31 de julho de 2019

CAMINHO DA COCAÍNA!

(Estado de S.Paulo, 30) Rota que começa na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia e segue pelo Solimões é uma das maiores portas de entrada de cocaína no País e alvo de conflito entre facções. Desde 2016, 162 presos foram mortos na região.

O massacre na cadeia de Altamira repete a estratégia usada por facções para, com brutalidade, tentar dominar parte de uma importante rota de tráfico de drogas na região amazônica. Os assassinatos cometidos pelos integrantes do Comando Classe A (CCA) contra filiados do Comando Vermelho (CV) é mais um capítulo de uma briga nacional que se expressa com maior frequência na Região Norte.

A rota, que começa na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia e segue pelo Rio Solimões até Manaus, transformou-se em uma das maiores portas de entrada de cocaína do País, segundo especialistas e investigadores. É o controle desse mercado lucrativo que move a maior parte dos conflitos entre as organizações criminosas que atuam na região.

Uma briga entre a Família do Norte (FDN), o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) já deixou, desde outubro de 2016, 162 pessoas mortas dentro de presídios de Rondônia, Roraima e Amazonas – sem contar os 57 óbitos de ontem, em Altamira.

“O Pará é um espaço que também vem sendo disputado pelas facções em função da sua posição geográfica e da importância que tem para o narcotráfico”, explica o pesquisador Aiala Colares, da Universidade Estadual do Pará (Uepa).

Segundo ele, o CCA ganhou força nos últimos anos, ao fazer alianças e entrar na disputa pela cocaína da região. “Se a Amazônia é a porta de entrada dessa droga, é importante para as facções estarem perto dessa porta”, acrescenta Colares.

Mudança. As cidades, onde antes só existiam pequenas gangues, viram os criminosos se organizarem agora em facções. E esses grupos formaram alianças para ganhar ainda mais força, processo que ocorreu ao longo da última década.

No Pará, ao contrário do que ocorre em São Paulo, não há hegemonia. “O Pará tem muitas facções criminosas em disputas que às vezes chegam a ocorrer dentro de bairros, de tão pequenas que são. Há disputa o tempo todo, levando a uma taxa de homicídio muito alta, como a que vemos nos últimos cinco anos”, diz o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Jean François Deluchey.

Ele acredita que, apesar de o CV ter dados sinais de que se consolidava no Estado, uma hegemonia ainda é imprevisível. “A disputa é total e sempre há reações. Agora, o CCA atuou, mas já há expectativa de que o CV vai realizar uma retaliação enorme em todos os outros presídios.”

O massacre acontece em meio ao aumento da sensação de insegurança em todo o Estado, com a força dos traficantes sendo testada pela atuação de milícias, principalmente na região metropolitana de Belém. Chacinas e as numerosas mortes causadas por policiais em supostos confrontos contribuem para um clima de violência crescente.

“Se há controle de toda essa rota, do Solimões à exportação, a facção deixa as outras mais dependentes dela. Caso contrário, é necessário buscar outros caminhos, que necessariamente serão mais longos e, principalmente, mais caros”, explica Colares. Deluchey vê o massacre de Altamira como “a consequência do fracasso da política criminal brasileira”.

30 de julho de 2019

POR QUE NÃO HÁ PARTIDOS POPULISTAS NOS EUA OU INGLATERRA, MAS APENAS LIDERANÇAS POPULISTAS?

(Marcus André Melo – Folha de S.Paulo, 29) A ascensão de uma liderança populista —mais bufão que extremista— como Boris Johnson causa alguma perplexidade. Como parlamentares que expressam preferências minoritárias na sociedade chegam ao poder em democracias estáveis? Como governam?

Há duas variáveis explicativas em jogo: o sistema de governo e o sistema partidário.

No parlamentarismo britânico, se um partido é majoritário no Parlamento, seu líder torna-se primeiro-ministro(a). Torna-se, segundo Adam Przeworski, um ditador parlamentar, porque sua agenda, por definição, contará com apoio majoritário.

Mas, se o sistema é multipartidário, executivos minoritários precisam montar coalizões, pois são potencialmente vulneráveis a moções de desconfiança. Se elas não ocorrem, é porque alguns partidos os toleram, como é comum na Escandinávia. Executivos populistas minoritários são oxímoros. Falam pela maioria sendo minoria, e tendo que barganhar apoio legislativo. Esse é o arranjo institucional que permite maior contenção do populismo.

Mas, ao contrário dos presidentes, mesmo os primeiro-ministros majoritários, como Johnson, não têm mandato fixo. Sua sobrevivência dependerá dos humores da opinião pública, como ocorreu com Thatcher após a revolta contra o Poll Tax. Uma agenda extremista enfrenta resistências intransponíveis (embora cada vez menores) no partido e na sociedade.

Presidentes populistas em contextos multipartidários enfrentam o dilema de como conciliar a retórica antissistema com a necessidade de formar maiorias para aprovar sua agenda. A relação do presidente com o Legislativo pode ser conflituosa e gerar paralisia, mas existem também incentivos para a formação de maiorias.

Como populistas chegam lá? As regras eleitorais importam. Elas explicam por que não há partidos populistas nos EUA ou na Inglaterra, mas apenas lideranças individuais populistas, que chegam ao poder através de disputas intrapartidárias em agremiações moderadas. Isso deve-se ao fato de que nesses países adota-se o “voto distrital” (sistema majoritário de distrito uninominal) que produz o bipartidarismo e elimina partidos extremistas.

Na realidade, muitos defenderam essa regra eleitoral como vacina contra o extremismo. Muitos, como Hans Kelsen, culparam a representação proporcional pela ascensão do nazismo —argumento que influenciou a introdução do sistema misto na Alemanha.

Líderes populistas dentro de partidos moderados têm menor potencial disruptivo que partidos populistas. Ironicamente, a via personalista é a que prevaleceu nas democracias mais estáveis da história, as anglo-saxônicas. A razão é institucional: a regra eleitoral.

29 de julho de 2019

ARMSTRONG PISOU NA LUA E ERROU DE HOSPITAL!

(Elio Gaspari – Folha de S.Paulo) Neil Armstrong levou oito dias para ir à Lua e voltar. Anos depois, fez uma cirurgia do coração e 19 dias depois estava morto. No voo, deu tudo certo. No hospital, as coisas deram errado, mas a verdade ficou escondida por sete anos, até que o New York Times a revelou. O chanceler Ernesto Araújo acha que os diplomatas não devem ler esse jornal, mas para o bem de sua saúde seria bom que o fizesse.

Em 2012, aos 82 anos, Armstrong estava com um desconforto gástrico, foi ao hospital Merciful Faith, de sua cidade, e fez um teste de esforço. Mandaram-no para uma angiografia e acabou com quatro pontes no coração. Algo como cinco dias depois puseram-lhe um marca-passo temporário e passadas algumas horas uma enfermeira tirou-lhe os fios. Teve um sangramento e 27 minutos depois levaram-no para o centro de cateterismo. Melhorou, mas voltou a sangrar, com queda de pressão e falha dos rins. Em 20 minutos estava no centro cirúrgico. Daí em diante não se sabe o que aconteceu, mas ele ficou 97 minutos com perda de oxigênio no cérebro. Estava entubado há uns cinco dias quando retiraram o aparelho. Armstrong não conseguia respirar e voltaram a entubá-lo. Dez dias depois estava morto.

Desde 2014 o hospital sabia que médicos independentes haviam estudado o prontuário e observaram que ele poderia ser operado mais tarde, os fios do marca-passo não deveriam ter sido retirados por uma enfermeira sem supervisão e, acima de tudo, deveria ter ido logo para o centro cirúrgico e não para o centro de cateterismo. Finalmente, não deveriam tê-lo extubado tão cedo. Existem testes rotineiros capazes de medir a resistência de um paciente à extubação. O homem que simbolizou o avanço da tecnologia morreu por causa de barbeiragens. A pior foi a sua ida para o centro de cateterismo.

Havia mais: durante dois anos o hospital se fez de bobo, até que a mulher de um dos filhos de Armstrong, advogada, foi-lhe na jugular. Ou pagavam US$ 7 milhões ou seriam denunciados. Pagaram US$ 6 milhões, com uma cláusula de segredo que durou cinco anos.

Nisso tudo, houve um cavalheiro, o professor James Hansen, autor da biografia autorizada de Armstrong (“O Primeiro Homem”), publicada nos Estados Unidos em 2005. Nesse tipo de livro o autor aceita omitir fatos a pedido do biografado ou de sua família. Ele sabia de tudo, mas limitou-se a escrever uma frase críptica: “Fora do pequeno círculo de sua família, dos amigos e da equipe médica que cuidou dele, talvez nunca se venha a saber exatamente o que aconteceu com Neil no hospital ao longo das duas semanas que culminaram com sua morte”.

Na semana passada Hansen saudou a revelação do Times, para que o que aconteceu a Armstrong não volte a acontecer.

26 de julho de 2019

REFORMAS PREVIDENCIÁRIA, TRIBUTÁRIA E CRESCIMENTO!

Estado de S.Paulo (25) entrevista ARMINIO FRAGA.

Segundo ex-presidente do BC, nova versão da CPMF é ‘erro’ e há consenso sobre imposto de bens e serviços

Com a reforma da Previdência encaminhada, os holofotes se voltam agora para as negociações sobre a mudança no sistema tributário. Para o ex-presidente do Banco Central e sócio-fundador da Gávea Investimentos, Arminio Fraga, essa nova etapa reformista deve ser mais difícil de passar do que as novas regras previdenciárias. “Do lado técnico, parece haver consenso da direção de um imposto sobre bens e serviços, não cumulativo, desenhado em bases modernas”, diz. Para ele, uma nova versão da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) seria um erro, por ser um imposto regressivo, cumulativo e de base frágil.

Ler, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Qual sua avaliação sobre a potência fiscal estimada com o texto da reforma da Previdência? Sigo os números do governo, mas subtraindo algumas receitas de impostos não diretamente ligadas ao sistema. O primeiro turno deu uns R$ 750 bilhões, mais a parte de fraudes. Foi um bom resultado. Há risco de desidratação, mas, por outro lado, há chance de os Estados voltarem e isso ajuda muito na solução precária da situação fiscal desses entes.

Mesmo com essa economia, o País estaria fadado a discutir o tema de novo em quanto tempo? Difícil dizer, depende de muita coisa. Dez anos se tudo der certo. Se não, antes.

Quais as consequências caso Estados e municípios fiquem mesmo fora da reforma? Quebradeira, arrocho geral, atrasos de pagamentos, inclusive folha.

Isso levaria os Estados a pedirem mais recursos para União? O buraco dos Estados existe. Uma solução que resolva a parte da Previdência, que é estrutural, seria crucial. Qualquer outro caminho seria complicado, inclusive porque o governo federal tem de lidar com os próprios problemas fiscais.

O que falta para o Brasil retomar a trajetória de crescimento? Muita coisa. O crescimento sustentado depende de mais investimento em gente e em capital tradicional, como infraestrutura. Depende de confiança, para que os horizontes se alonguem. Para que isso ocorra será necessário um ajuste muito maior no Estado. Essas iniciativas, se bem desenhadas, teriam grande impacto na (redução da) desigualdade, condição necessária para o desenvolvimento do País.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que vai apresentar grande programa de privatização. Isso ajuda?

Sou a favor de reduzir a presença do Estado. Faz parte da solução, mas não é suficiente.

Existe projeção de tamanho ideal para o Estado brasileiro? Não existe isso, mas, para um país atrasado e desigual, faz sentido contar com o Estado para reduzir as desigualdades, por meio de uma rede de proteção social e da geração de oportunidades e dos investimentos que já mencionei.

Há várias propostas de reforma tributária. Como o sr. vê o cenário para aprovação?

Me parece mais difícil de passar do que a reforma da Previdência. Do lado técnico, parece haver um consenso na direção de um imposto sobre bens e serviços, não cumulativo, desenhado em bases modernas. Esse IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) seria um grande IVA. O ministério insiste numa nova CPMF, mas o próprio presidente sinaliza contra. Seria um erro: é um imposto regressivo, cumulativo, de base frágil.

O que o sr. acha da ‘briga’ de propostas da reforma tributária? O Estado já extrai 33% do PIB em impostos. A alíquota apenas equaliza as coisas. Hoje, o setor de serviços paga muito pouco. Em alguns casos são verdadeiras aberrações, muitas inclusive embutidas no imposto de renda.

O sr. vê a continuidade do protagonismo de Rodrigo Maia (presidente da Câmara) na aprovação das reformas?

Tudo indica que sim. De um lado, tem funcionado muito bem sob a liderança de Rodrigo Maia. E de outro, não há alternativa.

O sr. acha possível aprovamos também reformas que repensem o Estado e a microeconomia? Espero que sim. Incluiria também uma reforma do Estado.

O mercado alegava que, aprovada a reforma da Previdência, os investidores estrangeiros voltariam, mas o saldo da Bolsa ainda é negativo. O que faltou?

O mercado já vinha antecipando a aprovação em primeiro turno e a alta chance de aprovação ao final do percurso. Em geral, nesses momentos, o tal do mercado olha para frente e tenta imaginar o que mais vem por aí. O mercado gosta do gerúndio, ou seja, das coisas melhorando.

O sr. considera que o câmbio está desequilibrado?

Não costumo responder essa pergunta, mas, no geral, com visão nos fundamentos econômicos e a prazo médio, não vejo grandes distorções. Portanto, não deveria afetar muito as decisões de entrada ou saída de estrangeiros.

25 de julho de 2019

COMO A DESINFORMAÇÃO FOI TRANSFORMADA EM UMA ARMA NO SÉCULO 21 USADA POR GOVERNOS AO REDOR DO MUNDO!

(Timothy Snyder, historiador americano e autor do livro ‘Na Contramão da Liberdade’ – Aliás – Estado de S.Paulo, 21) Dias antes de a Rússia invadir a Ucrânia, em março de 2014, a internet estava repleta de histórias que descreviam atrocidades cometidas por ucranianos na Crimeia, território que estava em disputa pelos dois países. No entanto, os relatos eram falsos e haviam sido propagados por trolls e robôs criados pela inteligência russa com objetivo de confundir a opinião pública ucraniana e internacional. Envenenar as redes sociais – a guerra da informação – passou a ser parte da política externa do presidente da Rússia, Vladimir Putin, revela o historiador e professor de Yale Timothy Snyder, especialista em temas como autoritarismo e Leste Europeu, em seu novo e minucioso livro publicado no Brasil: Na Contramão da Liberdade. “Isso funcionou extremamente bem e sugere que esse pode ser o meio pelo qual guerras sejam travadas no futuro (…) É barato, fácil de fazer e difícil de rastrear”, afirma Snyder ao Aliás.

