03 de abril de 2019

PRESIDENCIALISMO É DE COALIZÃO !

(Sergio Abranches, cientista politico, 30) A confusão sobre o presidencialismo de coalizão tem sido enorme. O centro das incompreensões tem sido as coalizões. Presidencialismo de coalizão é o nosso modelo político desde 1946. Foi quando o Brasil optou pelo presidencialismo, uma Federação com muitos estados, a eleição de deputados pelo voto proporcional e de mesmo número de senadores por estado, pelo voto majoritário, em um sistema aberto a muitos partidos políticos. Essa combinação de elementos institucionais tornou objetivamente impossível aos presidentes fazerem a maioria no Congresso com seus partidos. Eles precisam de outros partidos para alcançar a maioria e governar. Precisam de uma coalizão multipartidária. Daí, presidencialismo de coalizão.

Presidentes têm, em geral, a capacidade de negociar uma coalizão majoritária, alavancados pela vitória eleitoral. Não é, necessariamente, cooptação, conchavo, toma lá dá cá, nem corrupção. Podem negociar essas alianças com base em programas, princípios e valores. Se um presidente fez uma campanha com um projeto claro e viável de governo, ele pode usá-lo como base dessa negociação. A Constituição de 1988 remodelou o presidencialismo de coalizão e deu ao presidente mais poderes para controlar a agenda de políticas públicas.

Mas o Congresso multipartidário manteve a capacidade de bloquear a agenda presidencial e concentrou poderes de coordenação política na presidência das Mesas e nas lideranças partidárias. A principal força do Congresso vem do fato de praticamente todas as políticas públicas precisarem de leis para serem instituídas. As políticas mais relevantes, como a Previdência, foram inscritas na Constituição, requerendo maioria de três quintos (60%) dos votos, para regulá-las ou modificá-las. Presidentes precisam, portanto, de maioria ampla e coesa para implantar políticas públicas novas, mudar as existentes, ou fazer reformas.

Negociar uma coalizão majoritária não é escolha, é um imperativo. Um presidente não governa sem ela, não aprova suas medidas no Congresso, e o governo fica paralisado. Além disso, arrisca-se a ver o Legislativo aprovar medidas contrárias à sua agenda, como aconteceu na Câmara, com as emendas impositivas. Jânio Quadros e Fernando Collor não negociaram coalizões majoritárias e não governaram. Mas presidentes não precisam trocar favores com o Congresso, distribuir benesses ilegítimas. Podem negociar a pauta e os princípios para formulação de políticas e, legitimamente, compartilhar o poder, nomeando ministros qualificados, indicados pelos partidos da coalizão, selecionados por critérios fixados pelo Executivo.

A participação no governo consolida o compromisso dos partidos com as políticas acertadas. Presidentes têm três recursos básicos para negociar uma coalizão legítima: a força do voto popular nacional que os elegeu, a liderança política e a persuasão. Com esses três recursos na mão, eles e seus líderes têm condições de conduzir a articulação política para formar a coalizão. É uma negociação, mas não precisa ser um troca-troca espúrio. Negociar é conversar, acertar pontos em comum e compartilhar o poder governamental, sem abrir mão da primazia presidencial.

Qual o problema hoje? Bolsonaro deixou o seu capital eleitoral se dissipar, insistindo em miudezas, e não apresentou uma agenda clara e relevante, capaz de unir o país. Fixou-se em questões menores, que dividem muito. Não demonstrou ter liderança. Não se empenhou a favor das propostas de seus ministros da Economia, para a reforma da Previdência, e da Justiça, para a legislação anticorrupção. Descartou indicações políticas, mas nomeou ministros visivelmente ineptos. Preferiu hostilizar o Congresso, a dialogar politicamente. O resultado é paralisia decisória e perigoso impasse político. A trégua recente é uma pausa, não o fim dos atritos.

02 de abril de 2019

SEIS TOXINAS POLÍTICAS!

