03 de janeiro de 2018

MÁFIAS ITALIANAS VIRAM “POTÊNCIAS SILENCIOSAS” DO CRIME GLOBAL!

Breno Salvador – Rio, Milão e Londres – O Globo online, 31/12.

1. “A árvore da ‘Ndrangheta cobre quase o mundo inteiro”, diz o escritor Roberto Saviano em “Zero Zero Zero” (Companhia das Letras) sobre como atua hoje a máfia da Calábria. “Os colarinhos‑brancos do narcotráfico se despiram das roupas de pastores de Aspromonte e, graças a uma ilimitada disponibilidade de dinheiro, estão colonizando o mercado da droga.”

2. Um dos grandes estereótipos dos mafiosos italianos é o de gângsters que usam a violência para tudo e controlam os negócios e o poder no empobrecido Sul. Mas esta realidade ficou relegada ao imaginário popular de “O poderoso chefão” e afins. Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, a Cosa Nostra siciliana, a Camorra napolitana e a ‘Ndrangheta calabresa se tornam máfias cada vez mais discretas e distantes das armas enquanto se expandem internacionalmente com a dominação de rotas internacionais do narcotráfico. Além disso, infiltram-se nos mais variados mercados financeiros e imobiliários dentro e fora da Itália, escondendo-se sob uma “capa de invisibilidade legal” que dificulta ainda mais rastrear suas atividades criminosas e seus mais de € 150 bilhões estimados em arrecadação anual — mais de 10% do PIB da Itália.

3.  — As máfias mostram nos últimos anos uma maior capacidade de desenvolver atividades na economia legal, não só através da lavagem de dinheiro, mas realizando diretamente investimentos formais e lícitos, podendo contar com relações de conluio e cumplicidade com empreendedores, profissionais e outros sujeitos legalizados — sintetiza ao GLOBO Rocco Sciarrone, professor da Universidade de Turim e especialista nas atividades econômicas dos grupos criminosos italianos.

4. Nas últimas décadas, e principalmente nos últimos anos, o Norte acolheu as máfias do Sul — da capital Roma a regiões mais abastadas como Lombardia, Piemonte, Emília-Romanha e Ligúria. A Transcrime, influente comunidade de pesquisadores de criminalidade comandada pela Universidade Católica do Sagrado Coração (Milão), mostra que os grupos mafiosos do Sul administram direta ou indiretamente de Sul a Norte negócios legais em diferentes setores. Na interminável crise de gestão do lixo e na falsificação de produtos importados, por trás está a Camorra. Em supermercados, bares, boates, restaurantes, jogos de azar, hotéis e empresas de construção, a lavagem feita pela ‘Ndrangheta é incalculável. Os tentáculos vão até apostas, transportes, agropecuária, esporte e, mais recentemente, o tráfico de migrantes — que a Cosa Nostra vem ampliando.

5. Capital financeira do país, Milão se tornou a terceira província italiana com mais confiscos de bens mafiosos. Sua região, a Lombardia, possui o mais alto índice de investimentos criminosos da Europa, segundo autoridades antimáfia — grande parte deles vinda dos recursos mafiosos calabreses.— No Norte se manifesta uma ‘demanda de máfia’. Empreendedores julgam serem convenientes os serviços de proteção e mediação oferecidos pelos mafiosos, além de sua disponibilidade de recursos financeiros. Aliar-se com mafiosos acaba se tornando comumente vantajoso para afrontar a concorrência nos mercados globais — acredita Sciarrone.

6. De acordo com a Europol e a Transcrime, os variados métodos dos mafiosos dificultam o alcance das autoridades: lavam rapidamente com negócios que movimentam muito dinheiro em espécie, como bares e restaurantes; usam laranjas para investir em setores com alta margem de lucro e ainda no setor de energia renovável (graças a subsídios do Estado); controlam portos, postos de gasolina e transportes, facilitando o comércio de drogas e produtos falsificados e contrabandeados; agenciam empregos legais ou ilegais em prostituição e em setores de interesse público, como manufatura, construção, limpeza e saúde; e, como habitual, corrompem políticos e autoridades.