O novo livro do autor de Sobre a Tirania explica o papel e a influência da Rússia no mundo de hoje e o pensamento de Putin, mostrando por que o líder russo se aliou a políticos de extrema-direita na Europa e apoiou a candidatura de Donald Trump nos Estados Unidos. “O apoio a Trump fez parte de uma política maior (da Rússia) de apoiar candidatos que rompam com a democracia”, disse. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Aliás, por telefone.

P: A desinformação está vencendo a batalha contra a verdade e os fatos, interferindo no resultado de eleições. Como resolver esse problema?

R: A primeira coisa é que temos de tomar como padrões éticos que fatos são bons. E fatos têm um valor e têm um custo. Falando tecnicamente, desinformação é de graça e, por outro lado, fatos requerem trabalho, e trabalho tem custo, tempo e dinheiro. Em segundo lugar, na prática, temos de alocar recursos para produzi-los, assim como temos recursos para outras coisas que reconhecemos que são boas, como água tratada ou energia acessível. Isso é crucial. Temos de ter padrões éticos e recursos por trás disso. De outra forma, na maneira como a internet funciona, seremos simplesmente transformados em criaturas movidas por emoções, porque não têm acesso aos fatos.

P: O sr. acredita que a ascensão de governos autoritários está relacionada à crise econômica que vemos desde 2008?

R: Sim, de duas formas. Primeiro, em várias partes do mundo, a recuperação da crise de 2008 tem sido uma recuperação para os mais ricos, e não para todos. Nos Estados Unidos, a maioria da nova riqueza gerada está nas mãos de uma minoria. Se você olha o PIB, a economia doméstica parece que está se recuperando, mas, se você olha como as pessoas vivem, elas não tiveram melhoras nos últimos dez anos. Em segundo lugar, há um problema mais profundo. Ninguém reagiu aos problemas de 2008 com novas ideias ou novos pensamentos. Ninguém disse: ‘Precisamos reparar o sistema’, ‘Temos de justificar a democracia de outra maneira para além do crescimento econômico’. Para mim, o grande problema é ideológico: deveríamos ter argumentos para a democracia sobre pessoas e sobre como as pessoas podem mudar suas vidas para melhor, mais do que achar que a democracia, automaticamente, resulta em crescimento econômico, o que não acontece.

P: No livro, o sr. aborda as relações da Rússia e do presidente Vladimir Putin com a Ucrânia. Poderíamos classificar a invasão russa à Ucrânia em 2014 como um acontecimento que inaugura essa nova onda de autoritarismo no mundo?

R: Eu tenho dado muita atenção a Putin e à invasão russa à Ucrânia porque acho que ela revela uma série de problemas centrais. O número um são as oligarquias e a extrema desigualdade de renda. Putin é um oligarca. E ele e as pessoas em seu entorno controlam a maior parte da riqueza da Rússia, o que significa que eles têm um problema. Eles têm de governar com autoritarismo, mas explicando aos russos que nenhum outro lugar do mundo é melhor, o que leva à criação de uma política externa que tenta mostrar que a democracia ao redor da Rússia e no Ocidente, em geral, não funciona tão bem. Um segundo ponto que é típico da relação entre Rússia e Ucrânia é o modo como o autoritarismo é, agora, exportado. Vemos isso mais claramente na Rússia, mas podemos ver uma versão disso na China e algumas marcas na administração Trump. O terceiro ponto é típico da Rússia. Foi inaugurado em 2014 e é o uso do ‘mundo digital’. Quando invadiu a Ucrânia em 2014 foi uma guerra convencional: eles usaram artilharia, aviões e enviaram tropas, mas, muito mais importante que isso, foi a guerra da informação, desenhada para confundir as pessoas sobre o que estava acontecendo, mudar as discussões e chegar a pessoas de outros países ocidentais para fazê-las pensar de maneira totalmente diferente. Isso funcionou extremamente bem e sugere que esse pode ser o meio pelo qual guerras sejam travadas no futuro.

P: Qual o impacto da guerra digital e da desinformação no século 21?

R: Graças à internet, nós sabemos mais sobre os outros do que estávamos acostumados. Mas muito do que sabemos tem relação com as emoções das pessoas, como elas se sentem. Se você tem dinheiro, se você é um Estado ou uma grande empresa, você pode descobrir o que as pessoas acreditam, do que têm medo, e usar essa informação. E isso é novo. Porque são atores políticos não convencionais em campanhas políticas. Então, lugares que eram pensados como “seguros” para a democracia, como Estados Unidos e Grã-Bretanha, podem ser alvo de campanhas organizadas para afetar o resultado de eleições. Creio que isso continuará sendo um grande problema no século 21, porque é barato, fácil de fazer e difícil de rastrear. A principal maneira de nos defender é reconhecer que precisamos dos fatos, especialmente dos fatos locais, e do jornalismo local e nacional.

P: Como o sr. descreve no livro, Putin atua para desestabilizar democracias. Como ele se tornou um presidente tão poderoso na Rússia?

R: É uma ótima pergunta. Ele chegou ao poder porque o presidente anterior a ele, Boris Yeltsin, precisava de alguém que o protegesse. Ele se tornou um presidente popular depois de começar e vencer uma guerra na Chechênia, mas acho que o poder que ele tem hoje se dá porque ele foi capaz de fazer com que a oligarquia russa trabalhasse para ele. Putin herdou uma Rússia com extrema desigualdade, e seu mérito político foi quebrar algumas oligarquias e trazer outras para seu sistema. Putin e pessoas próximas a ele são muito ricas. O presidente tomou canais privados de televisão e os fez trabalhar para o governo, esse é o outro segredo. Você tem cinco ou seis canais na Rússia que parecem independentes, mas são coordenados para mandar a mesma mensagem. A Rússia é, basicamente, uma sociedade televisiva, então essa é uma outra razão para que tenha se tornado tão popular. Mas eu acho que, cedo ou tarde, terá sérios problemas. Ele não ficará para sempre.

P: Por que Putin tem apoiado políticos de extrema direita na Europa, como na Áustria e na Alemanha? Podemos considerá-lo uma espécie de líder da extrema-direita?

R: Primeiro, porque Putin não pode continuar reformas políticas significantes dentro da Federação Russa. Ele define a Rússia em torno de valores que incluem se opor aos homossexuais, à imigração, a pessoas que são diferentes. Isso é muito atraente para nacionalistas brancos nos EUA, nacionalistas de extrema-direita na Europa e outras pessoas pelo mundo. Uma segunda coisa que está acontecendo é que o Estado russo, por várias razões, quer enfraquecer a União Europeia e os EUA. Para isso, apoia a extrema-direita. Terceira coisa: a Federação Russa é pró-aquecimento global, e tenta confundir o debate. Isso também está acontecendo e pouca gente percebe.

P: Por que Putin decidiu apoiar a eleição de Donald Trump em 2016?

R: Sou um historiador, tenho certeza de que em 50 anos saberemos coisas que não sabemos agora. Mas, na minha compreensão, o apoio a Trump fez parte de uma política maior de apoiar candidatos que rompam com a democracia. Antes de apoiar Trump, a Rússia tinha invadido a Ucrânia, tinha apoiado partidos de extrema-direita na União Europeia, tinha apoiado o Brexit. Na minha visão, foi apenas mais um exemplo de uma política maior contra a democracia no Ocidente.

P: O senhor escreveu que Donald Trump é um populista sádico. O que isso significa?

R: Nós usamos muito a palavra populismo, mas ela contém a palavra “pessoas”, “popular”. No caso de Trump, acho que ele não está interessado em ajudar nenhum segmento da população americana. Sua política é trazer para as pessoas mais dor, desigualdade, mais suicídios e assim por diante.

P: No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, como Trump e Putin, ataca instituições como a imprensa. Como o sr. analisa o governo Bolsonaro?

R: O que eu vejo é um típico desejo das pessoas de encontrar soluções rápidas para problemas como a corrupção. Mas o problema da corrupção não é de uma só pessoa, é da lei. Trump também fala de corrupção, mesmo sabendo que ele próprio é uma pessoa extremamente corrupta. Bolsonaro tem um comportamento típico de autoritário, de buscar inimigos internos, os negros, os homossexuais, de negar as mudanças climáticas, a aceleração do aquecimento global, uma política que se diz distante da corrupção, mas está próxima de pessoas corruptas. Tudo isso é muito típico.

24 de julho de 2019

EM 03/10/2016 ESTE EX-BLOG ANALISOU O RESULTADO DAS  ELEIÇÕES PARA VEREADOR EM FUNÇÃO DAS PRIMEIRAS MUDANÇAS NAS REGRAS ELEITORAIS! 

EX-BLOG DE 03/10/2016:

ELEIÇÕES NO RIO RETRATAM A MUDANÇA DA LEGISLAÇÃO ELEITORAL!

1. Não poderia haver demonstração mais clara do impacto da mudança na lei eleitoral que o resultado das eleições na cidade do Rio de Janeiro. Antes disso, é importante sublinhar que ocorreu algo que todos previam. A crise política, econômica, social e moral que atravessa o país induziu ao Não Voto (abstenção + brancos + nulos). De cada 100 eleitores 24,28 não foram votar, restando 75,72. Destes 75,72, 18,26% anularam ou votaram em branco, restando 61,89. Portanto 38,11% dos eleitores inscritos não votaram.

2. Para comparar com as pesquisas pré-eleitorais, deve-se incluir na base dos votos os brancos e nulos. Dessa forma, Crivella obteve 23,4% dos votos totais, o que significa quase 7 pontos a menos que nas pesquisas pré-eleitorais. Freixo obteve 15,4% ou uns 3 pontos acima das pesquisas. Pedro Paulo 13,6% ou uns 2 pontos acima das pesquisas e Bolsonaro 11,8% ou uns 3 pontos acima das pesquisas. Os resultados de Indio e Osorio, abaixo das pesquisas pré-eleitorais, explicam o avanço de Pedro Paulo e Bolsonaro. A queda de Jandira explica a troca com Freixo. E a queda de Crivella é explicada pelo aumento dos votos brancos, nulos e abstenção prevista. Funcionou o voto útil para Freixo e para Pedro Paulo e Bolsonaro, só que nesses últimos dois casos o voto útil foi repartido, o que não foi suficiente para levá-los ao segundo turno.

3. Este Ex-Blog, em duas notas anteriores, lembrava que a mudança na legislação eleitoral –sem doações empresariais e sem propaganda na rua- inverteu o sentido de formação do voto para o legislativo, no caso para Vereador. De cima para baixo –de antes- com a massa de propaganda, passou a ser de baixo para cima, com o eleitor encontrando um novo cenário das ruas e construindo seu voto de forma mais reflexiva.

4. Com isso, a proporção do voto de opinião pública cresceu significativamente. O sistema atual restringiu muito a possibilidade de que os Vereadores fizessem campanha na cidade toda. Os três Vereadores mais votados tiveram esta representação de opinião pública. O quociente eleitoral de 59,4 mil votos foi atingido por 3 vereadores e por muito pouco por 4. Em 2012, uma só Vereadora atingiu o quociente, praticamente na mesma linha, ou seja X 1. Agora, em 2016, os três primeiros somados atingiram 4,5 vezes o quociente eleitoral.

5. O voto distrital distribuiu-se de forma diferente. Antes, ao voto em seus redutos eram agregados votos espalhados por força da propaganda massiva e dos recursos abundantes. Agora, os candidatos de concentração distrital afirmaram sua representação, mas com um patamar de votos menor, o que permitiu que a representação tipicamente distrital fosse ampliada.

6. Dessa forma, a nova legislação, se mantida, apontará no futuro para a adoção do voto em lista, do voto distrital ou do misto de ambos – ou voto distrital misto no modelo alemão.

7. Finalmente, o que também foi previsto em notas anteriores, ocorreu: um maior fatiamento da Câmara Municipal. Agora serão 19 partidos no legislativo da cidade do Rio de Janeiro. Se já ocorresse a proibição das coligações e a cláusula de barreira municipal, essa quantidade de partidos seria menor.

8. De qualquer forma, a resultante hoje é o empoderamento dos Vereadores e uma exigência muito maior de articulação política no legislativo e a eliminação do rolo compressor tão caro aos chefes de poder executivo (no caso, prefeitos).

23 de julho de 2019

ALGUMAS CURIOSIDADES ELEITORAIS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO COM VISTAS A 2020!

1. Em 2016, com as coligações vigentes, foram eleitos candidatos de 19 partidos.

2. Caso a proibição de coligações já existisse, apenas 17 teriam conseguido eleger pelo menos 1 vereador. E apenas 9 partidos teriam eleito 2 ou mais.

3. Em 2016, o PSL, somando todos os candidatos e o voto de legenda, teve apenas 10 mil votos.

4. O PSC, que tinha a candidatura do dep. Flávio Bolsonaro, teve no total 182 mil votos, sendo 106 mil destes do ver. Carlos Bolsonaro. Elegeram 4, mas o 4ª colocado não teve 10% do quociente e não entrou. Essa regra já existia.

5. Quem não atinge 10% não entra direto, mas pode ser suplente temporário ou definitivo se surgir a oportunidade. É o caso de Major Elitusalem (PSC) e Fátima da Solidariedade (PSC), que hoje são vereadores titulares, com 4497 e 4419 votos, por Otoni de Paula ter sido eleito deputado federal e Claudio Castro vice governador; e de Tiãozinho do Jacaré (PRB), atualmente suplente no exercício, com 5225 votos, por João Mendes de Jesus ser secretário.

6. Dos candidatos a deputado federal em 2018 que não foram eleitos e que poderiam vir vereadores, os que tiveram mais votos na cidade do Rio foram Otávio Leite (PSDB) com 34 mil votos no Rio, Laura Carneiro (DEM) com 25 mil votos no Rio, e Tio Carlos (SD) com 21 mil votos no Rio. Dos candidatos a deputado estadual foram Sérgio Fernandes (PDT) com 26 mil votos no Rio e Cidinha Campos (PDT) com 20 mil votos no Rio. O que teve mais votos no Rio pelo DEM para deputado estadual e não se elegeu foi Milton Rangel com 6 mil votos no Rio. Com a ascensão de Carlo Caiado a deputado estadual, assumiu o primeiro suplente – vereador Mateus Floriano.

