30 de setembro de 2019

CORRUPÇÃO, PERCEPÇÃO E REALIDADE!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 29) Para ter frutos, combate à corrupção deve ser feito sem demagogia e dentro da lei.

A percepção sobre a corrupção no País não corresponde integralmente à realidade vivida no dia a dia pela população, revela a pesquisa “Barômetro Global da Corrupção: América Latina e Caribe 2019”, feita pela Ipsos e coordenada pela entidade Transparência Internacional. Os números indicam uma sobrevalorização do tema, especialmente quando comparados com os dados de outros países da América Latina. Não é que o combate à corrupção não deva ser uma prioridade ou que o assunto não mereça uma diligente atuação das autoridades. Precisamente porque é fundamental combater as ações criminosas é que se deve ter um diagnóstico objetivo do tema.

Para 90% dos brasileiros, a corrupção no âmbito governamental é um grande problema. Na média da América Latina, tal porcentual é de 85%. No entanto, apenas 11% dos brasileiros relataram que tiveram de pagar algum tipo de suborno para ter acesso a um serviço público, como luz elétrica, expedição de documentos ou hospital. Nesse quesito, o Brasil ficou atrás apenas de Barbados (9%) e Costa Rica (7%). Na média da América Latina, o porcentual de pagamento de suborno no último ano foi de 21%. A Venezuela apresentou a maior frequência (50%), seguida do México (34%) e do Peru (30%).

Outro ponto que chama a atenção na pesquisa é que, para a maioria dos brasileiros (54%), a corrupção piorou nos últimos 12 meses. Ao mesmo tempo, segundo a avaliação da Transparência Internacional, “nos últimos cinco anos, a luta contra a corrupção avançou na América Latina e no Caribe. Políticos de alto escalão foram condenados por corrupção na Guatemala e no Brasil, e uma onda de ações judiciais contra os corruptos alastrou-se por todo o continente, incluindo a investigação realizada pela Operação Lava Jato no Brasil”.

Uma possível causa para esse descompasso entre percepção e realidade, segundo a pesquisa, é que “o aumento da desconfiança e decepção com o governo tem contribuído para um sentimento anticorrupção maior em toda a região”. Na América Latina, apenas 21% confiam no governo; 27%, nos tribunais; e 33%, na polícia.

A polícia é o serviço público mais propenso a exigir e a receber propina na América Latina. Quase um quarto das pessoas que tiveram algum contato com a polícia (24%) pagou algum tipo de suborno. Na Venezuela, esse número chegou a 62% e no México, a 52%.

Segundo a pesquisa, a razão mais frequente para o pagamento de suborno na América Latina é acelerar (37%) ou melhorar (21%) o procedimento público. Porcentual significativo de pessoas (16%) paga valores adicionais ao funcionário público como forma de expressar gratidão pelo atendimento.

Um terço dos que pagaram suborno (33%) relatou ter recebido expressamente um pedido de propina. Em 20% dos casos, embora não tenha havido um pedido explícito de suborno, havia a percepção de que o funcionário público esperava um pagamento informal.

O estudo também revela que a corrupção afeta mais as pessoas mais vulneráveis, muitas vezes sem meios para resistir à pressão de agentes desonestos, denunciar ou buscar medidas alternativas. Por exemplo, há mais relatos de mulheres sobre pagamento de propina para obter assistência médica do que de homens. Essa relação entre vulnerabilidade e corrupção é nítida no caso da Venezuela, com seus índices tão excepcionais de suborno.

O quadro apresentado pela pesquisa indica que há ainda muito a melhorar no combate à corrupção e na prestação de serviços públicos. Nota-se em muitos lugares uma arraigada cultura de pagamentos informais a funcionários públicos. Ao mesmo tempo, há uma grande disposição de ajudar. Questionados se cidadãos comuns podem fazer a diferença na luta contra a corrupção, 82% dos brasileiros responderam afirmativamente. E a maioria (57%) entende que denunciar atos de corrupção pode levar a mudanças. É preciso aproveitar essa boa disposição. O combate à corrupção é um necessário serviço público, que, para ter frutos duradouros, deve ser realizado sem demagogia e estritamente dentro da lei.

27 de setembro de 2019

JORNALISTAS NA GUERRA!

(Sérgio Augusto – O Estado de S. Paulo, 22) Foram dois setembros. No primeiro, de 1939, a Alemanha invadiu a Polônia e deu início à guerra. No segundo, de 1944, o Brasil entrou fisicamente no conflito com os seus soldados armados de máquinas de escrever e câmeras fotográficas.

A primeira leva de pracinhas de nossa brava e precariamente preparada Força Expedicionária embarcara três meses antes para o Mediterrâneo, mas os nossos melhor preparados correspondentes de guerra tiveram de esperar pelos embarques seguintes. Também naquele setembro ocorreram as primeiras vitórias brasileiras, com a tomada de Massarosa, Camaiore e Monte Prano.

No contingente de mais ou menos dez jornalistas –fora os chapas-brancas civis e militares –cinco destaques: Rubem Braga (pelo Diário Carioca), Joel Silveira (pelos Diários Associados), Egydio Squeff (O Globo), Raul Brandão (Correio da Manhã) e, a serviço da United Press, Silvia Bettencourt, mais conhecida como Majoy, única mulher do grupo. Carlos Lacerda também quis ir, mas foi vetado pela ditadura getulista.

Poderia justificar este artigo como uma celebração do papel do Exército brasileiro na octogenária derrocada do nazifascismo ou uma barretada ao livrinho de Helton Corte sobre a participação dos correspondentes brasileiros na guerra, Crônicas de Sangue, publicado no início deste ano pela editora Motres, mas não dissimularei as razões mais profundas desta pauta: meu fascínio por tudo que diga respeito àquela guerra e as saudades que vez por outra sinto do Velho Braga e do (cinco anos menos) Velho Joel.

