teria condições de parecer-se com o personagem criado e mitificado por Lula.

Todos sabem que o ano de 2011 será um ano de desconforto social, com a economia crescendo metade da de 2010, com inflação acima da meta, especialmente nos alimentos, e os juros mais altos. Há ainda a economia europeia desacelerada, a crise nos países árabes e seus reflexos etc e tal.

Esse desconforto social se acentuará com a menor capacidade de compensação pelos Estados e municípios, maior desemprego, alguma reversão de expectativas e muito maior assanhamento dos políticos da base aliada e da oposição.

E o imaginário popular, tão acostumado ao estilo anterior, vai suspirar nas esquinas: “Ah, com Lula isso não estaria acontecendo”. Nesse momento, a popularidade de Dilma despencará. E Lula correrá em seu auxílio, piorando a situação. Como disse Bertolt Brecht: “Infeliz a nação que precisa de heróis”

Os cortesãos

Fonte Folha de São Paulo
A disputa de cargos, em todos os níveis, e de benesses governamentais, entre os partidos que apoiam o governo federal, remete ao sistema de cortes das monarquias nos séculos 16 e 17. As cortes palacianas viviam no entorno dos reis, disputando cargos, concessões e favores.

Os homens fortes das cortes eram aqueles que, por proximidade com reis e rainhas, conseguiam para seus apaniguados decisões que lhes davam poder e riqueza. As cortes dos vice-reis na América hispânica aprofundaram o sistema. As “encomiendas”, por exemplo, eram concessões de caráter feudal com cessão de terras e seus índios, para o uso econômico e deleite dos “encomenderos”. Outro exemplo era o “corregimiento”, uma região onde o “corregidor” tinha todos os poderes e onde esse poder até se comprava.

Os vice-reis da Espanha no Peru e no México (Nova Espanha), nos séculos 16 e 17, com status de “alter ego” do rei, punham e dispunham sobre tais concessões. Em torno deles, construíram-se amplas cortes que se dividiam em funções administrativas e de proximidade com o vice-rei.

Era tão bom, que fazer parte do séquito de um vice-rei nomeado na Espanha tinha preço. A orientação básica da coroa era prestigiar os chamados “beneméritos”, ou seja, os que chegaram na frente para conquistar e colonizar.

Mas o que ocorria eram nomeações e concessões ao grupo íntimo do vice-rei ou aos indicados por ele. Os abusos chegaram a tal ponto que, em 1619, o rei Felipe 3º regulamentou a ocupação de cargos, proibindo empregar e fazer concessões a parentes até o quarto grau.

Em 1660, Felipe 4º repetiu a mesma resolução, pois as cortes no Peru e na Nova Espanha não haviam dado a menor bola para a determinação.

A solução no século 18 foi tirar poder dos vice-reis e transformá-los em burocratas do Estado espanhol.

O que vemos por aqui é uma adaptação disso. Um partido tem direito de nomear em órgãos que passam a ser suas “encomiendas”. O quoteo de ministérios, órgãos e empresas estatais são como “corregimientos”. O líder de bancada de prestigio é aquele que, por proximidade com o poder ou por intimidação, abre amplos espaços para os seus protegidos. Mesmo que indiretamente, isso tudo tem um preço.

Não tão abertamente como as vagas no séquito dos vice-reis, mas de forma mais intensa e rentável. Como nas cortes, vai se criando um hábito.

E só se lembra do método quando os desvios são publicados. Os servidores profissionais independentes vão ficando de lado, como ocorreu aos “beneméritos”. E -da mesma forma que os Felipes 3º e 4º- não será por falta de leis, decretos e resoluções. Enquanto isso o Estado vai ficando caro, improdutivo, ineficiente, e algumas vezes, corrupto.

Folha de coca

Folha de São Paulo 05/02/11

A publicidade do governo boliviano diz que “folha de coca não é droga”. E que droga é sua transformação química em cocaína. O uso da folha de coca vem de longe. Nem sempre seu uso foi considerado assim, trivial.
Bartolomé Arzáns em seu “Relatos de la Villa Imperial de Potosí” (Plural Editores, Bolívia), escrito no início do século 18, num capítulo, destaca a folha de coca e seus efeitos, (“1674 – Da erva chamada coca”, pág. 353).

Potosí pertencia ao vice-reino do Peru. Sua montanha de prata financiou a Europa por uns cem anos. Arzáns fala do “enorme mal que afeta o Peru: possuir a erva chamada coca, que usam os ministros do diabo para seus vícios”.

Cita Pedro Cieza, que dizia (“Crônica del Peru”) que, em todo lado que ia, via os índios se deleitarem em trazer nas bocas a erva de coca, em pequenos bolos de onde sacam uma certa mistura. “Trazem essa coca na boca desde a manhã até dormir”. Cieza perguntou aos índios qual a razão e eles disseram que, com isso, “não sentem fome e ganham grande força e vigor”.

Arzáns diz que a coca no Peru é “apreciada” pelo menos desde 1548 e “hoje” em Cuzco, La Paz e La Plata. E que na Espanha se enriquece vendendo coca. Por acabar com a fome e dar grande força e vigor, nenhum índio entra em uma mina ou faz obras “sem levá-la na boca, mesmo que reduza a sua vida”. Índio não podia entrar em mina sem estar mascando folha de coca.

Arzáns diz que experimentou e sua língua ficou “gorda, áspera e abrasada”. Essa erva tira o sono dos índios, segue Arzáns, e com ela não sentem frio, fome ou sede. Os índios não podem trabalhar sem ela.
“Moída e em água fervendo, abre os poros, esquenta o corpo e abrevia o parto”. Mas seu uso vira vício e o “demônio, que é o inventor dos vícios, faz notável colheita de almas”.

A coca é usada pelas feiticeiras. “Os que se viciam se perdem e vivem de esmolas para manter esse infernal vício, que lhes priva do juízo, como bêbados, e lhes dá terríveis visões”. Usá-la dá excomunhão. A famosa feiticeira Claudia a aplica e faz um homem deitar com uma velha pensando que é uma jovem, conta Arzáns. E que um espanhol rico foi morar com Claudia e comeu tortas pensando que eram as de sua terra.

Um músico convidado para uma casa viu que serviam coca em bandeja de prata e para, não falar sobre os viciados que vira, esses lhe suplicaram que a usasse. O músico saiu à 19h, vagando, e só chegou em casa à meia-noite. E segue contando Arzáns: “Um enfermo, ao beber a erva com licor, ficou bom. Mas morreu um ano depois. Uma mulher pediu a criada que lhe desse coca. Com a negativa, ela levantou-se furiosa e meteu um punhado da erva na boca e, dizendo disparates, caiu morta”. Nem tão trivial assim.