03 de janeiro de 2019

“ESQUERDA TRADICIONAL EUROPEIA PERDE ESPAÇO PARA DIREITA E POPULISTAS”!

(Lucas Neves – Paris – Folha de S.Paulo, 02) Depois de um 2017 hostil, com perdas de governo em França, Áustria e República Tcheca, a esquerda tradicional europeia, encarnada em legendas socialistas e social-democratas, terminou o ano de 2018 mais uma vez com pouco a celebrar.

Na Itália, o Partido Democrático foi apeado do poder por uma associação excêntrica e oportunista entre uma agremiação que diz contestar o sistema político tradicional  (o Movimento 5 Estrelas) e a Liga (direita radical), de retórica xenófoba e anti-integração europeia.

Na Alemanha, o Partido Social-Democrata (SPD), que já vinha de um duro revés na eleição nacional de 2017, amargou maus resultados em dois importantes pleitos regionais (nos estados de Hesse e Baviera), especialmente no segundo, em que chegou apenas na quinta colocação.

Internamente, a sigla é palco de um conflito geracional entre a ala jovem, que acha que o SPD se desnaturou depois de anos de coalizão governamental com a CDU (União Democrata-Cristã) de Angela Merkel, e os baluartes, apegados aos cargos e benesses do poder.

Conforme escreve para a revista New Statesman o professor de Cambridge Chris Bickerton (em artigo intitulado “O Colapso da Centro-Esquerda Europeia Tradicional”), a legenda alemã tinha uma “tempestade perfeita” a seu favor.

A precarização do mercado de trabalho (com contratos temporários e/ou de meio período, além de salários baixos) e um sentimento de descompasso entre uma economia com indicadores macroeconômicos saudáveis e o cotidiano áspero do cidadão comum, deveriam em teoria oferecer um trampolim à social-democracia germânica.

Na prática, porém, o que o SPD fez foi sangrar eleitores para o partido A Esquerda (Die Linke) e para o Alternativa para a Alemanha (AfD, de direita radical).

Já na Suécia, onde os sociais-democratas eram até há pouco força quase hegemônica, não há governo formado passados quase quatro meses das eleições legislativas.

Os progressistas, sem maioria no Parlamento, precisariam compor com o bloco conservador, mas hesitam.

Se não houver definição até 23 de janeiro, uma nova votação será convocada.

Enquanto isso, o impasse vai aumentando a simpatia pela formação de direita populista Democratas Suecos, segundo pesquisas de popularidade recentes.

Mesmo na Espanha, onde os socialistas conseguiram desalojar o Partido Popular (centro-direita) do Palácio da Moncloa, o ano passado terminou com um sobressalto local: a não recondução do PSOE ao governo regional da Andaluzia, depois de 36 anos de supremacia.

Alguns analistas atribuem a retração do establishment progressista à forma como, na esteira da crise mundial de 2008 (e, dois anos depois, da crise da dívida grega, que por pouco não contagiou toda a zona do euro), os socialistas e sociais-democratas em postos de comando se curvaram aos imperativos de austeridade fiscal, abandonando a agenda de proteção social tradicionalmente associada à esquerda.

Mas o professor Jan Rovny, da Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris), vê raízes mais profundas no fenômeno, segundo expõe em artigo para o site da London School of Economics (“O Que Aconteceu com a Esquerda da Europa?”). Para ele, mudanças estruturais e tecnológicas profundas no continente reconfiguraram a sociedade europeia —e, por extensão, o eleitorado esquerdista.

O traço comum dos grandes partidos de esquerda do continente no pós-guerra, escreve Rovny, era a defesa dos direitos dos trabalhadores, grupo relativamente homogêneo dotado de forte consciência de classe (transmitida de geração em geração).

Por meio de políticas que impulsionavam o acesso à educação superior e incentivavam a expansão dos direitos civis, ajudaram a fazer do proletariado uma nova classe média.

Por outro lado, destaca o professor, o novo proletariado (ou “precariado”, como ele e outros autores têm chamado) se viu acossado pela automação maciça da cadeia produtiva e pela atomização do trabalho, quase sempre de baixa qualificação. Com isso, perdeu a sensação de pertencer a uma comunidade e a capacidade e a vontade de se articular em grupo.

O (res)sentimento se acentuou com a circulação de grandes contingentes de trabalhadores “baratos” decorrente da integração europeia.

São esses “perdedores da globalização” que desertaram a esquerda e seu elogio do cosmopolitismo multiculturalista, ao qual preferem um nacionalismo tradicionalista.

É na fenda aberta por essa decomposição da base eleitoral da esquerda que o populismo tem se insinuado —basta pensar na Itália de Matteo Salvini—, com um receituário que alia promessas de proteção econômica e conservadorismo nos costumes.

A prova dos nove dessa mudança sísmica virá em maio de 2019, quando acontecem as eleições para o Parlamento Europeu, em que os sociais-democratas devem assistir como coadjuvantes ao embate entre o front globalista encabeçado pelos combalidos Emmanuel Macron e Angela Merkel e a confraria eurocética puxada por Salvini, Marine Le Pen (França) e Viktor Orbán (Hungria).