Enviamos para acompanhar a vitória aliada dois repórteres de ponta, escritores de alto nível, ambos rabugentos, hoje, com justiça, mais lembrados do que todos os generais responsáveis pela nossa campanha bélica na Itália. Escrever bem é a melhor vingança.

Rubem não pretendia fazer uma cobertura que interessasse aos técnicos militares, mas “uma narrativa popular, honesta e simples”, da vida e dos feitos de nossos combatentes, explicou na introdução de Com a FEB na Itália, sua coletânea de reportagens da guerra, reeditadas pela Record com outro título. Cumpriu o prometido, com um brutal saldo credor. Joel, pioneiro do que se convencionou chamar de “jornalismo literário”, publicou mais de um livro sobre o Brasil no conflito, nenhum mais empolgante do que O Inverno da Guerra.

Ao se despedir do jovem (26 anos) repórter, Assis Chateaubriand lhe pediu: “Seu Silveira, me faça um favor de ordem pessoal. Vá para a guerra, mas não morra. Repórter não é para morrer, é para mandar notícias.” Joel seguiu as ordens do patrão. Mandou notícias, mas, ao contrário de Rubem e Brandão, não foi sequer ferido durante o expediente.

Joel chegou à Itália dois meses depois dos demais companheiros, no quarto escalão, com divisa de capitão. Seu mais implacável inimigo, naquelas confrontos a mais de mil metros de altura, entre montanhas e penhascos, não foram os soldados alemães e italianos, mas o frio torturante que no inverno de 1944-45 fustigou a Toscana e os Apeninos.

Nascido e criado na quentura de Sergipe e aclimatado ao calor carioca, Joel sofreu mais do que seus companheiros com o ar gelado. Enfurnado nos frígidos escombros do quartel dos carabinieri de Pistoia, a uns 10 km da zona de combate, era obrigado, como os demais, a cumprir o “doloroso ato” diário de deixar o quentinho dos ‘sleeping bags’ às cinco da manhã, vestir roupas pesadíssimas e descongelar água às pressas para as abluções matinais.

Squeff tentava em vão animá-los: “Guerreiros, de pé! À luta! Vamos acabar logo com a porcaria dessa guerra que estou doido pra voltar ao meu chopinho na Galeria Cruzeiro.” Consolavam-se com o café da manhã, quente e farto, todos os itens made in USA, trazidos para os GIs, os pracinhas americanos sob comando do general Mark Clark, comparsas de bivaque e mordomias dos brasileiros.

Rubem já emergia de sua “cama-rolo” com um cigarro na boca e comia pouco, quase nada. Squeff ficava no café com pão. Joel, para não perder a rima, era um Pantagruel. “Comia muito, quase sempre demais.”

Só por volta das 10 horas o sol comparecia com seus raios “combalidos e agonizantes”. De pandulho cheio, a rapaziada da mídia se amontoava num jipe conduzido por um “fero cabo de São Borja” (terra de Getúlio Vargas), que antes de pisar no acelerador gritava: “Deus é grande!”. Iam até onde lhes era permitido pelas normas de segurança. E assim foi ao longo de mais ou menos oito meses.

Joel e Squeff eram os únicos a dispor de franquia telegráfica, o que assegurava mais “atualidade” às suas correspondências. Constrito pela lentidão do serviço postal, Rubem partiu para uma cobertura menos factual, mais crônica do que reportagem.

Apesar de mais ligado a Rubem (fundariam, dali a oito anos, o semanário Comício), Joel acabou fazendo do “frágil e ardiloso” Squeff seu principal companheiro de batalhas. Juntos brindaram, no Biff da Galeria Vittorio Emmanuelle, em Milão, a rendição da 148ª Divisão Panzer alemã e a imolação de Mussolini e Clara Petacci.

Faltando cinco dias para o fim oficial da guerra, Joel, já desligado de suas obrigações e prestes a embarcar de volta para o Brasil, pegou carona no jipe de um sargento, em direção a Milão. Ainda fardado, sentindo-se “como alguém fantasiado de palhaço numa Quarta-feira de Cinzas”, cruzou, no meio da estrada, com o que restara de um regimento de artilharia alemão: um patético bando de soldados amarfanhados, famintos e sem rumo. Um cabo que falava italiano puxou conversa com Joel. Os tedescos sabiam do fim da guerra mas não tinham para onde ir; as cidades de alguns deles haviam sido arrasadas por bombas das forças aliadas.

Cena memorável. Está no último capítulo de O Inverno da Guerra, uma aula de narrativa e jornalismo.

26 de setembro de 2019

O QUE FEZ OS DEMOCRATAS MUDAREM DE IDEIA!

(The Washinton Post /O Estado de S. Paulo, 25) A presidente da Câmara dos Deputados, a democrata Nancy Pelosi, abriu um inquérito para o impeachment de Donald Trump, depois de meses de resistência. A queixa de um informante envolvendo o presidente e a Ucrânia parece ser o fator que precipitou a decisão dos democratas céticos a respeito do impeachment na Câmara – mas por quê?

Nos últimos meses, uma investigação de quase dois anos constatou que Trump saudou a ajuda da Rússia nas eleições de 2016 e pode ter atuado na obstrução da Justiça depois que assumiu o cargo. Recentemente, Trump usou linguagem racista para atacar quatro mulheres, congressistas democratas. Pelosi e outros poderosos do partido se opuseram ao impeachment, apesar de tudo isso. Até agora.

É possível que Pelosi tenha sido forçada pelos fatos. O que Trump é acusado dessa vez – de usar sua influência para pressionar um líder estrangeiro para descobrir fatos comprometedores contra um oponente político – foi além da conta, dizem seus críticos. Trump diz que não fez nada de impróprio, mas os republicanos do Senado enfrentam dificuldades para defendê-lo.

Talvez os líderes democratas da Câmara sentissem que não tinham escolha a não ser apoiar o processo de impeachment que já está sendo analisado pelo Comitê Judiciário. O Washington Post informou que Pelosi discute o apoio a um comitê separado, totalmente focado no impeachment.