7. Hoje a principal potência econômica e internacional do crime organizado, a ‘Ndrangheta desbanca os famosos mafiosos sicilianos e os emergentes camorristas napolitanos. Mais de 80% de sua receita vêm de capitais estrangeiros, segundo a Transcrime. A “guinada” rumo ao exterior coincide com a derrocada da Cosa Nostra após os anos de terror e enfrentamentos provocados pela liderança de Salvatore “Totò” Riina (chefão da máfia siciliana que morreu este ano, após mais de duas décadas na cadeia) durante a década de 1980 e o início da de 1990.  — A Cosa Nostra liderada por Riina atacou o Estado, matando jornalistas, promotores e juízes. Matou muitos inimigos. A ‘Ndrangheta nunca fez isso. São muito mais eficazes em aproveitar as brechas — pondera o criminólogo Federico Varese, professor da Universidade de Oxford e autor de livros sobre as máfias italianas e europeias. — A Cosa Nostra perdeu terreno e hoje é muito mais local, sofrendo ainda com a competição de grupos criminosos como as máfias nigerianas.

8. A ‘Ndrangheta está em toda a Europa Ocidental e mantém ramificações profundas pelo mundo — do Canadá à Austrália, passando até por Hong Kong. Dentro da Itália, infiltra-se especialmente no setor de alimentação e em empresas de construção, energia renovável e transportes. Dezenas de milhares de restaurantes dentro e fora do país engrossam sua receita, estimada pela Europol em € 44 bilhões anuais. Centenas de pizzarias estão sob seu controle na Alemanha e na Suíça. Já na América Latina, a ‘Ndrangheta é aliada inquebrantável do PCC e dos cartéis mexicanos e colombianos. No porto de Gioia Tauro, em Reggio Calabria, o mais movimentado da região, a cada mês acabam interceptadas dezenas e até centenas de quilos de cocaína (consequentemente, milhões de dólares). Em 2016, foram 1.600 kg. E é só uma minoria da droga que vem principalmente desde o porto de Santos (SP), que segundo estimativa do promotor Nicola Gratteri fornece cerca de 80% da cocaína que entra na Europa.

9. A ‘Ndrangheta tem conexões sólidas com os colombianos. Prospera com a cocaína aproveitando que Gioia Tauro é um porto mais moderno que o de Palermo (Sicília), é seu território e tem uma fiscalização débil — avalia Varese.  Os “cabeças” da ‘Ndrangheta ou são engravatados ou escondem-se em bunkers. Chefes locais atuam de maneira independente em seus países — dificultando o combate às ramificações de uma árvore cujo verdadeiro tamanho nenhuma autoridade sabe mensurar.  — O problema é que a máfia hoje se organiza diretamente através das grandes operações internacionais. Uma resposta precisa ser coordenada entre vários Estados e frentes de autoridade — afirma o professor Ernesto Ugo Savona, diretor da Transcrime.

10. A lavagem de dinheiro que já era facilitada por paraísos fiscais como Suíça, Panamá e ilhas caribenhas, se torna ainda mais viável para os mafiosos com a cumplicidade do investimento legal. Deputados britânicos alertam, por exemplo, que o Reino Unido recebe 100 bilhões de libras lavados anualmente — boa parte alocada no fervilhante mercado imobiliário de Londres, uma das principais cidades receptoras da droga “agenciada” pela ‘Ndrangheta. Até as criptomoedas poderiam virar arma econômica, advertem autoridades.  — Eu não superdimensionaria o papel do bitcoin (para a máfia). A questão verdadeira continua a ser que os bancos são a principal rota para lavar bilhões e bilhões de dólares — destaca Varese.

02 de janeiro de 2018

“NOVO INDIVIDUALISMO É MOVIDO POR UMA FOME INSACIÁVEL DE MUDANÇAS IMEDIATAS”! 

(ANTHONY ELLIOTT é professor de sociologia da Universidade South Australia e da Universidade Keio, no Japão. É autor do livro “The New Individualism” –Ilustríssima – Folha de S. Paulo, 31/12/2017)

1. Meu argumento geral é o de que a reinvenção e as ideologias a ela relacionadas podem ser compreendidas mais corretamente como consequências da difusão daquilo que já defini como novo individualismo. O individualismo girava em torno da construção de uma identidade privada e estável para nós mesmos, independente do mundo. Mas o individualismo de hoje nos encoraja a mudar tão completa e tão rapidamente que nossas identidades se tornam descartáveis. O termo “individualismo” foi cunhado no começo do século 19 pelo francês Alexis de Tocqueville para descrever o senso emergente de isolamento social que ele observou nos Estados Unidos. Hoje, essa noção continua em vigor, mas com um comportamento devidamente modificado e ajustado para se enquadrar ao novo capitalismo e às tecnologias criadas pela globalização —e é por isso que falo de um novo individualismo.