(Moisés NaÍm – Carnegie Endowment – Estado de S.Paulo, 01) Às vezes, são as sociedades que mudam o curso da história em eleições ou referendos.

Existem decisões que mudam o mundo. São aquelas que têm consequências difíceis de serem revertidas, transcendem fronteiras e afetam milhões de pessoas. Guerras são o exemplo óbvio. Elas geralmente são decididas por um líder ou por um reduzido grupo de políticos e militares. Às vezes, no entanto, são as sociedades que mudam o curso da história por meio de eleições ou referendos.

Um exemplo disso é o Brexit, o referendo no qual os britânicos votaram a favor da ruptura com a União Europeia (UE). Outro exemplo ocorreu quando Donald Trump venceu as eleições nos EUA. Ou quando, em 1998, os venezuelanos elegeram Hugo Chávez como presidente.

O Brexit fez o sistema político britânico mergulhar em uma crise profunda, Trump transformou a política de seu país e, talvez, do mundo e

Chávez é responsável por uma catástrofe nacional que está prestes a transformar-se em uma perigosa crise regional.

Esses três casos são, claro, muito diferentes. Mas eles também têm semelhanças que iluminam importantes fatores tóxicos comuns na política atual.

1. A antipolítica. Os três são manifestações concretas da rejeição aos “políticos de sempre” e da presunção de que os governantes tradicionais usam a política para seu benefício pessoal e não visando o bem comum. Aqueles que votaram a favor do Brexit, de Trump e de Chávez sentiram que apenas expulsando aqueles que governavam melhoraria sua situação pessoal – ou pelo menos aquilo serviria para ensinar uma boa lição aos poderosos.

2. Partidos fracos. Nestes três exemplos, os resultados inesperados das consultas eleitorais foram possíveis graças à fraqueza dos partidos políticos tradicionais. Os dois grandes partidos britânicos – Trabalhista e Conservador – estavam divididos e isso os impediu de confrontar com eficácia aqueles que promoveram o Brexit.

O mesmo aconteceu com o Partido Republicano nos EUA, cuja fragmentação tornou possível que um político iniciante como Trump se tornasse seu candidato à presidência. E também na Venezuela, onde os dois grandes partidos históricos entraram em colapso, deixando a porta aberta para Chávez.

3. A popularidade das mentiras. Quase imediatamente após sua vitória no referendo sobre o Brexit, soube-se que os seus promotores haviam mentido, exagerado nos benefícios que o Reino Unido teria ao sair da UE e minimizaram os custos e as dificuldades que essa decisão teria para os britânicos. Em seu primeiro ano como presidente, Trump disse, em média, 6 mentiras ou alegações enganosas por dia, segundo contas do Washington Post. No segundo ano a média subiu para mais de 16 por dia e até agora, em 2019, chega a 22 mentiras diárias. O presidente dos EUA tornou normal a mentira.

O mesmo é verdadeiro no caso de Chávez, de quem há um enorme estoque de vídeos e gravações, fáceis de encontrar na internet, nos quais o líder venezuelano mente.

4. A manipulação digital. A conta no Twitter de Donald Trump é uma das suas armas políticas mais poderosas. Chris Wylie, ex-diretor de pesquisa da empresa Cambridge Analytica depôs perante o Parlamento britânico que a empresa usou as mídias sociais para influenciar o resultado do referendo em favor do Brexit. Alô, Presidente, o programa dominical estrelado por Chávez, tornou-se um instrumento fundamental de propaganda, mobilização política e manipulação da opinião pública.

Todos os políticos, em todos os lugares, sempre usaram os meios de comunicação social para obter e manter o poder. Poucos fizeram isso com a habilidade, a audácia e a sofisticação tecnológica de Trump, Chávez e dos defensores do Brexit.