As acusações a Trump têm muitas camadas, mas são mais fáceis de compreender do que as conclusões do promotor especial Robert Mueller. Não havia um definitivo “sim, Trump violou a lei ao fazer x, y e z”, nas 448 páginas do relatório de Mueller. Em vez disso, pintou a imagem de um presidente que pode ter obstruído a Justiça no sentido legal, mas não alcançou a definição de conluio com um poder estrangeiro.

Em contraste, as alegações sobre a Ucrânia podem ser resumidas em uma frase. É o que sete deputados democratas, militares veteranos, publicaram no Washington Post: “O presidente dos EUA pode ter usado sua posição para pressionar um país estrangeiro a investigar um oponente político e buscou usar dólares dos contribuintes americanos como alavanca para fazê-lo”.

Isso ainda é bem complicado – especialmente porque todos os detalhes estão sendo descobertos aos poucos e não se sabe o que há na denúncia original do informante. No entanto, a essência geral é Trump equivale a um caso de corrupção. Se Pelosi precisava de uma ação de Trump para aprimorar a frase, talvez seja esta.

Outra razão pela qual as alegações da Ucrânia romperam a barragem do impeachment pode ser o fato de os investigadores do Congresso terem sentido que não tinham mais opções para responsabilizar Trump. Ele e seu governo impediram, ignoraram e zombaram das intimações do Congresso. Será que ir à Justiça para conseguir informações faria com que os congressistas parecessem ainda mais fraco?

A maioria dos democratas da Câmara apoia um inquérito de impeachment desde agosto. O número aumenta com essas acusações sobre a Ucrânia. Vinte democratas que estavam em cima do muro apresentaram-se em apoio ao impeachment nas últimas 24 horas.

Talvez o impeachment seja uma onda que Pelosi simplesmente não possa mais segurar.

25 de setembro de 2019

A QUESTÃO CLIMÁTICA!

(The Economist – Estado de S.Paulo, 22) De um ano para o outro, você não consegue sentir a diferença. À medida que as décadas se acumulam, a história se torna clara. As faixas em nossa capa representam a temperatura média do mundo todos os anos desde meados do século 19. Os anos azul-escuro são mais frios e os vermelhos, mais quentes que a média em 1971-2000. A mudança cumulativa dá um salto. O mundo está cerca de 1ºC mais quente do que quando esta publicação era jovem.

Representar esse período como um conjunto de faixas pode parecer reducionista. Foram anos com guerras mundiais, inovação tecnológica, comércio em escala sem precedentes e uma criação surpreendente de riqueza. Mas essas histórias complexas e as faixas simplificadoras compartilham uma causa. A mudança climática e o notável crescimento dos números e riquezas humanas surgem a partir da combustão de bilhões de toneladas de combustível fóssil para produzir energia industrial, eletricidade, transporte, aquecimento e, mais recentemente, computação.

Que a mudança climática afeta tudo e todos deve ser óbvio – e os pobres têm mais a perder. Menos óbvio, mas de importância igual, é que, porque os processos que forçam as mudanças climáticas estão incorporados nos fundamentos da economia mundial e da geopolítica, as medidas devem ser igualmente abrangentes e inclusivas. Cortar emissões não é simples; requer revisão quase completa. Para alguns, incluindo muitos dos milhões de jovens que fizeram greve climática global, a reforma exige nada menos que castrar ou extirpar o capitalismo. O sistema cresceu com uso crescente de combustível fóssil. E a economia de mercado fez pouco para ajudar. Quase metade do CO2 extra foi lançada na atmosfera após a virada dos anos 1990, quando cientistas alertaram e governos prometeram agir.

Na verdade, concluir que a mudança climática significa agrilhoar o capitalismo é prejudicial. Economias de mercado criam a resposta necessária. Mercados competitivos adequadamente incentivados e políticos que atendam à sede popular por ação podem fazer mais do que qualquer outro sistema para limitar o aquecimento evitável e lidar com o que não se pode evitar.

É importante entender tudo o que a mudança climática não é. Não é o fim do mundo. A humanidade não está à beira da extinção. O planeta não está em perigo. É antigo, resistente e sobreviverá. E, embora muito possa se perder, a maior parte da vida maravilhosa que torna a Terra única, até onde astrônomos podem dizer, persistirá. É uma ameaça terrível para inúmeras pessoas, de alcance planetário. Deslocará dezenas de milhões, no mínimo; perturbará fazendas das quais bilhões dependem; secará poços e tubulações; inundará áreas baixas – e, com o tempo, as mais altas. É verdade que também criará algumas oportunidades, ao menos no curto prazo. Mas quanto mais a humanidade demora para cortar emissões, maiores os perigos e mais escassos os benefícios – e mais risco de surpresas catastróficas.

E não é só um problema ambiental ao lado de todos os outros – e absolutamente não pode ser resolvido pelo autoflagelação. A mudança por parte dos mais alarmados não é suficiente. É uma questão para todo o governo. Não pode ser desviado para o ministro do Ambiente que ninguém conhece. Não pode ser adiado por algumas décadas. Está aqui e agora. Já torna eventos extremos, como o furacão Dorian, mais prováveis. Suas perdas já estão presentes – em paisagens monótonas onde geleiras morrem e em recifes desbotados. Um atraso significa que a humanidade sofrerá mais danos e enfrentará luta bem mais cara para compensar o tempo perdido.

Juntos. O que se deve fazer já está entendido. E uma tarefa vital é a especialidade do capitalismo: melhorar a vida das pessoas. A adaptação, incluindo defesas marítimas, usinas de dessalinização e culturas resistentes à seca, custa caro. Um problema em particular para países pobres, sob risco de ciclo vicioso em que impactos climáticos roubam a esperança de desenvolvimento. Acordos internacionais enfatizam a necessidade de apoio a países mais pobres nos esforços para se adaptar à mudança climática e enriquecer o suficiente para precisar de menos ajuda. Aqui o mundo rico se esquiva de deveres.