2. O novo individualismo é movido por uma fome insaciável de mudanças imediatas. A tendência pode ser percebida nas sociedades contemporâneas não só pela ascensão de cirurgias plásticas e pelos reality shows sobre reforma instantânea de identidade mas também pelo consumismo compulsivo, pelos namoros relâmpagos e pela cultura da terapia. O desejo por resultados imediatos nunca foi tão pervasivo ou agudo. Ficamos acostumados a gastar meros segundos para mandar e-mails ao outro lado do mundo, comprar produtos supérfluos com um clique e deslizar de uma relação para outra sem maiores compromissos de longo prazo. Não surpreende que agora tenhamos diferentes expectativas sobre as possibilidades da vida e o potencial para mudanças.

3. Em nossa sociedade imediatista, as pessoas querem mudanças e, cada vez mais, as querem para já. O mercado agora oferece uma série de soluções com a promessa da transformação instantânea. Mais e mais, tais soluções —da autoajuda à terapia, da reformas pessoais a cirurgias plásticas— são reduzidas a uma mentalidade mercantil.  O consumo “para já” de hoje em dia cria a fantasia da plasticidade infinita do “eu”. A mensagem da indústria é a de que você poderá se reinventar como bem entender —e nada poderá impedi-lo. Mas esse novo senso de individualismo dificilmente preservará sua felicidade por muito tempo. Pois melhorias pessoais são concebidas tendo em vista o curto prazo. Elas duram apenas até “a próxima vez”. Em um relatório que ressalta o entrelaçamento entre o individualismo e o imediatismo, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas aponta para a enorme demanda em todo o mundo por serviços e bens de consumo individuais. “Demanda”, nesse caso, significa desejo por gratificação instantânea, um desejo que não só estimula o senso de isolamento social percebido por Tocqueville mas também pode acarretar consequências mundiais desastrosas.

4. Argumento que a ascensão de uma linguagem comum altamente individualizada para definir questões públicas é um fenômeno ambíguo, que promove a compreensão da realização do “eu” e também o cultivo da limitação do “eu”. A cultura do individualismo gerou um mundo de experimentação, expressão pessoal e tomada de riscos —que, por sua vez, é embasado por novas formas de apreensão, angústia e ansiedade derivadas dos perigos da globalização. Se o novo individualismo se tornou supremo, é porque flexibilidade, adaptabilidade e transformação estão mescladas de modo complexo na economia eletrônica mundial. Num mundo de demissões intermináveis pelas grandes empresas, transferências de operações para o exterior e reorganizações de companhias, as pessoas estão correndo para se ajustar a novas definições e experiências do “eu” quanto a relacionamentos, intimidade e trabalho, entre muitas outras áreas. Diante do pano de fundo desse admirável mundo novo da globalização, da revolução nas comunicações e da tecnologia de produção baseada em computadores, não deveria ser surpresa que homens e mulheres contemporâneos expressem o desejo de transformar suas vidas instantaneamente, de modificar seu “eu” sem restrições ou resistência.

5. Como os participantes do reality show “Extreme Makeover” —no qual as pessoas passam por cirurgias cosméticas, trabalho ortodôntico, regimes de exercício e reformulações de guarda-roupa a fim de reconstruir suas existências—, mais e mais homens e mulheres acreditam que é possível e necessário recriar suas vidas da forma que preferirem. Nessa condição narcisista, o “eu” é redefinido como uma espécie de kit “faça você mesmo”. A realidade se deflaciona magicamente, já que deixam de existir restrições impostas pela sociedade, ao mesmo tempo em que o “eu” se eleva ao patamar de uma obra de arte. Diversos fatores, em condições de globalização avançada, levam os indivíduos a exigir mudança instantânea a fim de obter aquilo que percebem como vantagem pessoal e profissional sobre os outros.

6. A nova economia causou mudanças de enorme magnitude, que sujeitam as pessoas a pressão intensa para que acompanhem a velocidade das transformações sociais. Empregos seguros desaparecem do dia para a noite. Homens e mulheres lutam freneticamente para conquistar novas capacitações, ou serão descartados. Nessa nova economia de contratos de curto prazo, interminável redução de custos, entregas a jato e carreiras múltiplas, as transformações sociais objetivas são espelhadas no nível da vida cotidiana. A demanda por mudança instantânea, em outras palavras, é amplamente percebida como demonstração de apetite por (e disposição de abraçar) mudança, flexibilidade e adaptabilidade. O impacto das grandes empresas multinacionais, capazes de exportar a produção industrial para locais de baixos salários em todo o mundo e de reestruturar o investimento no Ocidente, desviando-o da manufatura para os setores de finanças, serviços e telecomunicações, causou grandes transformações na maneira como as pessoas vivem suas vidas, abordam o emprego e se posicionam dentro do mercado de trabalho.