7. Laura Carneiro e Milton Rangel fortaleceriam a chapa do DEM, assim como Marcio Ribeiro (11 mil votos no Rio) e Alex Costa (6 mil votos no Rio), que foram candidatos a deputado estadual pelo Avante, mas são ligados ao dep. Pedro Paulo, do DEM.

22 de julho de 2019

2020: ANSIEDADE PRÉ-ELEITORAL SÓ ATRAPALHA!

1. Três importantes alterações na legislação eleitoral alteraram as condições eleitorais. Quem se antecipar, levando em conta as regras de 2016 e de antes, estará correndo riscos desnecessários.

2. A primeira delas é que, agora, as coligações, nas eleições proporcionais, no caso de vereadores, estão proibidas. Cada partido contará apenas com seus próprios candidatos. A contabilidade de antes, avaliando as probabilidades dentro de outra legenda coligada, não existirá mais.

3. A segunda é a janela eleitoral que será reaberta em março. Esta vai provocar uma dança partidária, especialmente pelo fim das coligações. O resultado eleitoral de 2018 nas eleições proporcionais ajudará as avaliações. Quantos e quais não teriam sido eleitos sem as coligações?

4. Neste momento, já começaram as contas por parte dos pré-candidatos que precisam somar os votos de outra legenda para se elegerem. Ou seja, agora precisam mudar de legenda e esperam março com ansiedade. Mas as conversas e decisões precisam ser antecipadas.

5. E as legendas mais fortes fazem suas próprias contas para ver se vale a pena abrir a sua janela, o que pode prejudicar — seus atuais.

6. A terceira questão é a nova regra eleitoral que estabelece que só são considerados eleitos os candidatos que obtiverem 10% ou mais do voto geral de legenda. Em 2016, no Rio, foram 5.841 votos, ou 0,2%. Menos que isso o candidato estaria excluído.

7. Se levarmos em conta as super votações obtidas em 2018 para deputados e o novo quadro eleitoral com a eleição presidencial de 2018, veremos os riscos que votações tipo Tiririca podem gerar para candidatos com pequenas votações.

8. No Rio, em 2016, os partidos que obtiveram o maior número de votos de legenda não incluíam o PSL, que cresceu em 2018 com a eleição presidencial. Os partidos com os mais fortes candidatos a prefeito foram os que tiveram a maior quantidade de votos de legenda. Em outro extremo, o partido que controlava a prefeitura do Rio e elegeu a maior bancada. E agora?

9. A escolha dos candidatos a prefeito em 2020 terá, obrigatoriamente, de levar em conta as 3 questões elencadas. Os partidos fortes em suas candidaturas a vereador terão que lançar candidatos a prefeito mesmo que não estejam entre os pré-favoritos.

10. Bem, que todos comecem a fazer suas contas e conversar com potenciais pré-candidatos a prefeito e a vereador para a montagem de suas candidaturas. Há tempo. Março ainda está longe. Ainda.

19 de julho de 2019

SEMINÁRIO NA FGV COM MANUEL CASTELLS!

Relatório de Bruno Kazuhiro, presidente nacional da Juventude do DEM, 16/07.

– Felipe Santa Cruz, presidente OAB nacional

Hoje o Diário Oficial é o Twitter. E isso cai em um espaço sem lei. Quando uma reputação é aniquilada, por exemplo, não temos métodos jurídicos em tempo real para restituir isso. Pedimos que a pessoa tenha paciência. Temos que fazer o direito avançar.

Hoje a igualdade é nivelada por baixo. Há patamares mínimos de proteção. E todos que estão no direito se motivaram por aumentar essa proteção.

– Fernanda da Escossia, editora da revista Piauí e professora

Boatos sempre existiram, mas a sociedade atual, em rede, como diz Castells, permite uma disseminação muito mais veloz, repetida, contínua de notícias falsas.

Houve associação de elementos religiosos e de comportamento na busca da construção de um discurso de desinformação. O caso da terra ser supostamente plana por exemplo.

Existe uma avalanche de informações descontextualizadas.

Liberdade de expressão não é direito de mentir.

– Marco Aurélio Ruediger

Comenta a enorme existência de robôs nas redes sociais, de apoio a todos os principais candidatos, disseminando notícias reais em apoio e também muitas notícias falsas.

Grande influência das redes sociais na eleição para presidente do Senado, onde houve pressão significativa contra Renan Calheiros e contra a votação ser secreta.

Vazamentos sobre a operação Lava-Jato impulsionaram um crescimento vertiginoso de postagens nas redes sociais sobre o assunto e sobre as respostas dadas pelos envolvidos.

Na aprovação da reforma da previdência centenas de parlamentares faziam selfies e videos ao vivo, construindo suas narrativas sobre a votação e sobre sua participação nela.

Gigantesco impacto das falas e ações de Rodrigo Maia e Tabata Amaral no âmbito da reforma da previdência.

O centro político nas redes sociais se reconstrói em torno de Rodrigo Maia após estar ausente da discussão eleitoral. Rodrigo recebe críticas à esquerda e à direita, mas passa a ser a cara do centro. O centro continua indo pior nas redes, mas teve agora um protagonista.

Se o centro assumir a construção de narrativas e uma cara, isso pode ajudar a quebrar a perversa polarização que temos.

O debate político agora se intensifica também em momentos que não são eleitorais. É constante.

Continua existindo uma enorme quantidade de robôs atuando nesse debate e na desinformação.

Dinâmica social com uso de redes e comunicação em tempo real é o “novo normal”. Transformou política e economia de forma permanente em nossa sociedade.

Nos EUA existem redes sociais de direita, onde se debatem ideias e discursos que depois vão para outras redes majoritárias. É um ecossistema.

Muitas redes não possuem sede no Brasil. Como responsabilizar conteúdos nocivos e responsabilizar sem atacar a liberdade de expressão?

As escolas de comunicação e jornalismo ainda estão no século XX. No Brasil principalmente. A própria FGV precisa contribuir com essa modernização.

– Manuel Castells

O poder existe de duas formas: coerção e convencimento, que podem se somar. O poder que se apóia apenas na coerção é débil.

Ambas as formas têm algo em comum: a batalha se dá na mente de cada pessoa. Os humanos são animais sociais. Então estamos falando de comunicação.

A comunicação portanto altera as relações de poder em todas as sociedades.

As redes sociais desmontam as estratégias de construção do poder existentes até antes delas. Saímos dos meios de comunicação de massa e vamos à comunicação de rede em massa. Concordo que é o “novo normal”.

A informação, pelas grandes agências e pelas empresas, está cada vez mais centralizada. Mas a comunicação está cada vez mais descentralizada. Quanto mais comunicamos, ao mesmo tempo mais somos vigados e nossas informações concentradas. Os poderes reais nunca tiveram tanta informação sobre os cidadãos e os cidadãos nunca tiveram tanta capacidade de comunicar e vigiar aqueles que os vigiam.

Qualquer pessoa com um smartphone denuncia qualquer coisa. Os poderosos se escondem. Afinal, todo poderoso faz algo que não quer ver divulgado. Estão todos na “clandestinidade”.

Os grandes meios de comunicação perderam poder. Não decidem eleições. As redes sociais decidem a partir de narrativas feitas em cima de notícias dos meios de comunicação.

Somos animais emocionais. Não somos racionais. Fundamentalmente fazemos escolhas por emoções. Racionalizamos emoções. Depois de escolher o que queremos acreditar, filtramos as mensagens que queremos receber e bloqueamos as que não queremos. Na vida pessoal, social e política. Assistimos programas e lemos jornais que sabemos que vamos estar de acordo. Não queremos nos cansar debatendo internamente o tempo todo.

Nos informamos para confirmar o que acreditamos e não para saber das coisas. A participação nas redes sociais então é feita a partir de uma tomada de decisão mental prévia, oriunda da construção de quem somos.

Esse cenário destrói hoje a arquitetura social do progressismo no mundo inteiro. A esquerda, muito mais que a direita, acredita que se o seu programa atende às necessidades racionais do cidadão, ganhará o voto. Mas não é assim. São as emoções que decidem. Há gente que acredita que vacinas são ruins.

Então os programas de regressão social, demagógicos, crescem. Mas temos que entender porque as pessoas estão aplaudindo essas ideias. Apenas desqualificar os autoritários fica dentro do elitismo, não se conecta com as massas. Estamos em uma época de combate à razão.  Se estamos numa época de incerteza e crise de legitimidade, então cada pessoa irá se agarrar ao que ela acredita, ao que ela tem certeza. Isso explica a eleição de Trump, Brexit, ascensão da extrema direita na Europa. O Brasil também, que infelizmente não é um caso original. É um processo muito maior onde a verdade é que as emoções negativas quanto a temas de direitos humanos são majoritárias na população.

A concentração de renda atual ajuda a crise de legitimidade. Os impostos ajudando os grandes bancos na crise econômica mais recente também explica a crise de legitimidade. A falta de renovação interna dos partidos políticos, a vontade dos mais velhos de se perpetuar e cooptar o sangue novo, também explica a crise de legitimidade.

Os jovens adoram as redes sociais e a tecnologia por ser uma cultura de autonomia. Os jovens adoram autonomia. Os setores que se sentem vulneráveis frente à tecnologia que eles não entendem, que elimina postos de trabalho, que ajuda concentração de renda, são as faixas mais velhas da sociedade.

Há então a ruptura da confiança, gerando emoções negativas e rejeição a elementos que os intelectuais cosmopolitas entendem ser tão óbvios e racionais.

Os demagógicos então vão para as emoções e usam as redes sociais para disseminar seu discurso e ganhar batalhas culturais, construindo uma mentalidade a favor de políticos que vencem pela democracia mas defendem valores contra a democracia. Não temos dúvida de que são demagogos, mas quem permite a subida desses demagogos?

Sabemos que empresários cosmopolitas financiaram movimentos brasileiros, como o MBL, e construíram narrativa aproveitada pelos demagogos. Eles não sabiam que estavam construindo isso.

Estamos em um mundo novo, de construção de redes e grupos. Essas redes e grupos são manipulados por robôs financiados por poderosos. Eles não inventam mensagens, eles ativam emoções que existem e que já sabem que funcionam. Basta tocar nas emoções conservadoras. Todos querem segurança em um mundo incerto. Como superar o medo? Será que preciso de uma arma?

Cabe ao progressismo encontrar formas de contrapor e mostrar seus valores humanos. Uma compreensão profunda das relações entre sociedade, poder e comunicação.

Costumo irritar meus amigos ao não responder “o que fazer”. Meus valores estão claros e minhas observações também. Mas acredito que as fórmulas são sempre profundamente específicas, não me atreveria a dizer o que Brasil precisa fazer. Mas posso dizer que o país entra hoje na ditadura da era da informação, que manipula a população contra os direitos humanos e desconstrói as instituições, as universidades, etc. A resistência final à desinformação é uma população bem informada.

Posso dar um conselho: Não neguem a realidade. Se há milhões de pessoas que sentem emoções que nos parecem primitivas, aceitemos que é assim e passemos a buscar respostas e soluções para essas pessoas. Os analistas brasileiros serão capazes de construir instrumentos para ajudar essa consciência.

18 de julho de 2019

O HOMEM QUE SEGURA O BRASIL NÃO É JAIR BOLSONARO!

(Bloomberg Businessweek, 17) Depois de ficar sabendo de uma possível proposta do Congresso para tirar-lhe alguns poderes, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, reclamou que os legisladores do país querem fazer dele um chefe de estado cerimonial, como a rainha da Inglaterra. Isso ainda não aconteceu, mas quando se trata de definir a agenda legislativa do país, fica claro quem tem o poder real: Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados.

Em 11 de julho, o político de 49 anos do partido Democratas, de centro-direita, fez a renovação do generoso sistema de seguridade social do Brasil ultrapassar seu primeiro e maior obstáculo legislativo. A reforma previdenciária é uma necessidade que escapou a quatro administrações anteriores. Antes de conseguir passar pela Câmara, Maia passou meses unindo 17 partidos indóceis para finalmente entregar uma medida que deve economizar quase 1 trilhão de reais na próxima década. “Rodrigo Maia construiu uma base parlamentar que o governo não construiu e não tem”, diz Alexandre Frota, um congressista do PSL do próprio Bolsonaro. “O Brasil vai agradecer a ele no futuro”.

Bolsonaro desperdiçou muito de seu capital político por causa de sua beligerância e propensão para guerras culturais. Isso deixa Maia livre para seguir ou frustrar a agenda do governo – e manter a democracia do Brasil unida. O próprio Maia diz que está meramente preenchendo um vazio. “Até agora, o poder executivo não apresentou uma agenda para as principais questões, no meu ponto de vista”, disse ele em uma entrevista em mensagem de texto.

O presidente da Câmara adotou aspectos pró-mercado do programa de Bolsonaro, mas bloqueou algumas das propostas mais inflamadas do presidente, incluindo um decreto para afrouxar as leis de controle de armas. Maia também adiou os projetos anticrime apresentados pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, um herói dos direitistas por seu papel na prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por acusações de corrupção, e aliado de Bolsonaro.

Em nenhum outro momento as habilidades de Maia foram mais evidentes do que em seu manejo da proposta de reforma da previdência – uma política econômica emblemática, embora uma que o próprio Bolsonaro tenha abraçado com pouco entusiasmo.

Maia teve que conduzir o projeto por um caminho perigoso através da Câmara dos Deputados. A Câmara possui nada menos que 26 partidos, e o próprio PSL representa apenas cerca de 10% de seus legisladores. Depois de uma votação final na Câmara, o projeto será enviado ao Senado em agosto. “Sem Rodrigo Maia, não teríamos chegado a este momento”, disse o deputado do PSL, Waldir Soares de Oliveira, ao declarar o apoio de seu partido.

Eleito pela primeira vez como presidente da Câmara em 2016 após o impeachment polarizador da presidente Dilma Rousseff, a sucessora de Lula, Maia provou ser hábil em lidar com as facções em conflito na Câmara. Entre elas estão alguns que detestam Bolsonaro e apoiam o Partido dos Trabalhadores de Lula e Rousseff; outros que apoiam Bolsonaro e detestam o Partido dos Trabalhadores; e o amorfo “centrão”, um grupo de partidos ideologicamente flexíveis que gravita em direção a dinheiro ou poder.

Desde que Bolsonaro assumiu o poder, Maia “abraçou a agenda econômica do governo, colocou um freio na agenda de valores”, diz Thomaz Favaro, analista-chefe da consultoria Control Risks.