Mesmo se cumprisse, de modo algum todos os impactos serão resolvidos. Quanto mais a mudança climática avança, menos a adaptação é capaz de compensar. Isso leva à necessidade de cortar emissões. Com melhoras tecnológicas plausíveis e investimento, é possível criar redes de eletricidade sem centrais emissoras de CO2. O transporte rodoviário pode ser eletrificado, embora seja mais difícil para viagens longas e aéreas. Processos industriais podem ser reequipados.

Os esforços hoje, frouxos demais para evitar que o mundo esquente de 2°C ou até 3°C, podem ser aprimorados. Forçar empresas a revelar vulnerabilidades na questão climática ajudará investidores a alocar capital. Um preço robusto para o carbono poderia incentivar inovações. Mas, por mais poderosa que seja essa ferramenta, o corte em emissões que ela traz precisará ser acelerado por regulamentos bem direcionados. O problema com essas políticas é que o clima responde ao nível geral de CO2 na atmosfera, e não à contribuição de um país. Se um governo reduz drasticamente suas emissões, sem que os outros o façam, não verá danos diminuídos.

O dano depende da resposta humana nas próximas décadas. Se o espírito empresarial que primeiro usou o poder de combustíveis fósseis na Revolução Industrial sobreviver, os países onde ele mais prosperou devem estar dispostos a transformar o maquinário da economia sem renunciar aos valores a partir dos quais a economia nasceu. Alguns dizem que o amor do capitalismo pelo crescimento inevitavelmente o põe contra um clima estável. Esta publicação acredita que estão errados. Mas a mudança climática pode, apesar de tudo, ser a sentença de morte para a liberdade econômica. Se o capitalismo quiser manter seu lugar, deve estar preparado para isso.

24 de setembro de 2019

CRESCIMENTO TORTO À DISTÂNCIA!

(Antônio Gois – O Globo, 23) O Censo da Educação Superior, divulgado na semana passada pelo MEC, mostrou que, pela primeira vez na série histórica do levantamento, houve mais oferta de vagas à distância do que presencial. De um ano para o outro, o setor teve um crescimento impressionante de 51% no número de cursos nesta modalidade. Já era claro pelos censos anteriores que o principal motor de expansão do ensino superior eram os cursos à distância. Os dados, referentes ao ano de 2018, mostram que essa tendência vai acelerar ainda mais.

As principais razões para o crescimento desses cursos são o menor custo de suas mensalidades, a maior facilidade de chegarem a locais distantes – especialmente num país continental como o Brasil -, e o fato de serem mais acessíveis também a quem precisa conciliar estudo e trabalho. No caso da comparação entre 2017 e 2018, pode-se acrescentar a esta análise o decreto do governo Michel Temer que flexibilizou parâmetros para abertura de vagas na modalidade.

No setor educacional, como era de se esperar, há críticos e entusiastas do modelo, e eles não estão restritos a apenas um grupo político. A educação à distância constava do enxuto programa de governo apresentado pelo então candidato Jair Bolsonaro. E foi também política pública nos governos do PT. Em recente visita ao Brasil em julho, numa mesma entrevista em que dizia que o Brasil vivia um “novo tipo de ditadura” sob o governo Bolsonaro, o sociólogo espanhol Manuel Castells defendeu que uma das soluções para a educação no Brasil seria o reforço a “universidades virtuais”, com mais programas de formação na modalidade, “mas não de segunda categoria”.

O que opõe diferentes grupos políticos nesse debate, portanto, não é necessariamente o fato de serem contra ou a favor à modalidade, mas, principalmente, a forma como entendem o papel do governo na regulação do setor privado.

Em recente estudo publicado na Revista Científica em Educação a Distância, Carlos Eduardo Bielschowsky – que foi secretário de educação à distância na gestão de Fernando Haddad (PT) no MEC – mostra um dado preocupante: a maioria das matrículas em cursos à distância em 2015 e 2016 está em cursos com baixo conceito no Enade, avaliação do MEC feita com alunos do ensino superior.

Outro dado citado por Bielshowsky, e que também consta da apresentação que o MEC fez dos dados na semana passada, é que há alta concentração de matrículas (52%, segundo o dado de 2018) em apenas cinco grupos educacionais privados.

Como o setor público não tem conseguido expandir suas matrículas à distância na mesma velocidade, a tendência é que o ensino superior fique ainda mais concentrado no privado e, no caso da modalidade, especialmente em poucos grupos.

Se resta pouca dúvida sobre o potencial da educação à distância para democratizar a oferta do ensino superior no Brasil, há também outros riscos a serem considerados, além da qualidade e da concentração do setor. É o caso da evasão. Na coletiva de apresentação dos dados do Censo da Educação Superior, o ministro Abraham Weintraub destacou que, sem desistências, o número de graduados poderia dobrar no Brasil. É, sem dúvida, um problema grave de ineficiência, mas cuja solução não é tão simples, visto que país nenhum do mundo consegue ter próximo de 100% de concluão no ensino superior. Mas não há dúvida que a taxa de desistência, calculada para todo o sistema, é alta no Brasil: 57% num período de seis anos. Como ela é maior nos cursos privados (60%) e também na modalidade à distância (62%), a tendência, portanto, é que essa ineficiência aumente ainda mais.

23 de setembro de 2019

DEPUTADO RODRIGO MAIA ENTREVISTADO POR PEDRO BIAL!

O Conversa Com Bial recebeu Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, nesta quinta-feira, 19/9. Entre discussões sobre família, trajetória política e o governo de Jair Bolsonaro, o político entregou a vontade de ser presidente da República um dia. A declaração veio depois de Pedro Bial lembrar que Maia rejeitou pedidos de impeachment de Michel Temer após denúncias contra o ex-presidente. Caso Temer fosse deposto, o presidente da Câmara ia assumir a Presidência.