7. O emprego se tornou muito mais complexo do que em períodos anteriores, como resultado da aceleração da globalização, e um fator institucional chave para a redefinição da condição contemporânea foi o declínio da ideia de posto de trabalho vitalício.  A morte da ideia de uma de uma carreira (uma vida de trabalho) desenvolvida dentro de uma só organização foi interpretada por alguns como sinal de uma nova economia —flexível, móvel, operando em rede. O financista e filantropo internacional George Soros argumenta que transações tomaram o lugar dos relacionamentos na economia moderna.  Diversos estudos enfatizam essas tendências mundiais ao imediatismo ou ao predomínio do episódico —nos relacionamentos pessoais, na dinâmica familiar, nas redes sociais, no trabalho. O sociólogo Richard Sennett escreve sobre a ascensão “do trabalho de curto prazo, episódico e por contrato”. O emprego vitalício do passado, ele argumenta, foi substituído pela empreitada de pequena duração.

8. A cultura imediatista das empresas está produzindo uma erosão generalizada da relação de confiança que os trabalhadores desenvolviam com seus locais de trabalho. Em um mundo empresarial no qual todos estão sempre pensando em seu próximo passo na carreira ou se preparando para grandes mudanças, é muito difícil —e em última análise, pode se provar disfuncional— manter lealdade em relação a uma dada organização. Autores como Sennett veem a flexibilidade exigida por empresas multinacionais como demonstração da realidade da globalização, que promove a concepção dominante dos indivíduos como descartáveis. É diante desse pano de fundo sociológico que ele cita estatísticas segundo as quais o universitário americano médio que se formar hoje ocupará uma dúzia de empregos diferentes ao longo de sua carreira e terá de mudar sua capacitação profissional ao menos três vezes. Não admira que o capitalismo flexível tenha seus descontentes, para os quais se torna desagradavelmente claro que os supostos benefícios do livre mercado estão cada vez menos aparentes.

9. Em outra obra posterior, “A Cultura do Novo Capitalismo”, Sennett discorre sobre as consequências emocionais mais profundas das grandes mudanças organizacionais: “As pessoas temem se ver deslocadas, marginalizadas ou subutilizadas. O modelo institucional do futuro não lhes oferece uma narrativa de vida no trabalho, ou uma promessa de grande segurança no reino público”. Da mesma maneira que o capitalismo flexível se engaja em reestruturações organizacionais incessantes, as pessoas fazem o mesmo —empregados, empregadores, consumidores, pais e filhos. Don DeLillo escreve que o capitalismo mundial gera transformações à velocidade da luz, não só em termos do movimento súbito de fábricas, migrações em massa de trabalhadores e transferências instantâneas de capital líquido, mas em “tudo, da arquitetura ao tempo de lazer, à maneira pela qual as pessoas comem, dormem e sonham”.

10. Ao refletir sobre as maneiras complexas pelas quais nossas vidas emocionais são alteradas pelas mudanças socioeconômicas causadas pela globalização, busco expandir a gama de transformações mencionadas por DeLillo, tomando por foco as experiências mutáveis das pessoas quanto a identidades, emoções, afetos e corpos como resultado da difusão do novo individualismo. Meu argumento é que forças globais, ao transformar as estruturas econômicas e tecnológicas, penetram no tecido de nossas vidas pessoais e emocionais. A maioria dos autores concorda que a globalização envolve uma reformulação dramática das fronteiras nacionais e locais. As viradas repentinas do capital de investimento, a expansão transnacional da produção multipropósitos, a privatização de instituições governamentais, o remodelamento incessante das finanças, a ascensão de novas tecnologias, a instável energia dos mercados de ações que funcionam 24 horas: essas imagens do capitalismo multinacional põem em foco a dimensão da reconstrução imposta ao planeta a cada dia.

11. Venho sugerindo que essas mudanças se infiltram profundamente na vida cotidiana e afetam um número crescente de seres humanos. Os valores da nova economia mundial cada vez mais estão sendo adotados pelas pessoas para remodelar suas vidas. A ênfase está em viver ao estilo do contrato de curto prazo (naquilo que vestimos, nos lugares em que moramos, na forma como trabalhamos), em transformações cosméticas incessantes e na melhoria do corpo, na metamorfose instantânea e nas identidades múltiplas. Esse é o campo da sociedade da reinvenção, que continua a se espalhar pelas polidas e dispendiosas cidades do Ocidente, e mais além.