Pouco antes da votação final sobre a reforma previdenciária, Maia criticou os que atacam as instituições brasileiras, uma referência aos apoiadores mais radicais de Bolsonaro, que querem fechar os tribunais e o Congresso e entregar todo o poder do governo a Bolsonaro. “Não haverá investimento privado, mesmo com uma reforma tributária, mesmo com uma reforma previdenciária, se não tivermos uma democracia forte”, disse ele. “Os investidores de longo prazo não investem em um país que ataca suas instituições.” Maia chorou quando seus partidários lhe aplaudiram de pé.

O maior feito de Maia pode ser o de fazer com que a tradicionalmente mais complacente Câmara dos Deputados se torne uma força. “No passado, o legislativo era tratado como uma espécie de apêndice do executivo”, diz Michel Temer, que já foi presidente da Câmara por três vezes e se tornou presidente depois da queda de Dilma. “O Congresso está passando por um grande momento.”

Marcos Pereira, vice-presidente da Câmara e ex-ministro, diz que o legislativo é um baluarte contra aqueles que devolveriam a nação à autocracia. “Isso é democracia, e não a entrega do poder nas mãos de um soberano”, diz ele. “Os eleitores de Bolsonaro não entendem isso.”

“Pressão, crítica são sempre importantes para que possamos refletir sobre o que estamos fazendo”, disse Maia em mensagem de texto. “O que às vezes me incomoda é que há um grupo de pessoas ao redor do presidente que é muito radical, que não é realmente contra mim ou deputado A, B ou C, ou este ou aquele senador ou juiz do STF. Eles são contra as instituições. ”Ele acrescentou:“ Eles são um movimento antidemocrático pequeno e isso não me pressiona, mas me preocupa ”.

Conclusão – Embora ele não tenha o magnetismo de Bolsonaro, Maia teve sucesso onde o presidente fracassa ao construir pacientemente e diligentemente coalizões – e poder.

17 de julho de 2019

COCAÍNA ABRE ROTA PARA AUSTRÁLIA E NOVA ZELÂNDIA!

(Estado de S.Paulo, 14) Apreensões cada vez mais frequentes em ilhas do Pacífico Sul fazem especialistas, policiais e autoridades apontarem para o surgimento de uma nova rota da cocaína. Arquipélagos isolados, policiais despreparados e Estados minúsculos incapazes de combater o crime favorecem o fluxo da droga para os crescentes mercados de Austrália e Nova Zelândia, onde o quilo chega a custar 100 vezes mais do que na Colômbia.

A droga chega de várias maneiras, quase sempre pelo mar. Em junho de 2017, o veleiro Alfina atracou no arquipélago de Tuamotu, na Polinésia Francesa, um lugar esquecido no mapa, a 7 mil quilômetros da América do Sul, o continente mais próximo. Com bandeira de Gibraltar, ele havia partido do Panamá com dois marinheiros lituanos e dois letões.

Apesar de uma pequena avaria, a tripulação pretendia chegar à Austrália sem escalas – o que levantou suspeitas de autoridades portuárias francesas. Para revistar o veleiro, no entanto, era preciso uma autorização do Reino Unido, que administra Gibraltar, o que levaria um tempo que os investigadores não tinham. Por isso, quando o barco partiu, levou um rastreador escondido pela polícia.

Por três semanas, a Marinha francesa monitorou o veleiro e decidiu interceptá-lo em altomar, na altura de Tonga, um mês depois de ele deixar a Polinésia. O barco foi levado para o arquipélago de Nova Caledônia, onde a polícia encontrou 1,46 tonelada de cocaína – a maior apreensão da história no Pacífico Sul.

Casos como o do veleiro Alfina são cada vez mais comuns. Em junho, 436 quilos de cocaína foram encontrados em um iate na Polinésia. Em janeiro, a Marinha francesa fez duas apreensões: 639 quilos, em um veleiro nas Ilhas Marquesas, e 809 quilos, em um catamarã ancorado no Taiti. Em setembro, policiais retiraram 500 quilos de cocaína de um iate nas Ilhas Salomão. Em julho do ano passado, navios neozelandeses ajudaram a polícia de Fiji a apreender 50 quilos em duas operações.

Mas não é apenas em barcos privados que a cocaína chega. Ao Estado, o pesquisador José Sousa-Santos, diretor do Strategika Group Asia Pacific, consultoria de risco da Nova Zelândia, contou que organizações criminosas usam também cargueiros e navios de passageiros.

Em novembro, a polícia encontrou no Porto de Auckland 190 quilos de cocaína em caixas de bananas importadas do Panamá. Wei-Jiat Tan, diretor de inteligência de aduanas da Nova Zelândia, diz que o número de apreensões em cruzeiros também cresceu. “Antes, descobríamos apenas quantidades pequenas. De uns anos para cá, apreendemos dezenas de quilos em cada operação.”

Sitiveni Qiliho, comissário de polícia de Fiji, conta que é cada vez mais comum tijolos de cocaína aparecerem nas praias do arquipélago. Por isso, uma das preocupações das autoridades locais é que as pequenas comunidades desavisadas, que tiram os pacotes da água, encontrem outras utilidades para o pó.

Em junho, o jornal britânico The Guardian relatou o caso de um vilarejo na Micronésia em que a cocaína vinha sendo usada para lavar a louça. “Nossa maior preocupação é que as pessoas pensem que esses pacotes contenham açúcar, farinha ou pasta de dente em pó, o que representa um risco para a saúde dessas comunidades”, disse ao jornal Brett Kidner, superintendente da Polícia Federal da Austrália.

O estrago maior, no entanto, é o impacto habitual da cocaína em lugares sem estrutura para lidar com o crime organizado e com a explosão de dependentes. Em ilhas isoladas do Pacífico Sul, como Samoa, Tonga e Fiji já existe um mercado doméstico em formação.

De acordo com Jeremy Douglas, representante regional do Escritório da ONU sobre Drogas e Crime (UNODC), países que servem de passagem de drogas estão condenados a desenvolver um mercado consumidor. “Lugares como o Pacífico Sul são particularmente perigosos. Os países são muito pequenos, com recursos limitados. São Estados soberanos, mas que não têm sistema de saúde e a polícia não está preparada.”

Em Tonga, existe apenas uma clínica de reabilitação, onde trabalha uma única pessoa. Em Fiji, não há nem mesmo especialistas em adição. Os dependentes acabam em um hospital psiquiátrico da capital, Suva, onde cerca de 20% dos pacientes atualmente tratam de abuso de drogas.

Sousa-Santos diz que a nova rota do Pacífico é resultado de uma “tempestade perfeita”. Primeiro, o aumento da repressão no Sudeste da Ásia, que fechou uma passagem crucial, provocando a busca por um novo itinerário – o chamado “efeito balão”. No entanto, mais importante, segundo ele, é o apetite por cocaína nos dois maiores países da Oceania. “A demanda na Austrália e na Nova Zelândia tem relação direta com que está ocorrendo no Pacífico Sul”, disse.

O UNODC estima que 18 milhões de pessoas consumiram cocaína em 2018. A produção mundial, de 2 mil toneladas por ano, é toda concentrada nos Andes, onde cresce a folha de coca. Um quilo de cocaína na Colômbia custa US$ 2.300. Na Austrália, pode chegar a US$ 230 mil – 100 vezes mais. O lucro, portanto, coloca os mercados australianos e neozelandês no radar dos narcotraficantes latinoamericanos.

A demanda nos dois maiores países da Oceania está em alta. Na Austrália, dados oficiais mostram um crescimento de 7,7% de crimes ligados ao consumo de cocaína em um ano, de 2017 para 2018. A Comissão Australiana de Inteligência Criminal, que realiza testes frequentes em estações de tratamento de água, estima que os australianos consumam 3 toneladas da droga por ano. Na Nova Zelândia, que começou este ano a realizar o mesmo tipo de teste, o consumo seria de 700 gramas por semana.

John Coyne, que dirige o programa de segurança de fronteiras do Instituto Australiano de Políticas Estratégicas, diz que o azar dos países do Pacífico é estarem localizados entre as duas pontas do mercado, Austrália e América do Sul. “As ilhas são usadas pelo crime organizado para transportar drogas”, afirma Coyne. “Isso tem consequências terríveis, como aumento da corrupção, pagamento de propinas e enfraquecimento das instituições. Não há como subestimar o impacto que tem no Pacífico o apetite dos australianos por cocaína.”

16 de julho de 2019

ROTEIRO POPULISTA!

(Lourival Sant’Anna – O Estado de S. Paulo, 14) Berço da democracia, a Grécia foi a precursora da atual onda de populismo, com a eleição, em 2015, do premiê Alexis Tsipras, do movimento Coalizão da Esquerda Radical (Syriza). No último domingo, os eleitores gregos puseram fim a esse experimento, trazendo de volta a Nova Democracia, de centro-direita.

Como já escrevi nesta coluna, não se deve extrapolar experiências de um país para outro, e a noção de “tendência” é simplista demais num mundo tão complexo e diverso. Mas isso não nos impede de reconhecer, na tragicomédia grega, o roteiro que o populismo

costuma seguir, em qualquer tempo e lugar, entre a fantasia e o choque com a realidade. Tsipras elegeu-se no auge da crise da dívida, prometendo atropelar as exigências dos credores internacionais de corte nos gastos e aumento nos tributos. Depois de eleito, ainda submeteu os gregos a um ridículo plebiscito, no qual venceu sua proposta de recusar o plano de resgate dos credores.

Semanas depois, o governo em Atenas se resignou à falta de alternativa e passou a aplicar a receita. As contas começaram a se acertar, e a economia, a crescer, após uma década de recessão. Os eleitores gregos chegaram então a uma conclusão óbvia: se é para seguir as regras da economia, então pelo menos que seja com alguém que não briga com elas.

O futuro premiê, Kyriakos Mitsotakis, estudou Relações Internacionais em Stanford, fez MBA na Harvard Business School, trabalhou na empresa de consultoria McKinsey e no banco Chase Manhattan, entre outros. Promete vencer o desemprego de 18% melhorando o ambiente de negócios e cortando impostos sem desequilibrar as contas públicas, algo que os credores e a Comissão Europeia vigiarão com lupa.

A sorte dos gregos foi imensa, pois, como aconteceu com o então presidente Lula, Tsipras abandonou a rebeldia juvenil contra as leis da economia que nutria e assumiu, não sem antes relutar um pouco, as responsabilidades de governante. Se o ciclo petista tivesse durado 4 anos, como na Grécia, em vez de 13, provavelmente não teríamos cavado um buraco tão profundo.

O Syriza foi precursor dos movimentos populistas na Europa. Não pela sua identificação de esquerda, mas pela sua hostilidade ao globalismo e às convenções políticas. O populismo tem florescido mais com uma coloração de direita do que de esquerda (com exceção do M5S na Itália). Mas suas plataformas têm muito em comum.

No seu âmago está um impulso de retorno às origens, uma nostalgia de um passado supostamente bom, que ou só era bom para um grupo ou nunca foi tão bom assim.

Há a condição real de camadas da população prejudicadas pela globalização, e os governos precisam adotar políticas compensatórias para incluí-las. E há a manipulação desse sentimento, por parte de políticos malandros, que atropelam as regras – sejam econômicas ou políticas – para se apropriar de um poder maior do que os limites da contabilidade pública ou da democracia permitem.

As expressões mais visíveis disso são a valorização da intuição em detrimento da técnica e a confusão entre o público e o privado, ambas apresentadas na forma de boa vontade, irreverência, despojamento e proximidade com as pessoas comuns.

Por mais simpático – ou simplório – que seja um filho do presidente se dizer pronto para ser embaixador em Washington porque fez intercâmbio e fritou hambúrgueres nos Estados Unidos, será essa a escolha tecnicamente melhor, para o país?

Foi emblemática a decisão de uma corte de apelações americana, que impediu o presidente Donald Trump de bloquear seguidores do seu perfil no Twitter, já que ele utiliza a rede social para divulgar suas ações de governo. Um presidente não é um cidadão comum. O mundo não é simples e as aparências enganam.

15 de junho de 2019

O GLOBO (14) ENTREVISTA O DEPUTADO RODRIGO MAIA PRESIDENTE DA CÂMARA DE DEPUTADOS!

BRASÍLIA – Um dia depois de aprovar a reforma da Previdência em primeiro turno na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), concedeu entrevista ao GLOBO na qual falou sobre os próximos passos da agenda econômica . Embora ainda seja preciso aprovar a proposta em segundo turno no plenário da Câmara, Maia apontou três novos eixos: reforma tributária , reestruturação de carreiras do funcionalismo e reforma social . Essa última envolve ações para melhorar a alocação do dinheiro público. Segundo Maia, “para recuperar o respeito da sociedade, o parlamento precisa assumir seu protagonismo”.

Segundo Maia, é preocupante o governo não ter uma agenda num momento em que houve aumento da pobreza e do desemprego. Para ele, a liderança do governo no Congresso não tratou dos interesses dos mais pobres na reforma da Previdência e sim das corporações que ajudaram a eleger o presidente Jair Bolsonaro.

– O que a gente quer é que o governo dê certo. Demos uma demonstração disso, e esperamos que eles possam olhar para os brasileiros mais pobres. O presidente Bolsonaro sempre representou corporações, que têm estabilidade no emprego. Esse é um eleitor que não passa fome, não fica desempregado – afirmou Maia.

Leia a íntegra da entrevista:

O Globo: Aprovada a Previdência na Câmara, a agenda reformista veio para ficar?

Rodrigo Maia: Meu sentimento é que sim. A agenda das reformas tem um objetivo. Ninguém quer reformar por reformar. Os deputados estão brigando por R$ 10 milhões de emendas, enquanto a Previdência está tomando da gente R$ 50 bilhões a mais a cada ano. Estamos perdendo esse montante para financiar uma distorção em detrimento de podermos atender ao eleitor que nos trouxe ao parlamento.

OG: Quais são os grandes temas que vêm pela frente?

RM: Além da Previdência, reestruturação de carreiras, reforma tributária e reforma social. Esta última, a Câmara pode fazer. A (deputada) Tábata (Amaral)  trouxe aqui o (economista) Ricardo Paes de Barros para falar sobre a rede de proteção dos trabalhadores. Estamos trabalhando para avaliar a aplicação desses recursos e qual é o melhor formato a ser proposto.

OG: O que seria a reforma social?