“No momento que o Brasil vivia, saindo de um impeachment, recessão profunda, pobreza aumentando, desemprego, era uma decisão de se manter as instituições funcionando ou correr o risco de desorganizar tudo.”

“Não é questão de ser presidente. Quero ser presidente, um dia, pelo voto.”

Sobre a possibilidade de concorrer em 2022, Rodrigo afirmou que só pretende disputar uma eleição quando organizar as contas do país.

“Só vou disputar uma eleição majoritária no Brasil se entender que terei condições de mudar a minha cidade, o meu estado e o meu país.”

Da infância ao começo na política

Maia não escondeu a emoção ao rever momentos da infância com a família no Chile. O presidente da Câmara lembrou da época em que o pai, Cesar Maia, precisou se exilar no país por causa da ditadura militar.

“Se você não chegasse rápido para onde o estudante estava sendo levado, o estudante sumia. Minha avó corria para conseguir a lista dos estudantes presos, para dar a divulgação e não correr o risco de sumir com ele. Era sempre um processo muito doloroso.”

Ele contou que o pai, de primeira, não apoiou a sua entrada na política.

“A política é intensa, dá resultados positivos, mas também é muito instável. Ele entendeu que continuar no sistema financeiro era melhor que entrar na política.”

O jeito tímido

“Na primeira eleição foi difícil. Eu tinha sempre um deputado estadual comigo, dava a palavra a ele e depois dava ‘Boa noite’. Resolvi meu problema.”

Outro ponto marcante da personalidade de Maia é o jeito emotivo. Após exibir momentos emocionados do político, o apresentador questionou por que ele ficou tão mexido depois de uma declaração de Alexandre Frota.

“A gente cria preconceitos contra as pessoas. O Alexandre, ao longo desse processo, tinha tudo para ser um grande opositor do meu estilo de fazer política. Ele foi se aproximando, ajudando, compreendendo o que era política, vendo que tem muitos excessos nas redes sociais e construímos uma amizade.”

O presidente da Câmara lembrou que Eduardo Cunha foi importante para a sua trajetória. Foi por causa do político que ele não abandonou a carreira.

“Eu tento ser racional. Eu tinha tido 235 mil votos, presidente do DEM fiz 86 mil votos, me elegi com 53 mil votos… o que sobrava para mim na próxima eleição? Era melhor nem disputar.”

“Para você estar na política, tem que estar estimulado a estar fazendo alguma coisa, realizando alguma coisa, e em 2014 eu estava com pouco espaço. Depois de alguma forma, com o próprio Eduardo Cunha na presidência, foi recuperado alguma coisa. Foi importante nesse processo.”

O governo de Jair Bolsonaro

Maia avaliou o governo de Jair Bolsonaro e apontou que foi o PT (Partido dos Trabalhos) que levou o atual presidente ao poder.

“Todo o ciclo do PT que gerou o Bolsonaro. Quem abriu a janela para a antipolítica, para o desgaste da política, foi o governo do PT. Quer se transformar em algo atual um problema construído por quem governou. Quem governa é quem gera espaço para quem entrar.”

“O presidente tem o perfil dele, ninguém desconhecia, as teses que ele sempre defendeu, os temas que ele sempre defendeu. Ele nunca escondeu. Não foi surpresa para ninguém.”

O presidente da Câmara ainda analisou quais são os pontos negativos e positivos do governo.

“O que tem de melhor é a narrativa da agenda de reformas que o Paulo Guedes faz. O que tem ainda de negativo é que essa narrativa precisa estar transformada em fatos reais.”

Os filhos de Jair Bolsonaro

O político também comentou as polêmicas em torno dos filhos de Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). O presidente da Câmara comentou o comportamento dos herdeiros do presidente nas redes sociais.

“Na relação pessoal, não posso reclamar, sempre são educados e respeitosos. Na internet, o negócio fica um pouco mais agressivo.”

“Com o tempo, você acaba compreendendo que aquilo ali é um método. Um método de um ambiente radical que você precisa dar carne aos leões todos os dias para que ele possa continuar movimentando.”

Sobre a possível indicação de Eduardo para a embaixada dos Estados Unidos, Maia afirmou que o presidente precisa compreender que a escolha pode trazer consequências para o Brasil.

“No Brasil em 2019, onda sociedade cobra mais, participa e critica mais a política, é uma decisão que vai ter reflexos para o governo.”

20 de setembro de 2019

FRENTE A NOVA CHUVA DE DÓLARES E EUROS PELO MUNDO, BRASIL PODE ACABAR FICANDO NA SECA!

(Fernando Canzian – Folha de S.Paulo, 19) O Brasil tem uma inserção minúscula na economia global: responde por 1,2% de todo o comércio internacional e produz somente 2,5% dos bens e serviços do planeta.

São frações quase ridículas para um país democrático de 210 milhões de habitantes. Isso traz pouca competitividade e atrasos que custam caro, seja pela via de preços internos elevados ou pela baixa qualidade do que consumimos.

Até o grande boom das commodities dos anos 2000, o país mal se inseria na engrenagem comercial global —e ainda o faz predominantemente com produtos básicos.

Já a participação relativa na produção de bens e serviços vem encolhendo há anos com o crescimento acelerado dos países asiáticos.

Mas, no momento em que os Estados Unidos e alguns países europeus parecem condenados a um desaquecimento mais acentuado (ou a uma recessão), o isolamento do país poderia ser uma vantagem.

No auge da crise global em 2009 (a chamada Grande Recessão), o PIB brasileiro encolheu apenas 0,1%.

Em 2010, saltou 7,5% e cresceu outros 4% em 2011 —antes de Dilma Rousseff colocar tudo a perder nos anos seguintes, radicalizando o gasto público, a fim de se reeleger em 2014.

Passados dez anos da grave crise de 2009, os bancos centrais americano e europeu voltam a inundar o mercado global com liquidez (dólares e euros) baixando juros e comprando títulos de empresas e governos em dificuldades. Ao colocar mais dinheiro na praça, esperam que empresas e consumidores gastem mais, evitando outra recessão. A estratégia é a mesma de dez anos atrás, quando parte do dinheiro acabou “vazando” para investimentos em outros países.