5. A intervenção externa secreta. As agências de inteligência dos EUA e procurador especial Robert Mueller concluíram que o governo russo clandestinamente influenciou nas eleições dos EUA em 2016. Antes do referendo do Brexit, mais de 150 mil contas russas no Twitter enviaram milhares de mensagens em inglês, incitando os britânicos a deixar a UE. A influência de Cuba na Venezuela foi mantida em segredo, mas hoje é uma realidade amplamente reconhecida.

6. O nacionalismo. As promessas de autodeterminação e revanche contra os maus tratos recebidos por outros países foram decisivas para o sucesso eleitoral de Chávez, Trump e Brexit. Nos três casos, as denúncias contra a globalização, o comércio internacional e os “países que se aproveitam de nós” renderam dividendos políticos. A hostilidade de Chávez contra os EUA e a de Trump e dos defensores do Brexit contra os imigrantes também foram determinantes.

Esses seis fatores ilustram o tipo de toxinas que estão afetando a política de muitos países. Em alguns deles surgiram anticorpos que resistem a elas. O resultado desse choque entre toxinas e anticorpos políticos moldará o mundo que teremos.

Às vezes as sociedades alteram o curso da história por meio de votações

01 de abril de 2019

ESPIRITISMO MARCA 150 ANOS DA MORTE DE KARDEC DIANTE DE MOMENTO-CHAVE!

(Folha de S.Paulo, 31) Para adeptos, escritor francês que codificou doutrina previu turbulências, que agora chegam à prática.

Nas celebrações dos 150 anos da morte —ou desencarne, como creem os adeptos do espiritismo— do escritor francês Allan Kardec, considerado o pai da doutrina espírita, expoentes da crença afastam o médium João de Deus de suas fileiras, falam de acirramentos dos conflitos interpessoais da atualidade e reforçam a sinergia da filosofia com os avanços científicos.

Kardec, cujo nome de batismo é Hippolyte Léon Denizard Rivail, foi o responsável pela publicação do pentateuco espírita (conjunto de cinco obras literárias), pilar da filosofia que nasceu a partir da investigação científica de fenômenos chamados “mesas girantes”, motivo de inquietação na Europa no século 19.

“Ele pensou ter encontrado nas manifestações das ‘mesas girantes’ evidências robustas da imortalidade alma, através da identidade dos espíritos comunicantes”, afirma Dora Incontri, jornalista, doutora em educação pela USP e considerada uma das maiores especialistas em Kardec do país.

Ainda no primeiro semestre deste ano estão previstas a estreia de um documentário e de um filme a respeito do chamado codificador da doutrina espírita.

Dora, com Karim Soumaïla, assina o roteiro de “Em Busca de Kardec”, o documentário. “A filosofia que ele estabeleceu, que é o espiritismo, que ele não queria que fosse uma religião, foi construída em diálogo com espíritos”, afirma.

Já o filme dramatizado é baseado na biografia escrita pelo jornalista Marcel Souto Maior, que mostra a trajetória do professor Rivail até transformar-se no “pai do espiritismo”.

Segundo Souto Maior, a obra de Kardec é estudada e colocada em prática hoje em cerca de 15 mil centros espíritas pelo país, tendo como máxima a frase cunhada como a essência da doutrina: “Fora da caridade não há salvação”.

“Ela [a obra] sustenta uma rede de solidariedade cada vez mais integrada e ativa. É muito atual e cada vez mobiliza mais gente em torno das lições que difundiu”, diz ele.

Souto Maior afirma ainda que, em nenhum país o espiritismo de Kardec ganhou tantos adeptos quanto no Brasil.

Um dos grandes responsáveis por isso foi o médium Chico Xavier (1910-2002).

Além de ações de caridade, o mineiro ganhou fama ao psicografar milhares de cartas e publicar mais de 400 obras.

Em 2010, segundo o Censo mais recente do IBGE, 3,8 milhões de pessoas se declararam seguidores da doutrina no Brasil. É o secto com maior índice de ensino superior (31,5%) e a maior taxa de alfabetização (98,6%).