RM: Você precisa primeiro avaliar os programas que existem. A aplicação do Bolsa Família. Como ter um formato onde você possa, de fato, trabalhar com foco na educação da primeira infância e na evasão no final do ensino fundamental. Como estimular que as crianças entrem mais cedo na escola e fiquem mais tempo na escola. E estudar os incentivos. Por exemplo, o da cesta básica. Existem economistas que têm convicção de que os R$ 14 bilhões que nós damos como incentivos não chegam na ponta no preço do produto. Temos que pegar tudo o que existe e ver a melhor forma que alocar os recursos, criar programas com recursos existentes, discutir a melhor forma de usar o FGTS. A gente tem um idoso abaixo da linha da pobreza para cinco crianças por uma decisão política do BPC (Benefício de Prestação Continuada), que ninguém tem coragem de mexer. A gente tomou uma decisão de alocar recursos no idoso em detrimento da criança.

OG: O senhor acha que se deve mexer no BPC?

RM: Eu acho que hoje é impossível mexer no BPC. Mas ele é uma alocação de recursos numa parte da sociedade em detrimento de outra. Como não tem recurso para tudo, o volume que você tem para investimentos na criança está menor do que deveria em relação ao idoso.

OG: Como estão as discussões sobre a reforma tributária?

RM: Estamos esperando a proposta do governo e vamos apensar na nossa.

OG: Por que o Congresso apresentou uma proposta?

RM: O Marcos Cintra (secretário da Receita) foi muito agressivo com o parlamento lá atrás, dizendo inclusive que não precisava do parlamento para fazer a reforma tributária. Não sei em que país ele está, se ele está citando a Venezuela. Mas no Brasil é impossível a gente fazer sem o parlamento. Se o secretário é mantido numa relação de confronto com o parlamento, entendemos que deveríamos começar nosso processo de discussão da matéria. Não contra o governo, mas vamos tocar a nossa vida.

OG: O que faz o senhor acreditar que vai ser possível tocar a reforma tributária, especialmente que inclua estados?

RM: Os estados não estão contra uma legislação única de ICMS. A preocupação deles é que apenas uma alíquota é ruim. Só que você pode calibrar. Não é mais Brasil e menos Brasília? Também temos que ver como resolve a Zona Franca e o setor de serviços. Você está gastando muito dinheiro para ter muito menos emprego na Zona Franca. Não quero acabar com a Zona Franca, mas tem que ter uma alocação melhor de recursos.

OG: A reforma tributária é viável para 2019?

RM: Não tenho como aferir. O que eu disse é para tomar cuidado com debate no varejo.

OG: O tema da Câmara é a reforma tributária?

RM: Não. Eu acho que tem muitos projetos em que a gente pode ajudar o setor privado. Tem o projeto de lei da recuperação judicial. Está pronto e a partir de agosto começa a tratar com líderes. O projeto de saneamento, que está pronto para votar em agosto. O projeto do Fundeb. Outro eixo, que é muito sensível, é o da saúde privada. Ela hoje inviabiliza o acesso de quem tem menos recursos. Há a necessidade de (o plano privado) cobrir tudo. A legislação, que deveria ser uma ampla desregulamentação, é uma regulamentação excessiva que prejudica a necessidade de ter mais pessoas na base do setor privado. O problema é que eu tenho certeza de que nenhum ente federado vai ter recursos para investir na área de saúde nos próximos 10 anos.

Tem um projeto que eu fiz com o Rogério Marinho (ex-deputado e atual secretário de Previdência). Nos últimos anos, os planos de saúde passaram a ter situação parecida com o setor público. A área de saúde tem que ter uma solução. E acho que a educação também. O acesso à creche não se dará pelo setor público nos próximos anos. Ou não vai acontecer nada ou vamos ter que construir um modelo híbrido entre público e privado, com referência pública, mas privado. Se eu resolver o problema de vaga em creche em todos os municípios, pelo menos 70% dos municípios não vão aceitar. É um problema de financiamento. O setor público não fará.

OG: O senhor está apresentando uma extensa agenda que vai desde a tributária até políticas de ponta. O protagonismo que o Congresso ganhou na reforma também vai seguir para outras áreas?

RM: Eu acho que há um divórcio da política com a sociedade. E a gente só vai acabar com esse divórcio quando a gente assumir a nossa responsabilidade. Por que eu entrei na reforma da administração pública? Em 2005, eu era líder do PFL e segurei 30 MPs para não deixar aprovar o plano de cargos e salários do Judiciário. Eu dizia que aquilo ia acabar com as carreiras do setor público porque eles colaram o piso salarial no teto. E essa aprovação, porque eu não aguentei a pressão e fiquei sozinho, desorganizou o setor público brasileiro nos três poderes.

OG: Qual é o cenário hoje?

RM: Hoje, não tem mais carreira nos três poderes. E vejo pela Câmara, onde um servidor público chega no teto em poucos anos. Não há estímulo para galgar para chegar no topo. O que aconteceu nos últimos anos? A AGU criou a sucumbência, a Receita criou o bônus. O ser humano precisa de estímulo. Na hora em que você já está no teto, qual é o estímulo que você tem para acordar de manhã e ir trabalhar? E o Estado ficou caro. O custo da mão de obra no serviço público, no governo federal é 67% mais caro que seu equivalente no setor privado. Na média dos estados é 30%. Tem que reorganizar. Não quero fazer reforma para trás, mas tem que fazer. A Câmara dos Deputados custa R$ 4 bilhões sem deputado. No total, custa R$ 5,5 bilhões.

OG: E quem é o protagonista da agenda reformista?

RM: Há um divórcio da sociedade com a política. A política sempre é comandada pelo Executivo. A gente só tem um encaminhamento para que a gente recupere esse protagonismo: é a gente ter coragem de enfrentar os temas áridos. O custo do estado brasileiro nos últimos anos aumentou 6%, 7% acima da inflação. Não tem como a sociedade brasileira pagar essa conta. Não é que eu ache que a Câmara quer um protagonismo, ela precisa recuperar seu protagonismo nessas agendas. Porque quando você atende todas as corporações – e não estou culpando ninguém – , mas poucos segmentos foram atendidos no orçamento público, ele está completamente engessado e eu não consigo recurso para o município que me elegeu. Nós fomos capturados pelas corporações públicas e privadas e não conseguimos fazer política social para nossos eleitores. É uma equação completamente irracional e que afastou o parlamento da sociedade.

OG: E que impacto isso tem nos estados e municípios?

RM: Para que serve o prefeito hoje além de tentar pagar salário e aposentadoria? Para nada. Não tem mais dinheiro para investir. Se nós não reformarmos, a gente vai continuar distante da sociedade. Porque qual a política pública que poderá ser implementada na qual o político vai estar valorizado? Nenhuma. A gente só vai conseguir, com o modelo que está colocado, sem reformar o Estado, estar mais longe da sociedade. Porque a saúde, a educação, a segurança vão continuar piorando. O estado vai continuar tentando tirar mais dinheiro da sociedade para financiar sua estrutura básica.

OG: E o Orçamento vai ficando mais engessado…

RM: Enquanto não jogarmos isso aqui (despesa) para baixo, a política vai continuar sendo atacada, não apenas pelos seus erros éticos, mas por seus erros políticos, de ter entregue o orçamento público a poucos. Aí fica essa briga: libera orçamento, emenda. A gente está discutindo um orçamento que tem, de fato, um capacidade de investimento de R$ 50 bilhões em cima de R$ 1,5 trilhão de orçamento. A política tem que ter coragem de falar assim: nós construímos esse monstro, vamos desfazer o monstro. Acho que o resultado da Previdência é a primeira votação de uma certa compreensão do parlamento disso. E o parlamento tem essa compreensão majoritária hoje porque a sociedade tem.

OG: Tem espaço para aumento de impostos hoje?

RM: A sociedade está vendo que cada dia vai ter mais necessidade de tirar da sociedade. Agora vem: recria CPMF, recria imposto… Essa parte de aumento de imposto não passa no parlamento, então nós temos de fazer a outra. Se a gente recuperar a capacidade de investimento do governo federal e voltar a poder investir 20% do orçamento, se voltarmos a ter um orçamento de R$ 250 bilhões, R$ 300 bilhões, a política vai estar se reaproximando da sociedade. Então, se eu quero estar na política, é para ser valorizado pela sociedade, não para estar sendo muitas vezes humilhado pela sociedade, porque a sociedade acha que isso aqui não serve pra nada. Se a gente for manter tudo do jeito que está apenas para ser aplaudido por pequenos grupos de interesses públicos e privados, que não serão nem atendidos no médio e longo prazo, vamos estar na política para quê? É melhor sair da política.

OG: Como fica o pacote anticrime na agenda?

RM: A comissão está votando os projetos e vamos avançar. O problema é que antes de reformar o estado não dá para tratar de investimento. Acho que a área de segurança precisava de uma grande reforma do sistema penitenciário, uma grande discussão sobre esse tema. A melhoria das leis é importante, mas você tem um problema no sistema que precisa ser resolvido. O pacote tem temas que vão ser aprovados, que são de boa qualidade, mas são coisas soltas. Ele não traz uma grande reforma na área de segurança pública no Brasil. Aliás, nós fizemos muita coisa nesse tema e foi desmontado no governo. Criamos sistema integrado de segurança que é fundamental, deu condições de as polícias trocarem informações. O presidente Michel Temer teve a coragem de criar o Ministério da Segurança Pública, que nenhum outro governo teve. Porque nenhum outro presidente quis assumir a responsabilidade da segurança pública, sempre quis transferir para os governadores, e isso foi desorganizado. Acho que acabar com o ministério da Segurança foi um erro. O projeto vai melhorar alguns pontos, mas, pelo que ouço de especialistas, ele não traz uma solução sistêmica para a área de segurança. Mas vai votar rápido, não vai demorar não.

OG: A aprovação da reforma foi uma vitória para o governo, a quem o senhor disse faltar diálogo. Por que o parlamento vai se engajar em outras agendas que favoreçam o governo?

RM: Para recuperar o respeito da sociedade, o parlamento precisa assumir seu protagonismo. A gente aprovou a reforma pelos brasileiros que nós representamos. Em um país com a pobreza no nível que está, com as campanhas de combate à fome voltando, não dá para a gente ficar preocupado se vai beneficiar o governo. A reforma da Previdência beneficia o Estado. E os projetos que beneficiem o Estado nós vamos aprovar. Projetos que beneficiem o governo, que deem caixa no curto prazo, terão muita dificuldade. Sem a reorganização do diálogo com o parlamento, as privatizações não vão andar. É simples assim, é bem objetivo. Porque estaremos dando ao governo recursos para ele continuar atacando o parlamento.

OG: Mas o clima do Palácio é de comemoração: dizem que não cederam e ganharam…

RM: Isso não me preocupa. O que me preocupa é o governo não ter uma agenda. No final do ano o projeto do Betinho voltou a ter que dar alimentos para as pessoas e o governo depois de seis meses não tem uma preocupação, uma palavra para o pobre brasileiro. Isso que me preocupa. Se eu estiver fazendo a reforma da Previdência e o governo conseguir se organizar para reduzir a pobreza e o desemprego, este é o meu papel. Não é o quanto pior, melhor. O que a gente quer é que o governo dê certo. Demos uma demonstração disso, e esperamos que eles possam olhar para os brasileiros mais pobres. O presidente Bolsonaro sempre representou corporações, que têm estabilidade no emprego. Esse é um eleitor que não passa fome, não fica desempregado. Quando a gente vai em uma comunidade, saímos de lá com 30 currículos, porque o desemprego só aumenta no Brasil nos últimos cinco anos. É para essa parte da sociedade que a gente está querendo falar. Ótimo que o governo seja beneficiado, mas que ele saiba usar o benefício da responsabilidade do parlamento, que ele saiba usar o benefício daquilo que a gente está fazendo. E rápido.

OG: O parlamento fez sua parte?

RM: A única clareza que todos têm hoje na sociedade é que o parlamento assumiu a responsabilidade, organizou a votação e aprovou. Se tivéssemos deixado na mão do governo, a reforma estava na comissão especial. Isso todo mundo já sabe. Espero que eles comemorem até domingo (hoje) e na segunda-feira eles comecem a pensar em como vão cuidar dos vulneráveis. Porque o governo, através de seu líder, só tratou das corporações na reforma da Previdência. A gente quer que eles cuidem dos brasileiros mais simples, é para isso que a gente aprovou a Previdência, é uma reforma de Estado. Ele é o presidente, eu não posso esperar até 2023 para fazer a reforma da Previdência, porque isso ia gerar 20 milhões de desempregados, um incremento dos brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza que já são quase 10 milhões. O lugar que representa de forma mais legítima toda a sociedade brasileira é o parlamento, não o poder Executivo.

OG: Por que a reforma foi aprovada apesar de o presidente Jair Bolsonaro não ter demonstrado a convicção que o senhor cobrava dele?

RM: Acho que a sociedade compreendeu a importância da reforma, mesmo sabendo que é um tema árido. Posso dizer que conseguimos aprovar “apesar do governo” em relação aos temas mais corporativos. O líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo (PSL-GO), é uma representação corporativa no caso das polícias e ele foi um dos que mais trabalhou a favor delas.

OG: Os protestos de rua ajudaram?

RM: Não. Você já tinha um ambiente mais favorável desde o início na Câmara. Não vou dizer que uma Câmara mais liberal, mas mais reformista. As manifestações falam para aquele ambiente da Câmara que foi eleito pelas redes sociais, que não é majoritário.

OG: Foi melhor ter retirado estados e municípios da reforma?

RM: Olhando hoje, depois de ter ficado isolado na defesa dos estados e municípios, foi decisivo ter tirado estados e municípios. O acordo para que o Novo retirasse o destaque (para incluir esses entes) foi fundamental para não dar confusão na hora da votação.

OG: O senador Tasso fala em voltar com esse tema no Senado, o senhor acha que é inócuo?

RM: Não. Uma coisa é você ter que enfrentar uma batalha, outra coisa é ter que enfrentar várias batalhas e uma contaminar a outra. Acho que devolver para a Câmara um texto sobre estados e principalmente aquilo que é prioridade para os governadores, alíquota extraordinária sobre toda a base, é mais fácil de enfrentar do que enfrentar polícias e professores. Numa PEC paralela, você trazer o que mais interessa a eles, é mais fácil do que ir para o enfrentamento com as categorias.

OG: Qual foi o momento mais tenso da votação da Previdência?

RM: O primeiro foi no início da orientação da votação do mérito, porque eu não tinha 100% de certeza se todos os partidos iam ao plenário votar. O segundo foi depois da votação, quando entrou o primeiro destaque eu vi que estava desorganizado demais. E o terceiro momento, que foi o que me preocupou mais, foi o primeiro destaque do PT que tratava de pensão.

OG: Adiando o segundo turno para agosto não vai dar tempo para que quem está contra se organize?