Como ocorreu há uma década, o Brasil seria novamente um bom candidato a se beneficiar dessa montanha de dinheiro se estivesse com as contas mais ajustadas e se o governo Jair Bolsonaro se mostrasse mais confiável.

Apesar de sua pequena integração física global, o Brasil tem canais financeiros totalmente desimpedidos para investidores internacionais na Bolsa e nas empresas. É nessa área onde o país está hoje mais internacionalizado.

Assim, é péssima a notícia de que 230 fundos de investimento internacionais com US$ 16 trilhões em caixa tenham manifestado preocupação com as políticas ambientais de Bolsonaro em relação à Amazônia e os seus impactos sobre as empresas nas quais investem.

No front das contas públicas, a falta de articulação política do presidente também acaba de levar ao engavetamento no Congresso (sem nova previsão de análise) de um amplo pacote de medidas para controlar o aumento desenfreado dos gastos estatais.

Para avançar, o projeto precisa de aprovação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o mesmo palco das confusões do governo que atrasaram o trâmite da reforma da Previdência.

Com a deterioração da imagem do Brasil no exterior e a dívida pública se aproximando do equivalente a 80% do PIB (eram 51,5% em 2013), fica cada vez mais difícil ao Brasil e suas empresas se beneficiar da chuva de dólares e euros que voltou a cair forte lá fora.

19 de setembro de 2019

URBANISMO PRECISA OUVIR PESSOAS, DIZ COLOMBIANO!

(Priscila Mengue  – O Estado de S. Paulo, 18) Uma praça do centro de Medellín tem duas grandes esculturas de pássaro: uma intacta e a outra, parcialmente destruída em um ataque à bomba que deixou 29 mortos em 1995. Lado a lado, as peças de Fernando Botero hoje simbolizam a memória do que já foi a cidade mais perigosa do mundo e a renovação vivida nas décadas seguintes. Esse processo de mudança vem acompanhado de grandes projetos urbanos e um dos responsáveis pelo planejamento e gestão deles é Carlos Mario Rodríguez, que trabalhou na Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano de Medellín de 2004 a 2010.

Também professor universitário, o colombiano saiu do setor público há nove anos e, hoje, é consultor de projetos arquitetônicos e urbanísticos. Ele falou com o Estado por telefone do Recife, cidade que se inspirou em Medellín para criar projetos em comunidades de baixa renda. Hoje, Rodríguez participa de palestra sobre transformação e inovação, seguida de debate (com inscrições encerradas) com secretários municipais do Recife e de São Paulo, no Insper.

O que é o “urbanismo social”, que alguns associam aos projetos realizados em Medellín nas últimas décadas? “Urbanismo social” é redundância. Falar em urbanismo é falar de sociedade. Quando falamos de urbanismo social, falamos de operações que são feitas com as pessoas no território, trabalhando com elas. É uma construção coletiva, que pode ser uma biblioteca, um colégio, uma praça, um jardim, uma rua, construídos da perspectiva da população.

Medellín se tornou exemplo. Que mudanças levaram a isso?

É um exercício muito importante em Medellín: de dispor de todas as ferramentas para um território de forma simultânea (são os Projetos Urbanos Integrais), a partir da saúde, da segurança, da educação. Não é um problema só do edifício, da rua, é necessário que arquitetura e urbanismo conversem. Isso se faz com uma metodologia de quatro componentes: institucional, que envolve todos os elementos de governabilidade de um território; e desenvolvimento de programas de fomento, para que as pessoas tenham, de alguma maneira, capacidade de subsistir no meio de um território, com condições melhores. O terceiro componente é o trabalho social que se converte em exercício de corresponsabilidade; finalmente, o desenvolvimento físico e social, com o urbanismo e a arquitetura. É um sistema muito importante, de trabalhar de maneira coletiva. Cada um tem um papel para assumir. O técnico trabalha no componente técnico, os cidadãos trabalham de sua perspectiva, cada um de um jeito.

Por que é tão necessária essa participação da população?

É quem habita o território, quem reconhece os problemas. O território se costura por meio dos olhos da comunidade, que participa do processo desde o início e também na implementação, fazendo projetos de melhoramento. É muito importante porque, no fim, isso cria empoderamento das pessoas, que cuidam mais.

Historicamente, o urbanismo aplicado por governos costuma ouvir a população ou é mais de cima para baixo?

Quase sempre a tradição do urbanismo é de ser o grande planejador de cidades, de cima para baixo, se precisa desconstruir essas linhas do território com as pessoas. O olhar hoje é para a cidade já construída, não para a teórica, como foi Brasília (erguida em uma área sem construções). O urbanismo precisa trabalhar nos bairros, que já estão construídos e em processo de uma ocupação que é muito aleatória.

Esses modelos de Medellín são replicáveis?

Não se pode replicar de maneira literal, cada território tem condições sociais e culturais diferentes. O importante são os quatro elementos, com uma decisão do Estado e um processo de comunicação muito forte. É quase um projeto de acupuntura urbana.

As mudanças ali nas últimas décadas tiveram forte investimento público, até dentro de uma perspectiva de mudança da imagem da cidade. Como transpor isso para outras capitais latinas, que muitas vezes não têm os mesmos recursos?

Não creio que seja uma questão de recursos, mas de uma decisão política, que é muito importante. De colocar todas as ferramentas em um território definido, isso leva a resultados, como a redução da violência. O problema não é de recursos, é de articulação de ações públicas.

No Brasil, muitos prefeitos costumam defender parcerias público-privadas para projetos urbanísticos. É uma solução?

A responsabilidade é dos órgãos públicos. Os serviços gerais de uma cidade se resolvem no setor público. Uma aliança público-privada pode resolver outras coisas, como concessões que dão recursos. Cada um tem as próprias responsabilidades.