Esquerda tradicional em crise na Europa

Alemanha
O Partido Social-Democrata (SPD) vive uma crise interna entre a ala mais jovem e a geração mais antiga e amargou resultados ruins em eleições locais em 2018

Itália
No comando do país desde 2013, o Partido Democrático acabou derrotado nas últimas eleições, em março de 2018, e cedeu o poder para uma coalizão entre a Liga (direita radical) e o Movimento 5 Estrelas (antissistema)

Suécia
Principal força política do país, os sociais-democratas terminaram a última eleição sem maioria no Parlamento, colocando o país em um impasse que pode levar a uma nova votação e beneficiar a direita radical

Espanha
Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) perdeu para a direita radical o governo regional da Andaluzia após 36 anos de hegemonia.

02 de janeiro de 2019

QUEM SÃO OS JOVENS “NEM-NEM” NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL?

(Editorial – Estado de S.Paulo, 28/12) 1. Jovens que não trabalham nem estudam, eles não estão ociosos por opção, mas sim por despreparo. A expressão “nemnem” serve para classificar jovens que não trabalham nem estudam. Resultante das significativas mudanças no mercado de trabalho operadas nos últimos anos, esse contingente representa a parcela da população que expressa apatia justamente no momento em que deveria estar fazendo planos para o futuro. Num primeiro momento, associou-se esse comportamento a um certo desencanto da juventude de classe média com a educação formal, que seria inútil para melhorar suas possibilidades de encontrar o trabalho que combinasse seus ideais de vida com boa remuneração.

2. A opção pelo ócio seria então uma resposta deliberada para essa perspectiva desanimadora. Mas uma pesquisa recente mostrou que no Brasil, bem como na América Latina em geral, a maioria absoluta dos “nem-nem” não está ociosa por opção, mas sim por despreparo, o que torna o problema muito mais complexo.

3. Estudo coordenado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e que no Brasil foi realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entrevistou 15 mil jovens entre 15 e 24 anos – que os pesquisadores chamaram de “millennials” – em nove países da América Latina e do Caribe. A ideia era ir além dos tradicionais levantamentos do gênero, que se limitavam a observar a renda e o nível educacional dos investigados, e procurar conhecer variáveis como a informação dos jovens a respeito do mercado de trabalho, além de suas habilidades cognitivas e socioemocionais. Com isso, emerge um quadro bem menos simplista a respeito do fenômeno dos “nem-nem”, ajudando a reduzir preconceitos sobre esses 20 milhões de jovens latino-americanos.

4. O estudo mostrou que 21% dos jovens pesquisados no continente não estudam nem trabalham. No Brasil, esse número chega a 23%, inferior somente a El Salvador (24%) e muito distante do Chile (14%), o país com menor índice. O levantamento constatou, contudo, que grande parte desses jovens não está ociosa. No Brasil, 36% deles estão procurando trabalho, 44% se dedicam a cuidados familiares e 79% desempenham tarefas domésticas. Apenas 12% não fazem nada disso. Ou seja, os jovens “nem-nem” desempenham atividades importantes para a economia familiar e não deixam de procurar emprego no mercado de trabalho, ainda que lhes seja muito difícil encontrar vagas, já que sua educação é falha.

5. Ademais, a pesquisa, em seu aspecto qualitativo, mostrou que os “nem-nem” são o grupo social que expressou maior preocupação com a violência urbana, além de identificar o tráfico de drogas como uma tentação para afastá-lo do caminho do trabalho e da educação, já que oferece a chance de obter dinheiro fácil. “Nesse sentido, ser ‘nem-nem’ também pode ser entendido como uma tentativa de evitar os riscos das ruas”, observou o relatório. Assim, a probabilidade de ser “nem-nem” é maior nas famílias de baixa renda.

6.  A pesquisa mostra também que, a despeito dos avanços na área educacional, a qualidade do ensino oferecido aos jovens está longe do que vem sendo exigido no novo mercado de trabalho, que premia habilidades que se adaptem a diferentes circunstâncias, e não a rígida especialização profissional que caracteriza a maioria das carreiras tradicionais.

7.  Além disso, está claro que os jovens latino-americanos ficam muito pouco tempo na escola. No Brasil, a média é de menos de 10 anos completos de estudo, ante mais de 11 anos no Chile e na Colômbia. E mesmo os que passam mais tempo na escola demonstram graves deficiências na resolução de problemas simples. E os empregos disponíveis para essa faixa da população são precários, com escasso incentivo para um maior engajamento.

8. Sem ter a perspectiva de retorno profissional do esforço educacional, os jovens acabam empurrados para fora da escola e do mercado de trabalho. Mesmo assim, a pesquisa constatou que 77% dos jovens brasileiros esperam alcançar o ensino superior e 83% acreditam ser capazes de conseguir o trabalho que desejam. É nesse otimismo que o poder público precisa apostar.