RM: E não vai dar tempo também para aqueles que estão a favor? Aqueles que votaram o texto principal, mas não alguns destaques… Claro que a oposição quando sentiu que o segundo turno seria em agosto não obstruiu mais, porque estava também todo mundo cansado. É claro que eles têm a expectativa de virar votos. Mas nós também temos agora o mapa do jogo e sabemos, dos 379, quantos votaram cada destaque. E nos destaques mais difíceis a gente também pode trabalhar até agosto, chamar cada um. Minha reunião hoje de manhã com o Rogério Marinho e a equipe dele foi para começar a organizar isso.

OG: Vocês já estão trabalhando nessa organização?

RM: Claro. Vamos ver cada destaque onde a gente perdeu e como pode recuperar. Eles vão trabalhar e nós vamos trabalhar. E a sociedade vai se manifestar. Eu não tenho dúvida nenhuma, espero não estar errado, que o resultado de 379 não é apenas fruto da articulação dos deputados, da minha, ou de qualquer pessoa.

12 de julho de 2019

A CARTA PRIVADA CRISTÃ MAIS ANTIGA QUE SE CONHECE!

(RF, 11/07) Cientistas da Universidade de Basileia (Suíça) identificaram a carta privada cristã mais antiga que se conhece, do início do século III, e nomeada “P.Bas. 2.43”, indica um comunicado divulgado esta quinta-feira pela instituição.

A carta, datada do ano 230 depois de Cristo, oferece informação sobre o mundo dos primeiros cristãos do Império Romano e é mais antiga do que todos os testemunhos documentais cristãos previamente conhecidos do Egipto-romano.

O texto inscrito em papiro revela que em princípios do século III os cristãos já se encontravam longe das cidades do interior egípcio, onde assumiram funções de liderança política e na sua vida quotidiana não se distinguiam no ambiente pagão.

Desta forma, a informação põe em causa a ideia que normalmente associa os primeiros cristãos do Império Romano a povos excêntricos e perseguidos.

O papiro, há mais de cem anos propriedade da Universidade de Basileia, inclui uma carta de Arrianus enviada ao seu irmão Paulus e “destaca-se”, segundo o comunicado da universidade, de outras cartas oriundas do Egito greco-romano pela sua fórmula de saudação final: “Rezo para que estejas bem, ´no Senhor´”, usando uma ortografia abreviada no final.

“O uso desta abreviatura, estamos a falar do chamado ´nomen sacrum´, não deixa dúvidas sobre o sentimento cristão do autor”, disse Sabine Huebner, professora de História Antiga da Universidade de Basileia.

“Paulo é um nome muito raro na altura e podemos deduzir que os pais mencionados na carta já eram cristãos e que decidiram dar ao filho o nome do apóstolo, 200 anos depois de Cristo”, explicou Huebner.

A carta proporciona também detalhes sobre as origens sociais desta família cristã primitiva: os dois irmãos eram filhos jovens educados da elite local, terratenentes e funcionários.

“Não é surpreendente que os primeiros cristãos também tenham participado na vida quotidiana romana. E também usufruíram dos mesmos prazeres que os seus concidadãos não cristãos”, afirmou à agência Efe Sebastian Ristow, do Instituto Arqueológico da Universidade de Colonia (Alemanha).

O facto de apenas uma parte dos primeiros cristãos ter vivido de uma forma “verdadeiramente ascética” está documentado, acrescentou.

O papiro provém da povoação de Theadelphia (Egito) e pertence ao Heroninos, o maior arquivo de papiro da época romana.

A Universidade de Basileia foi uma das primeiras universidades de língua alemã e a primeira na Suíça alemã a criar uma coleção de papiros própria, no início do século XX.

Na altura, o estudo de textos em papiros era uma disciplina florescente e esperava-se ganhar com ela informações sobre a evolução do cristianismo primitivo.

11 de julho de 2019

A VERDADEIRA HISTÓRIA DA MORTE DE EUCLIDES DA CUNHA!

(G1, 09) Filha busca Justiça histórica para pai, que matou Euclides da Cunha.

Dirce de Assis Cavalcanti passou a vida ouvindo que era ‘filha de assassino’; seu pai, Dilermando de Assis, entrou para a história como o homem que matou o escritor Euclides da Cunha, homenageado deste ano na 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

Por BBC

Em 1998, depois de lançar um livro sobre seu pai, a escritora Dirce de Assis Cavalcanti deu de cara com uma frase pichada em sua porta ao chegar em casa: “Filha de assassino”.

Dirce ouviu a frase pela primeira vez quando tinha 11 anos, dita por uma colega no colégio interno, e depois muitas outras vezes ao longo da vida.

“Aquela foi a última vez que recebi essa pecha”, suspira ela aos 87 anos, em conversa com a BBC News Brasil, em seu apartamento no Flamengo, na zona sul do Rio de Janeiro.

A pecha de assassino acompanhou toda a vida de seu pai, Dilermando de Assis – que entrou para a história como o homem que matou o escritor Euclides da Cunha.

O célebre autor de Os Sertões é o homenageado deste ano na 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), de 10 a 14 de julho. A justa homenagem a um dos expoentes da literatura brasileira no evento é, para Dirce, motivo de “preocupação, aflição e agonia”.

“Porque sei que vão falar muito no papai, e falar mal, certamente, porque muita gente não conhece a história como foi”, acredita ela. “Toda vez que se toca no Euclides da Cunha, o assassino dele vem à tona.”

Dilermando foi amante de Ana Emília Ribeiro da Cunha, a mulher de Euclides.

O caso começou em 1905, durante uma longa expedição do escritor pela Amazônia, chefiando a comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, na fronteira entre os dois países.

Já mãe de três filhos de Euclides, Ana, de 33 anos, se apaixonou por Dilermando, um jovem cadete de 17 anos. Viveram quatro anos de romance proibido, e tiveram dois filhos fora do casamento.

Em 15 de agosto de 1909, o escritor chegou armado à casa de Dilermando para vingar sua honra. Travou-se um duelo, e Dilermando levou cinco tiros – mas era campeão de tiro, revidou, e matou Euclides da Cunha.

Dilermando foi absolvido por legítima defesa, mas foi condenado pela imprensa da época e pela opinião pública.

O caso se desdobrou em novas tragédias, com as mortes posteriores de Euclides da Cunha Filho e do irmão de Dilermando, Dinorah de Assis.

Desagravo
Nas últimas décadas, Dirce – que é a única filha do segundo casamento do pai – tem lutado para tirar do nome do pai a alcunha de “assassino”.

“O que eu mais quero, todo o meu empenho, é tirar essa palavra de sua biografia, que é tão pesada, tão feia”, diz Dirce.

“Ele não é o assassino. Ele matou por legítima defesa. É só isso que eu gostaria de deixar definido.”

Dirce é escritora, poeta e artista plástica. A sala de seu apartamento é povoada por suas pinturas e esculturas, além de um portarretrato do pai, ainda moço.

“Ele usava barba para parecer mais velho com a Ana, para não haver muita diferença de idade entre eles. Houve um amor muito grande da parte dos dois, para enfrentar inclusive tudo que eles enfrentaram vida afora, que não foi pouca brincadeira.”

“Eu vinha escrevendo esse livro a vida inteira, aos pouquinhos”, afirma. “Eu sempre achei que eu tinha que defender o papai de alguma maneira.”

Na narrativa autobiográfica, Dirce conta a história de Dilermando a partir de seus olhos de filha, desvelando a tragédia assim como ela a foi descobrindo, aos poucos, na infância, em uma casa cercada de segredos.

Na primeira infância, suas lembranças são de um pai extremamente carinhoso, que a ensinou a escrever em seu colo aos 4 anos, e que a levava para passear, para museus.

Aos 11 anos, a frase que ouviu na escola impôs uma ruptura ao universo que conhecia até então – revelando o segredo que seus pais haviam conseguido ocultar:

“Ela não presta. O pai dela matou um homem”, disse sua colega. A frase lhe pareceu tão ousada, tão despropositada, que só podia ser verdade.

‘Acontecimento terrível da vida brasileira’
Euclides da Cunha foi aclamado como escritor após a publicação de “Os Sertões”, em 1902, sobre a Guerra de Canudos.

Fora enviado como jornalista pelo O Estado de S. Paulo (à época, A província de S. Paulo) para acompanhar o primeiro conflito armado da recém-proclamada República, no arraial liderado pelo beato Antônio Conselheiro, no interior da Bahia. No livro, Euclides narrou o confronto entre os soldados e os sertanejos monarquistas, que acabaram dizimados pelas tropas republicanas.

A obra lhe rendeu a consagração no círculo intelectual brasileiro, ingressando na Academia Brasileira de Letras e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

No prefácio de “O Pai”, o crítico literário Antonio Candido descreve a morte do escritor como “um dos acontecimentos mais terríveis da vida brasileira” no século passado.

Sua morte completa 110 anos em agosto e já foi tema de livros, peças, uma ópera – Piedade, composta por João Guilherme Ripper – e da minissérie Desejo, da Rede Globo, que em 1990 estrelou Vera Fischer no papel de Ana, e Guilherme Fontes vivendo o jovem Dilermando.

A tragédia da Piedade
O episódio ficou conhecido como “a tragédia de Piedade”, em referência ao bairro no subúrbio do Rio onde Dilermando vivia com seu irmão, Dinorah de Assis – e onde Euclides apareceu de surpresa em um domingo. Era 15 de agosto de 1909.

Ana não aparecia em casa desde sexta-feira. Euclides sabia do romance, e o casamento já passara por crises ferozes.

Segundo os autos do processo, reunidos no livro Crônica de uma tragédia inesquecível, organizado por Walnice Nogueira Galvão, Dinorah abriu a porta da casa, e Euclides entrou com uma mão no bolso.

Na sala, sacou o revólver que pegara emprestado de um parente, dizendo que precisava matar “um cachorro louco” que rondava sua casa.

Ana se escondera na edícula da casa com seu filho caçula Luiz, o Lulu – o segundo filho que teve com Dilermando, louro como o pai. Euclides se referia à criança como “uma espiga de milho em meio a um cafezal”, no meio da família morena.

Do quarto, segundo relatou nos autos, Ana ouviu Euclides entrar na casa gritando “corja de bandidos” e “vim para matar ou morrer!”. Em seguida, ouviu os tiros.

No livro “Matar para não morrer: A morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis” (Objetiva, 2009), a historiadora Mary Del Priore resume os eventos que se sucederam:

Euclides foi atrás de Dilermando no quarto, onde havia se fechado para vestir o dólmã militar e receber o escritor composto. Entrou atirando, e atingiu Dilermando na virilha e no peito.

Seu irmão, Dinorah, tentou conter Euclides, mas levou dois tiros do escritor. Quando Dinorah se virou para ir atrás de uma arma, Euclides o atingiu na espinha.

Euclides voltou-se novamente para Dilermando, que nesse meio tempo alcançara sua Smith and Wesson. No duelo que se seguiu, Euclides deu mais três tiros em Dilermando, mas o jovem aspirante revidou com três tiros no escritor: no ombro, no braço e a bala fatal – do lado direito do peito.

“Uma hemorragia no pulmão fez o resto. Euclides caiu na porta da frente, entre as escadas e o modesto jardim”, descreve Del Priore.

Nos autos do processo, Ana relatou “que depois disso ficou tudo em silêncio e Dinorah veio abrir-lhe a porta que foi trancada por fora, dizendo: ‘sinh’Aninha, estamos todos mortos, seu marido morreu, assim como Dilermando e eu também vou morrer.”

Dinorah e Dilermando sobreviveram. Já Euclides teve o corpo velado na Academia Brasileira de Letras.

‘Doloroso drama de sangue’
“Hontem à tarde, na cidade molhada de aguaceiros contínuos estalou como um raio, na redação dos jornaes, uma notícia atrós: Euclydes da Cunha foi assassinado!”, noticiou o jornal Gazeta de Notícias no dia seguinte, conforme a grafia da época. E continuou:

“Era possível prever tudo, menos que Euclydes da Cunha, homem de costumes austeros, de vida regularíssima, sem lutas e sem inimigos, cercado de admiração ao seu formidável saber e ao seu excepcional talento, fosse assim assassinado.”

O tom de choque e perda irreparável reverberou pelos jornais da época, trazendo manchetes como “O assassinato do ilustre escriptor” e “Um doloroso drama de sangue”.

De acordo com a historiadora Mary Del Priore, para além da revolta com a morte de um dos grandes literatos do Brasil naquela época, somou-se o julgamento – e a condenação pública – do polêmico romance extraconjugal, e com 16 anos de diferença de idade, entre Ana e Dilermando.

“Quando a imprensa, que estava se multiplicando e tinha um papel importantíssimo, se abate sobre esse casal, é para arrasar com essa mulher mais velha que se apaixonou por um jovem mais moço, enquanto ele, com sua juventude e ingenuidade, é retratado como um aproveitador”, aponta a historiadora.

“O que a gente vê em cena, e não está dito, é toda essa problemática da honra masculina, que num país machista não atinge só as mulheres, mas atinge os homens também, porque é exigido deles um papel ideal”, diz Del Priore. “Marido corneado imediatamente tem que reagir e tem que matar. Então a gente vê aí encenado já uma primeira tragédia shakespeariana, em que você já tem três vítimas.”

‘Segundo ato’ da tragédia
Depois da morte de Euclides, Ana, viúva, se casou oficialmente com Dilermando, e o casal teve mais cinco filhos.

Sete anos depois, a tragédia da Piedade fez mais uma vítima.

Em 4 de julho de 1916, Euclides da Cunha Filho, conhecido como Quidinho, decidiu vingar o pai. Aos 21 anos, o aspirante da Marinha foi atrás de Dilermando em um cartório, onde o encontrou debruçado sobre um processo.

Atirou em Dilermando pelas costas, dando início “a um emocionante e verdadeiro duelo” ao fim do qual “os dois contendores tombam ensanguentados no chão”, conforme descreveu o jornal “A noite”.

Euclides Filho acertou quatro tiros em Dilermando, que andava armado, conseguiu alcançar sua arma e revidou, matando Euclides Filho – seu enteado, um dos três filhos de Ana com Euclides.

Apesar de gravemente ferido, Dilermando novamente sobreviveu. E novamente foi condenado pela imprensa.

O jornal “O Paiz” noticiou: “Assassino do pai, matou também o filho”, no “2º acto de uma tragédia emocionante”, cometido por ninguém menos que Dilermando – “o nome de criminoso jamais esquecido pelo povo”.

O escrutínio público sobre Ana não foi mais generoso, atribuindo-lhe a pecha de mãe adúltera, mãe culpada, cúmplice do padrasto assassino.