O senhor conhece São Paulo? Qual é a sua percepção urbanística da cidade?

Sim, é uma cidade que se expande no horizonte, que se alarga por todo o território. Como Caracas, Bogotá e Cidade do México, que continua crescendo de maneira horizontal e não trabalha sobre cidades compactas. Acaba sendo uma cidade muito custosa, porque necessita de transportes públicos muito complexos, necessita de serviços públicos que atendam à periferia. É uma cidade absolutamente insustentável. São Paulo tem muita diferença entre a riqueza e a pobreza, como uma ferramenta territorial.

18 de setembro de 2019

DRONES SÃO CAPAZES DE ESCAPAR DE DEFESA ANTIAÉREA TRADICIONAL!

(O Estado de S. Paulo, 17) Os danos infligidos pelos rebeldes houthis ilustram a quase impossibilidade de um país proteger instalações vitais de uma ameaça como os drones. Os graves prejuízos sofridos pela Arábia Saudita foram resultado de um ataque de dez drones, segundo o Soufan Center. É possível que também tenham sido usados mísseis de cruzeiro, disse a instituição, citando autoridades do governo americano.

São armas à disposição dos houthis xiitas, que contam com o apoio do Irã desde que começaram a enfrentar, no Iêmen, as forças de uma coalizão liderada por Riad, há cinco anos. Em diferentes ocasiões, essas armas são capazes de burlar os sistemas de defesa sauditas.

Frente a uma ameaça dessa natureza, “é necessário um sistema de defesa supermoderno, como tem apenas um grupo aeronaval americano (organizado em torno de um dos portaaviões da Marinha dos EUA)”, comentou o ex-chefe de um serviço de inteligência francês, que pediu para não ser identificado. “Um ataque coordenado, como o de sábado, não está ao alcance de qualquer um, como tampouco está ao alcance de todo mundo poder se defender de um ataque assim.

No início de julho, os houthis apresentaram, durante cerimônia em um lugar secreto, um drone-bombardeiro chamado “Sammad 3”, além do míssil de cruzeiro Al-Qods. Eles contam ainda com o drone armado de explosivos Qasef 2. “É o poder nivelador da tecnologia que permite aos mendigos ameaçarem grandes potências”, disse recentemente um funcionário de alta patente do Exército francês, que também pediu para não ser identificado. “Nos vemos derrotados por artefatos de 250 quilos, como nos vimos derrotados por minas no Mali.”

A Arábia Saudita gastou uma fortuna no sistema de defesa terra-ar, como baterias antimísseis americanas Patriot, radares e uma força aérea ultramoderna. Em 2018, gastou US$ 65 bilhões em armamentos, segundo o Instituto de Pesquisa pela Paz de Estocolmo.

Becca Wasser, analista da Rand Corporation, disse que “a Arábia Saudita conta com seus sistemas Patriot para interceptar os projéteis houthis, mas os resultados são moderados, porque este sistema está projetado para destruir mísseis, mais do que drones”. “O emprego de drones indica que os houthis perceberam a falha”, disse.

As dimensões das instalações petroleiras sauditas, tão grandes quanto cidades, e sua dispersão territorial dificultam a proteção. Fabricados com peças de origem iraniana, segundo a ONU, os drones dos houthis são de dimensões variáveis e podem se deslocar a várias velocidades e altitudes, motivo pelo qual são difíceis de interceptar.

“O problema é que não existe um sistema único para tratar todos os casos e a ameaça do drone evolui sem parar”, comentou um engenheiro militar francês. “Os lugares sensíveis estão protegidos com radares, mas agora existem drones autônomos, programáveis e insensíveis às interferências de GPS.”

Em 19 de agosto, a Força Aérea saudita publicou imagens de um de seus caça-bombardeiros F-15 destruindo, em pleno voo, um drone Qasef 2 no Iêmen – e garantiu ter neutralizado cerca de 20 aparelhos no ano anterior. Segundo vídeos publicados pelos houthis, seu drone de ataque Sammad 3 tem um raio de ação de 1.500 quilômetros. Isso significa que quase todo território da Arábia Saudita estaria a seu alcance, assim como várias regiões dos Emirados Árabes, aliado saudita na guerra no Iêmen.

17 de setembro de 2019

DEFESA DA LEI E DA DEMOCRACIA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 15) Longe de ser uma questão protocolar, é de grande importância reafirmar a missão institucional do Ministério Público, que deve submissão apenas à lei.

Na última sessão de Raquel Dodge como procuradora-geral da República no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), vários discursos lembraram a elevada missão do Ministério Público. Como a Constituição estabelece no art. 127, compete-lhe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Longe de ser uma questão protocolar, é de grande importância reafirmar, especialmente nestes tempos confusos, a missão institucional do Ministério Público, que deve submissão apenas à lei.

O decano do STF, ministro Celso de Mello, lembrou que o Ministério Público é “o guardião independente da integridade da Constituição e das leis”. Ou seja, ele “não serve a governos, ou a pessoas, ou a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da República, nem deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja ou o instrumento de concretização de práticas ofensivas aos direitos básicos das minorias”, disse o ministro Celso de Mello.

Para que o Ministério Público possa cumprir bem o seu papel de defesa da ordem jurídica, é imprescindível que ele seja de fato independente, não sujeito a interesses pessoais ou corporativos. “Sem um Ministério Público forte e independente na defesa dos direitos e das liberdades das pessoas e no combate à corrupção, os valores democráticos e republicanos propugnados na Constituição de 1988 estariam permanentemente ameaçados”, disse o presidente do STF, ministro Dias Toffoli.

A independência do Ministério Público não diz respeito, portanto, apenas à instituição ou aos seus membros. Tal prerrogativa é do interesse de todos os cidadãos, pois, cumprindo sua missão institucional, o Ministério Público assegura a todos o exercício das liberdades e garantias fundamentais.