Nesse total, porém, não estão outras correntes reencarnacionistas existentes no Brasil, como o candomblé e a umbanda, das quais os kardecistas buscam se diferenciar.

Tampouco estão incluídos aqueles que veem a doutrina como filosofia e não religião, ou que a seguem em paralelo com religiões como a católica.

Os espíritas também vêm, desde o final de 2018, empregando esforços para explicar que o médium João de Deus, 77, preso em Goiânia (GO) sob a suspeita de abuso sexual e outros crimes, não pode ser considerado um espírita.

“O próprio médium já se declarou não espírita. É preciso separar a pessoa da doutrina. Mesmo que ele fosse espírita, dentro da nossas imperfeições, podemos cometer erros, mas os ensinamentos apontam para seguir corretamente”, diz Geraldo Campetti, vice-presidente da FEB (Federação Espírita do Brasil).

Ele diz que “segundo Kardec, uma coisa é ser médium, um instrumento entre o plano espiritual e o material, outra é o uso que se faz da mediunidade, que pode servir tanto ao bem quanto ao mal. Pode-se trabalhar pelo próximo ou por interesses particulares”.

“É claro que é lamentável tudo o que aconteceu, é um alerta para que fiquemos cada vez mais vigilantes. O médium não é um espírito perfeito, pelo contrário, é um espírito bem endividado.”

Na visão dos espíritas, o clima prevalente de atrito entre as pessoas tem relação com o que chamam de “momento de transição”, que é marcado por questionamentos de valores.

Campetti avalia que “estamos vendo pessoas perturbadas querendo conturbar” e pessoas embarcando em processos de precipitação de opinião, de tomada de atitude intempestiva e que acabam favorecendo a polarização e tencionando as relações.

“O espiritismo leva a mensagem de paz e de esperança, e somos convocados a agir. É um momento decisivo, crucial, com o recrudescimento dos enfrentamentos, e não há como ficar parado”, diz.

“Precisamos dar apoio para que as pessoas entendam o que é essencial na vida. A doutrina se prepara para um momento de regeneração, para dar uma base às pessoas para trabalharem por seu restabelecimento moral.”

Para o jornalista André Trigueiro, um dos palestrantes a respeito do espiritismo mais conhecidos do país, “para os espíritas, estaríamos deixando a categoria de ‘mundo de provas e expiações’ —onde a dor e o sofrimento ainda predominam— para ‘mundo de regeneração’ –onde a evolução ética e moral determinariam vivências menos dolorosas que as atuais”.

“O agravamento das tensões, no nível em que experimentamos hoje, costuma marcar de forma aguda esses períodos de transição. A doutrina espírita previu esse momento conturbado, e assinalou a importância de seus seguidores se pautarem sempre pelas lições morais do evangelho, especialmente a prática da caridade”, afirma.

Os avanços científicos em torno das manipulações genéticas, do sequenciamento do DNA e também as novidades tecnológicas parecem não levar desconforto aos espíritas, mas, sim, entusiasmo, uma vez que a doutrina afirma se ancorar no respeito à ciência.

“O espírita, ao se considerar cientista, tem de ser amigo do avanço da ciência. Outra visão seria sociologicamente tentar entender se os espíritas são amigos da ciência, mas aí não seria uma postura filosófica”, diz o professor da USP Alysson Mascaro.

“Isso é postulado por Kardec: ‘A ciência acima de tudo’. É um postulado, inclusive, do iluminismo do século 18, aplicado nessa leitura de Kardec no século 19.”

Trigueiro diz que “Kardec utilizou a metodologia científica para eliminar o risco de fraudes e mistificações”.

“A atualidade do espiritismo se manifesta pela lógica de seus postulados [de Kardec] que revelam as leis que regem a vida e o universo. É o que se convencionou chamar de fé raciocinada”, afirma.

“Assim, os princípios básicos da doutrina permanecem perenes na linha do tempo.”