A vítima de quem ‘ninguém lembra’
Irmão mais moço de Dilermando, Dinorah de Assis era aspirante da Marinha e trilhava uma promissora carreira no futebol – ou “foot-ball”, como o esporte recém-importado da Inglaterra era tratado no noticiário.

Mas a bala que ficou cravada na espinha após os tiros de Euclides foram lhe tirando os movimentos pouco a pouco.

No ano seguinte à tragédia da Piedade, ainda conseguiu competir pelo Botafogo, e se tornou campeão carioca – no título de 1910 que deu ao time a alcunha de “glorioso”.

Dinorah acabou ficando paralítico e enfrentou a depressão, o alcoolismo e a mendicância. Após outras tentativas, conseguiu se suicidar em 1921.

“Ele (Euclides) praticamente matou meu tio, que não tinha nada com a história”, diz Dirce. “Ele ficou um trapo humano e se suicidou, se jogou no rio Guaíba e se afogou aos 32 anos. Essa é uma historinha que ninguém conta.”

Segundo casamento
Depois da morte de Quidinho, Ana e Dilermando ainda ficaram juntos cerca de dez anos. Separaram-se quando ela tinha 50 anos, e Dilermando se apaixonou por uma mulher mais jovem, Maria Antonieta de Araújo Jorge, a Marieta.

A união foi rejeitada pela família de Marieta, inicialmente mantida em segredo e cercada de vergonha. “A família toda era muito dura com ela”, conta Dirce. “Ficar com o Dilermando – imagina!” Nos primeiros anos morando juntos, a mãe mal saía de casa, e nunca o fazia acompanhada de Dilermando. Não queriam que soubessem que estavam juntos.

Dirce de Assis Cavalcanti é a filha única desta segunda união. “Eles não queriam ter filhos. A minha mãe não queria. Fez uns sete ou oito abortos. Quando engravidou de novo, o médico não deixou que ela fizesse outro, e eu nasci por isso. Estou aqui por acaso”, diz. A mãe vivia chorando, lembra.

Já menina, ela percebeu que sua casa “não era como a das outras pessoas”. Nunca recebiam visitas. O pai se fechava no escritório para atender a telefonemas. “Sempre havia aquele segredo, aquele mistério, e ninguém me dizia nada.”

Até então, Dirce tinha paixão pelo pai. Quando ele chegava para buscá-la no internato, orgulhava-se por ser mais forte e mais alto que os pais das outras meninas.

Mas tudo mudou depois da frase que ouviu aos 11 anos. “Ela não presta. O pai dela matou um homem”.

Aos 13 anos, quando Dilermando esqueceu a chave de sua escrivaninha em casa, Dirce destrancou o armário e descobriu pilhas de pastas com documentos e recortes. “Os jornais diziam ‘o assassino de fulano de tal’, e a foto do papai”. Só depois foi tempo foi entender quem era o Euclides da Cunha”, conta.

À medida que foi descobrindo o seu segredo, a menina se fechou.

“A vida inteira eu fui saber de uma maneira tremendamente dolorosa”, lembra Dirce.

“Fui ficando muito desligada do meu pai. Não porque ele tivesse feito aquilo, não porque tivesse se defendido, como se defendeu. Mas porque nunca tinha me contado”, afirma. “Hoje sinto muita culpa.”

Marieta e Dilermando só se casaram oficialmente no fim da vida, em 1951, quando ele já parecia à beira da morte. Ana, com quem era casado no papel até então, falecera meses antes.

“Foi o casamento mais triste que eu já vi”, diz Dirce, lembrando que, enquanto a mãe assinou a certidão, o pai, acamado, apenas pôde registrar sua impressão digital no documento.

Dirce conta que Dilermando “foi sendo promovido a duras penas” na carreira militar, “sempre o último de sua turma”. No fim da vida, conseguiu chegar a general.

Em 1951, o ano de sua morte, em 1951, Dilermando publicou “A Tragédia da Piedade – Mentiras e calúnias da ‘Vida dramática de Euclides da Cunha'”.

O livro é seu manifesto final de autodefesa, analisando as provas periciais das mortes de Euclides pai e Euclides Filho e trazendo a público a sua versão dos fatos – a começar por seu “erro dos 17 anos”, quando se apaixonou por uma mulher casada.

“A convivência acarretando a intimidade; a falta de experiência ou malícia permitindo a aproximação mais íntima (…); tudo concorreu para o despertar de novos sentimentos”, descreveu Dilermando sobre sua aproximação de Ana Emília Ribeiro da Cunha.

“E assim, nessa ebriez incontível, imperceptivelmente se consumou o meu crime. Porque é só onde vejo a transgressão à lei: no ter amado, aos 17 anos, uma mulher casada cujo marido não conhecia e se achava ausente, em paragens longínquas, sem ser lembrado sequer por inanimada fotografia.”

Euclides na Flip
Apesar de o foco da Flip ser sobre a obra literária de Euclides, o medo de que Dilermando apareça nos círculos de debate como “o assassino de Euclides” tem preocupado Dirce.

“Eu gostaria de ir, mas já estou muito velha. E também, como vou saber onde estarão falando mal dele para ir defendê-lo?”, pondera.

“Eu realmente me emociono toda vez que falo dessa história. Fico muito angustiada”.

Ela acredita, que aos poucos, a compreensão sobre a morte de Euclides e a história de seu pai estejam mudando.

“Em determinados círculos, as pessoas já não falam no assassino, mas no homem que matou. E aí vai uma grande diferença.”

Para a historiadora Mary Del Priore, a história da morte do Euclides da Cunha deve ser compreendida sob nova luz.

“A desconstrução do Euclides não significa a destruição do Euclides, mas uma compreensão nova de um ator histórico importante, mas que esteve enredado em um drama terrível, cujas história tem que ser revista. E nela o Dilermando foi vítima como foi vítima o Euclides, como foi vítima o Dinorah e como foi vítima o Euclides Filho”, considera a historiadora.

“Nos dois casos, o papai foi atacado. E mesmo cheio de balas ele conseguiu reagir”, diz Dirce. “Só que naquela época, a honra dos maridos era lavada com sangue. E assim foi feito por parte do Euclides da Cunha”, diz Dirce.

“Ele sempre dizia que ele preferia que tivesse ele morrido”, conta Dirce. “A vida toda ele teve que pagar.”

10 de julho de 2019

AS GRANDES CIDADES E O DESAFIO DA MOBILIDADE URBANA!

(FIABCI-BR – ESTADO DE S.PAULO, 09) Regiões onde o transporte por trilhos não chega acabam por intensificar os problemas de mobilidade.

Os conhecidos gargalos de infraestrutura no transporte coletivo sustentam o crescimento contínuo da frota de veículos leves e, por consequência, contribuem para o agravamento da mobilidade urbana. Uma pesquisa elaborada pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), que coletou dados de 133 milhões de moradores de cidades com mais de 60 mil habitantes, mostra que quem utiliza transporte coletivo no Brasil percorre uma distância maior e perde mais tempo todos os dias, o que acaba por promover a utilização dos veículos leves, produzindo um incremento da frota.

Segundo o mesmo estudo, carros e motos são utilizados para realizar 30,8% das distâncias per- corridas. Já o transporte coletivo representa menos de 1/3 do total das viagens, mas, em contrapartida, responde pela maior distância e por 45% do total de tempo gasto na mobilidade.

Dados importantes da Fenabrave mostram que, em 2018, as vendas de veículos no Brasil subiram 14,6%, para 2,57 milhões de unidades. A pesquisa origem-destino, elaborada pela Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô), divulgada em 2017, destaca que as viagens de trem e metrô avançaram nos últimos dez anos de 7,9% para 11,3%, enquanto as de ônibus caíram de 23,7% para 20,7%, possivelmente por causa da expansão da rede metroviária nos últimos anos.

As maiores transformações nos bairros de São Paulo foram provocadas pela implantação do metrô – ocorrida a partir de 1974. Entre essas transformações estão um maior adensamento das áreas atendidas pelo serviço e, em alguns casos, a elevação na densidade populacional.

Para se ter uma ideia, em um levantamento elaborado no ano de 1973, o bairro do Tatuapé, na Zona Leste da cidade, era estritamente residencial, com o predomínio de casas térreas. A única grande avenida era a Melo Freire, conhecida como Radial Leste. Com a estação de metrô, inaugurada em 1982, os terrenos e as casas deram lugar a prédios, condomínios fechados e shoppings.

Recentemente, a Zona Sul da cidade ganhou novas estações de metrô, que ligam o Capão Redondo à estação Chácara Klabin, fazendo com que a região concentrasse 28% dos lançamentos feitos na capital, segundo dados do Secovi-SP.

As estações Fradique Coutinho, inaugurada em 2014, e Oscar Freire, entregue em abril de 2018, possibilitaram que construtoras e empresas alavancassem os investimentos na região da Rebouças, revitalizando polos da Zona Oeste, como Pinheiros e Jardins, mesmo em um momento de recessão econômica.

No entanto, os gargalos de infraestrutura de transporte coletivo e viário continuam impulsionando o crescimento da frota de veículos leves. Por essa razão, regiões onde o transporte por trilhos não chega acabam por intensificar os problemas de mobilidade da população, como é o caso de regiões da Grande São Paulo, tais como Guarulhos e São Bernardo do Campo.

As pessoas desejam estar próximas ao seu local de trabalho e o metrô é a principal ferramenta para se compactar a cidade, promovendo o acesso aos pontos de concentração de empregos. Além disso, é mais barato, quando comparado ao carro, e mais rápido, em relação ao ônibus.

Cidades como Nova York, Londres e Tóquio possuem redes de metrô maiores que a soma de todas as linhas de metrô existentes no Brasil. No total, segundo a CNT (Confederação Nacional do Transporte), o país possui 309,5 quilômetros, praticamente metade da rede existente na chinesa Xangai.

As regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro concentram mais de 60% da extensão total brasileira, mas ainda assim são insuficientes para atender às necessidades de mobilidade da população.

Enquanto se avança na ampliação da malha de metrô das grandes cidades brasileiras, o melhor a se fazer é incentivar o adensamento próximo às regiões centrais, aproveitando a infraestrutura existente e diminuindo os deslocamentos diários.

09 de julho de 2019

2020, RIO DE BURLE MARX!

(Sergio Magalhães – O Globo, 06) No próximo ano, o Brasil e o Rio estarão no centro do pensamento urbano mundial. Milhares de visitantes de dezenas de países, além de centenas de milhares de participantes das atividades culturais que se desenvolverão na cidade, terão o Rio de Janeiro como foco.

Sob o tema “Todos os Mundos, Um Só Mundo, Arquitetura 21”, aqui serão realizados três eventos globais importantes e correlacionados: o 27º Congresso Mundial de Arquitetos UIA 2020 RIO, evento trienal, o maior da arquitetura global; a programação decorrente da designação do Rio como primeira “Capital Mundial da Arquitetura — Unesco”; e o Fórum Mundial de Cidades Unesco-UIA.

Daí emanarão propostas para as cidades brasileiras e para as cidades do mundo que enfrentam desafios comuns, como a segregação espacial, a insuficiência de serviços públicos, a questão ambiental, entre outros, apoiados nos objetivos de sustentabilidade da ONU.

Será desejável que o Rio aproveite a oportunidade para buscar recuperar sua característica histórica de promotora de bem-estar. E isso começa em recuperar a sua autoestima.

Nesse sentido, duas dimensões podem ser elencadas: uma política, outra pragmática. Na primeira, fazer do ano de 2020 o lugar para intensa reflexão sobre questões relevantes da cidade metropolitana, à luz da experiência local e internacional, buscando consensos possíveis e metas para as próximas décadas, onde se incluem, por certo, a segurança, o saneamento, a mobilidade, a moradia e os serviços públicos.

Na segunda dimensão, o preparo da cidade. É verdade que estamos acostumados a delegar aos governos todas as tarefas. Tendo o Rio sido capital, é forte esse costume. Não é mais o caso. Ante as dificuldades no âmbito público, o envolvimento da sociedade é essencial. A saída desse quadro de dependência pode decorrer de projetos específicos, ainda que modestos. Recuperar a calçada de um quarteirão, por exemplo, pelo acordo entre os moradores, dando-lhe condições de acessibilidade universal. Quem sabe as associações de bairro possam ajudar? Adotar uma pracinha, cuidando de sua manutenção, quem sabe? Oferecer nas escolas de ensino fundamental e médio, públicas e privadas, uma disciplina sobre o bairro, a cidade, a vida urbana, quem sabe? Para além do rico patrimônio arquitetônico da Colônia ao Império, o Rio do século XX produziu obras reconhecidas pelo mundo todo, como a contribuição ímpar de Roberto Burle Marx, o expoente maior do paisagismo moderno universal.

Neste ano em que se comemoram 110 anos de seu nascimento, quem sabe poderemos iniciar a recuperação de parte de seu importante legado carioca. Obras tombadas de Burle Marx formam um roteiro único: começa nos jardins do Palácio Capanema, vai à praça do Aeroporto Santos Dumont, inclui o Parque do Flamengo, presente monumental que a cidade recebeu do talento desse artista e de gestores públicos de grande competência, chegando, depois, na obra-prima dos mosaicos de pedra portuguesa da Avenida Atlântica, em Copacabana, bairro que é a síntese do Rio para o mundo. Quem sabe lideranças empresariais fluminenses possam assumir a condução dessa tarefa espetacular, assim como Lota Macedo Soares o fez nos anos 1960? Recuperar o roteiro Burle Marx, pelo que representa na cultura e no usufruto da população de toda a metrópole, bem como no encantamento do país e do mundo, poderá ser exemplo fundamental de condução compartilhada em busca do reerguimento da cidade.

A coesão de cariocas, fluminenses e brasileiros em torno da valorização de nossas cidades é caminho de democratização do espaço urbano e de superação das enormes dificuldades a que fomos levados. Não tenhamos dúvida, recuperar nossas cidades é também condição essencial para o desenvolvimento nacional.

O RIO 2020 pode ser um marco de entendimento em momento de tanta radicalização. Quem sabe?

Nos 110 anos de seu nascimento, quem sabe iniciamos a recuperação de parte de seu importante legado carioca.

08 de julho de 2019

JOÃO GILBERTO TEVE UMA VIDA DEDICADA A APERFEIÇOAR A PERFEIÇÃO!

(Ruy Castro – Especial – Folha de S.Paulo, 07) Sua gravação do samba “Chega de Saudade”, de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, feita no Rio a 10 de julho de 1958 e distribuída sem alarde ou expectativa dois meses depois, tinha 1 minuto e 59 segundos de duração. Mas nunca tão pouco tempo de música significou tanto —dividiu a cultura brasileira em antes e depois. No mesmo espaço de tempo, João Gilberto, cantor e violonista baiano, 27 anos, saltou do nada para o centro das discussões.

Num país de comunicações precárias, aquele disco de 78 rpm alterou corações e mentes, a favor ou contra, onde fosse tocado. O canto a seco e sem ornamentos de João Gilberto não era propriamente novidade, mas, aliado ao violão que produzia um ritmo contagiante e inesperado —logo depois chamado de bossa nova—, à complexidade harmônica de Jobim e à sofisticação coloquial da letra de Vinicius, resultaram num todo revolucionário.

Meses depois, ainda em 1958, novo 78 rpm de João Gilberto, contendo o samba “Desafinado”, de Jobim e Newton Mendonça, consolidou a proposta. Havia uma nova música no ar, e João Gilberto era seu intérprete. Outras faixas, de novos e velhos compositores, foram gravadas nos meses seguintes, formando o LP “Chega de Saudade”, lançado em 1959, e que está para a bossa nova como a carta de Pero Vaz de Caminha para o Brasil.

O lançamento desses discos (e dos dois LPs seguintes, “O Amor, o Sorriso e a Flor”, em 1960, e “João Gilberto”, em 1961) provocou uma onda de shows semiprofissionais em universidades, despertou o interesse maciço de rapazes e moças pelo violão, revelou inúmeras vocações vocais e pareceu tornar “antiga” a música que se fazia até então no Brasil. De súbito, a bossa nova era um “movimento” — um novo estilo, uma nova música, algo com que uma geração inteira sonhara, e que acontecera.

E da maneira mais espontânea possível. A bossa nova não apenas não contou com a TV, ainda incipiente no país, como enfrentou a resistência das emissoras de rádio, então poderosíssimas e dirigidas a um gosto mais popular — mas até elas tiveram de se render. A imprensa, a publicidade, o comportamento, tudo de repente tornou-se “bossa nova”.

No rastro de João Gilberto, jovens compositores como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Baden Powell e Marcos Valle, letristas como Ronaldo Bôscoli, cantores como Alayde Costa, Claudette Soares, Leny Andrade, Pery Ribeiro, Wilson Simonal, Nara Leão e Wanda Sá, músicos como os arranjadores Moacir Santos e Eumir Deodato, pianistas Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas e Sergio Mendes, contrabaixistas Bebeto Castilho e Tião Neto, bateristas Milton Banana e Edison Machado, e muitos, muitos outros, se revelaram.

Era toda uma geração surgindo e decretando uma espécie de verão permanente na música brasileira.

Os grandes artistas que, no decorrer dos anos 50, haviam preparado o terreno para a bossa nova, como Sylvia Telles, Dick Farney, Lucio Alves, Doris Monteiro, Miltinho, Luiz Bonfá, Johnny Alf, João Donato, Billy Blanco, Dolores Duran, Maysa, Tito Madi e Os Cariocas, não ficaram imunes. Alguns se integraram com naturalidade ao movimento; outros foram injustamente condenados pelo público a um quase segundo plano. Mas, cedo ou tarde, todos tiveram seu vanguardismo reconhecido. A chegada de João Gilberto tirara tudo do lugar.

De certa forma, isso se refletiu também no plano internacional. Sua descoberta pelos músicos e cantores internacionais garantiu-lhe um culto que, começando em 1962, nunca mais parou. O LP “Getz/Gilberto”, lançado em 1964, é até hoje o álbum de jazz mais vendido da história —o que é surpreendente, por ser, na verdade, um disco de bossa nova e cantado em português! De Peggy Lee e Doris Day, naqueles tempos, a Diana Krall e Stacey Kent, passando por Frank Sinatra, não houve um grande artista, vocal ou instrumental, que não se deixasse influenciar pelo seu “blend” de voz e violão. João Gilberto teria ficado bilionário se ganhasse US$ 0, 01 por cada vez que, desde então e em qualquer país, alguém emulou ou emula seu estilo.

No Brasil, ao contrário, dedicamo-nos a cobrá-lo —por faltar a compromissos mal combinados, por não querer que o ar condicionado desafinasse seu violão, por pedir à plateia que o deixasse cantar baixinho. E por se manter fiel a um estilo e repertório que levou anos construindo e, com razão, não queria malbaratar. Esquecemo-nos de que, sempre que João Gilberto deixou seu eremitério no 30º andar de um apart-hotel no Rio, foi porque alguém o arrancou de lá— agentes, empresários, gravadoras.

Enquanto o criticávamos por faltar a shows, deixamos de ouvir o seu legado, exposto em 13 álbuns de estúdio e, até agora, quatro ao vivo. Está tudo lá —o homem por trás daquelas maravilhas nem precisava aparecer.

Assim como criou a batida de violão da bossa nova tocando sozinho no banheiro de sua irmã, em Diamantina, MG, em 1956, João Gilberto passou as últimas décadas tocando para as paredes de seu apartamento, entregue a uma missão, por definição, maluca e impossível —aperfeiçoar a perfeição.

05 de julho de 2019

QE – AFROUXAMENTO MONETÁRIO, PIB MAIOR!

(Roberto Macedo, professor sênior da USP – O Estado de S. Paulo, 04) Na literatura em inglês sobre política monetária, um quantitative easing (QE), no Brasil traduzido como afrouxamento monetário, ocorre quando um banco central adquire do setor financeiro, com expansão monetária, títulos privados ou públicos para estimular o crédito em situações marcadas por esfriamento da atividade produtiva, baixa inflação e fraca resposta a taxas básicas de juros muito baixas.

O QE foi muito usado nos EUA em resposta à crise econômica mundial que veio em 2008 e, mais recentemente, pelo Banco Central Europeu (BCE) na crise que chegou à sua jurisdição em 2012. Há poucos dias Mario Draghi, presidente do BCE, disse que pretende expandir o QE.

Bancos centrais, incluído o nosso, na sua prática ortodoxa têm como principal ferramenta a taxa básica de juros – no Brasil, a Selic –, usada para controlar a inflação. Mas aqui o Banco Central (BC), sem explicitar isso, também olha o nível de atividade, e tanto assim é que recentemente anunciou uma redução de R$ 16 bilhões dos depósitos compulsórios que os bancos mantêm no BC. O ministro Paulo Guedes falou em valor maior, de R$ 100 bilhões. Creio ser melhor fazer um QE, e bem mais forte.

A Selic está em 6,5% ao ano (a.a.). Apesar de a inflação do IPCA prevista para o fim do ano estar em 3,8% a.a., e abaixo da meta (4,25% a.a.), e a economia muito carente de estímulos, o BC vem adiando uma redução adicional da Selic. Disse que aguarda a reforma previdenciária em face dos riscos que o quadro fiscal do governo, sem essa reforma, apresenta para a política monetária.

No Brasil uma queda da Selic tem efeitos muito prejudicados pelo elevadíssimo spread bancário, que faz com que os juros em geral não caiam proporcionalmente a essa queda. Estudo da Confederação Nacional do Comércio mostrou que a Selic caiu 54,4% desde 2016 até abril deste ano, mas os juros no varejo recuaram apenas 26%. E continuam as reclamações de tomadores quanto às taxas ainda muito altas. Assim, uma queda da Selic para 5,5%, prevista pelo mercado até o fim do ano, estimularia muito pouco a economia.

A liberação de depósitos compulsórios é também afrouxamento monetário, mas um QE pode direcioná-lo para fins específicos, como investimentos em capacidade produtiva adicional, que são a principal força a impulsionar o crescimento econômico e a geração de empregos.

Em países desenvolvidos o QE passou a ser usado quando se percebeu que a taxa básica de juros, próxima de zero como a inflação, não produzia os estímulos necessários. Aqui se poderia argumentar que a Selic e a taxa de inflação não estão próximas de zero, mas vale lembrar que a economia brasileira é muito indexada, como ocorre com rendimentos pagos pelo INSS, com o salário mínimo, com reajustes salariais dos trabalhadores com contrato formal e vários preços e tarifas. Assim, esperar que a inflação e a Selic cheguem a zero para fazer um QE é inconcebível. Ambas já estão em níveis muito baixos para nossa cultura inflacionária, o estímulo de uma Selic um pouco menor não funcionaria a contento, e há assim um quadro adequado à adoção de um QE.

Haveria demanda por financiamentos estimulados por ele? Quanto ao habitacional, um dos mais estimulados pelo QE nos EUA, falei com o ex-presidente da Caixa Econômica Federal (CEF) no governo Temer, Nelson Antônio de Souza, que também nela trabalhou por 40 anos como funcionário de carreira. Dele soube que sempre houve forte demanda por esse tipo de financiamento. Soube também que a taxa de inadimplência na CEF nesse caso é de apenas 1,4%, excluído o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), mostrando que as hipotecas a serem objeto do QE são de baixo risco. O MCMV tem subsídio, é assunto da política fiscal, e não caberia num QE.

Assim, um objetivo bem adequado de um QE no Brasil seria comprar hipotecas de financiamentos habitacionais já concedidos para que estes se expandissem. O déficit habitacional é enorme e a garantia do imóvel reduz fortemente o risco da operação. A construção habitacional é forte geradora de empregos, sua cadeia produtiva é ampla, nela predominam insumos nacionais, e mesmo prontos os imóveis demandam serviços geradores de emprego.

Na redução dos compulsórios o dinheiro liberado iria para os bancos, mas estes atuam mais no financiamento do consumo das famílias e de capital de giro das empresas. Mas os juros são tão altos que absorvem rendimentos das famílias, e novo ciclo de endividamento delas ampliaria a inadimplência. O financiamento de capital de giro faz jus ao nome, pois os juros deixam tontos os devedores. E há também agiotagem oficializada nas contas de cheque especial e no rotativo de cartão de crédito, cujas taxas superam 10% ao mês (!).

Creio que o BC deveria examinar também a possibilidade de um QE alcançar contratos do BNDES de financiamento empresarial, em particular os voltados para infraestrutura. Ignoro se é possível liberar depósitos compulsórios apenas para fins específicos.

Insisto: a economia está numa situação calamitosa e é preciso financiar o investimento. A política fiscal não comporta estímulos e é necessário recorrer à política monetária. Manchetes, títulos de artigos e recado de palestra a que assisti recentemente dão um quadro atual dessa calamidade, além das más notícias da atividade econômica e do emprego: “Quanto pior, pior”, “PIB per capita volta ao valor que tinha em 2010”, “Brasil, quase 200, envelhece mal”.

Deve ficar claro que o QE que defendo deve alcançar apenas papéis e contratos privados, todos sujeitos a garantias reais como os de financiamento habitacional, e equivalentes no caso do BNDES. E estou falando de financiamentos que mesmo nas condições atuais cobram menos ou pouco mais de 10% ao ano(!).
A política fiscal não comporta estímulos e cabe recorrer à política monetária.

04 de julho de 2019

FANFARRONADAS TÊM UM PREÇO!

(Elio Gaspari – Folha de S.Paulo, 03) O retumbante Matteo Salvini, ministro do Interior da Itália, aprendeu uma lição. Quando o barco Sea Watch 3 entrou à força no porto de Lampedusa com 40 refugiados líbios, ele anunciou a prisão da capitã Carola Rackete com a teatralidade do radicalismo fanfarrão. A entrada do navio no porto teria sido um “ato de guerra” praticado por uma embarcação “pirata”.

Os 40 africanos que haviam sido resgatados pelo Sea Watch em alto-mar seriam mais um lote de desesperados e Carola Rackete, mais uma ativista dessas ONGs que azucrinam os poderes estabelecidos. Nunca se sabe quando o vento da história sopra em cima de um poderoso da ocasião. O vento soprou em cima de Salvini.

O Sea Watch tem a bandeira holandesa e Carola Rackete é alemã. O ministro das Relações Exteriores de Berlim, Heiko Maas, pediu a libertação da marinheira: “Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso” —exatamente o que achou a juíza que ordenou sua soltura nesta terça (2). O governo da França classificou o ato de “histeria” e o presidente italiano recomendou que se baixasse a bola. Duas vaquinhas internacionais arrecadaram mais de 1 milhão de euros para ajudar a ONG do Sea Watch.

Os refugiados não precisam ficar na Itália e não era razoável que 40 pessoas ficassem à deriva no Mediterrâneo. As leis italianas pretendem conter o êxodo de refugiados africanos, na defesa dos interesses do país, e quando a marinheira desceu no cais de Lampedusa, populares chamaram-na de “vendida”. Um deles gritou que ela devia ser estuprada pelos negros que transportou. Coisa dos tempos de hoje. No século passado os europeus fizeram coisas piores e em 1944 o governo italiano colou cartazes mostrando um soldado simiesco com o uniforme americano saqueando obras de arte. Deixar barcos em alto mar, chamando os tripulantes de piratas metidos em atos de guerra, é um triste retorno, e Salvini percorreu-o.

Isso era o que acontecia em 1947. O governo inglês capturava navios com judeus que seguiam para a Palestina. Depois, quando a saga do navio Exodus (com Paul Newman no papel principal) tornou-se um marco na vida de Israel, tiraram o corpo fora.

Por trás do Sea Watch e das ONGs há uma rede de apoios e cumplicidades. A tripulação do barco tinha jovens franceses, holandeses e espanhóis. Nada de novo: havia uma rede clandestina e multinacional por trás de navios como o Exodus. (Nela militava Samy Cohn, que se tornou banqueiro e morreu no Brasil.) Há diferenças entre os refugiados judeus de 1947 querendo ir para a Terra Santa e os africanos de hoje querendo entrar na Europa, mas o ministro alemão que defendeu a libertação de Carola Rackete foi ao essencial: “Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso”. Os líbios do Sea Watch poderiam ter morrido no Mediterrâneo e, segundo a capitã, ameaçavam jogar-se ao mar, como faziam os africanos dos navios negreiros do século 19. Calcula-se que neste ano 600 africanos afogaram-se no Mediterrâneo.

As falas de Salvini, repudiadas na terça pela juíza, foram uma fanfarronice demagógica. O ministro tinha motivos para saber que a marinheira, uma “fora da lei”, segundo ele, não ficaria muito tempo presa. Sendo alemã, poderia ser deportada. Sabia também que os africanos não ficarão em Lampedusa. Jogou para sua plateia, mas subestimou a reação de outros países e das próprias instituições italianas. Nos dias de hoje, isso é comum.