No período em que esteve à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR), Raquel Dodge, segundo o ministro Dias Toffoli, “fez uma defesa contundente das liberdades de expressão, de manifestação do pensamento, de reunião e de cátedra, bem como do pluralismo de ideias”.

A vigilância é sempre necessária. No recente processo de indicação do novo procurador-geral da República, ficou evidente a tentativa, levada a cabo por uma associação de direito privado, de impor nomes para o cargo, o que atenta contra a independência da instituição. O Ministério Público está sujeito apenas à lei. A imposição de outras obrigações, seja qual for a sua natureza, é desviar o Ministério Público de seu caminho institucional.

“Regimes autocráticos, governantes ímprobos, cidadãos corruptos e autoridades impregnadas de irresistível vocação tendente à própria desconstrução da ordem democrática temem um Ministério Público independente”, lembrou o ministro Celso de Mello. O motivo desse desconforto é evidente. Um Ministério Público atuante, submetido apenas à lei, é obstáculo para quem deseja atuar à margem da lei.

Em seu discurso, Raquel Dodge fez um diagnóstico do panorama atual, que é também um alerta. “No Brasil e no mundo surgem vozes contrárias ao regime de leis, ao respeito aos direitos fundamentais e ao meio ambiente sadio também para as futuras gerações”, disse. São muitas as ameaças à ordem jurídica e à ordem democrática. Sem maiores pudores, vêm se difundindo em plena luz do dia agressões ao Congresso e ao Judiciário.

“Nesse cenário, é grave a responsabilidade do Ministério Público, mas é singularmente importante a responsabilidade do STF”, disse Raquel Dodge. “Quero lhes fazer um pedido muito especial, que também dirijo à sociedade civil e a todas as instituições da República: protejam a democracia brasileira tão arduamente erguida em caminhos de avanços e retrocessos, mas sempre sob o norte de que a democracia é o melhor modelo para construir uma sociedade de mais elevado desenvolvimento humano”. Não há caminho alternativo. É apenas por meio da lei e da democracia que se promove o desenvolvimento do País.

16 de setembro de 2019

HÁ 500 ANOS, COMEÇAVA VIAGEM QUE PROVOU QUE A TERRA É REDONDA!

(Fabrício Lobel / Marcelo Pliger  – Ilustrissima – Folha de S.Paulo, 15) Há 500 anos o português Fernão de Magalhães iniciava expedição marítima castigada por tempestades, rebeliões, fome e mortes, mas que realizou a façanha de dar a primeira volta ao mundo.

Em setembro de 1522, chegava ao porto espanhol de Sanlúcar de Barrameda (próximo a Sevilha, no sul da Espanha) uma estranha embarcação com o casco perfurado. Os 18 homens que compunham a tripulação vinham muito magros, com barbas e cabelos longos. Na pele queimada de sol traziam feridas mal curadas.

Quando desembarcaram, suplicaram por velas de cera. Queriam ir até a igreja mais próxima acendê-las em agradecimento aos céus por terem retornado à terra, depois de três anos no mar.

Da última vez que a embarcação havia partido daquele porto, estava acompanhada de outras quatro naus, e a tripulação era de 243 marinheiros. Durante os anos no mar, aqueles homens enfrentaram tempestades capazes de destruir frotas inteiras, batalhas campais, rebeliões, naufrágios, doenças desconhecidas e frio. No meio do mar, passaram sede e fome severas. Depois de devorar os ratos, comeram pedaços de couro que cobriam os barcos.

Com muitas perdas e só alguma carga valiosa a bordo, os viajantes retornavam de uma expedição que parecia fadada a ser vista como um fracasso. Ainda assim, a primeira viagem a contornar a Terra, que neste 2019 completa 500 anos de seu início, entrou para a história como um dos maiores feitos da humanidade.

Para alguns, a saga iniciada pelo português Fernão de Magalhães é comparável à chegada do homem à Lua. Para outros, trata-se de façanha ainda maior, por ser a primeira viagem que efetivamente descobriu o planeta Terra.

“Há um paralelismo feliz desta viagem com a ida à Lua. Os astronautas nos anos 1960, antes mesmo de chegarem à Lua, sempre falavam de Magalhães, Vasco da Gama e Colombo como pessoas inspiradoras, homens que fizeram algo, em certos aspectos, mais difícil do que eles estavam fazendo”, explica o historiador português João Paulo Azevedo de Oliveira e Costa.

De fato, em 1970, quando a Apollo 13 sofreu um grave acidente no espaço, só conseguiu retornar à superfície da Terra com ajuda remota dos engenheiros nos EUA. “Isso não existia para os navegadores. Não havia comunicação com Lisboa ou Sevilha, e os riscos eram maiores”.

Nascido em uma família fidalga portuguesa, Magalhães cresceu tendo como heróis os navegadores que voltavam das Índias carregados de tesouro e glória. Logo que teve idade para subir a bordo, começou a viajar. Passou pela África e pelas Índias.

Aos 34 anos, sentia-se preparado para organizar sua própria expedição, mas seu pedido foi rechaçado pelo rei português. Pesava contra ele o temperamento insolente e a acusação de que havia cometido desvio de bens enquanto trabalhou no Marrocos em nome da Coroa.

Mesmo rejeitado, Magalhães ficou em Portugal e se dedicou a estudar todos os mapas e livros sobre navegações em que podia colocar as mãos. Muitos desses documentos eram mantidos sob sigilo por Portugal, que tinha interesse em ocultar parte de suas descobertas com as navegações.

“Existia uma política de sigilo. Não só das rotas como das mercadorias e dos pontos em que eles passavam. As mercadorias eram assim mantidas como monopólio português”, explica a professora de história da USP Iris Kantor.

Os principais rivais eram os reinos vizinhos de Castela e Aragão, embriões do que logo se tornaria a Espanha. As potências disputavam o controle da melhor rota comercial até as Índias, origem das cobiçadas especiarias. Um conjunto de ilhas, em específico, não saía dos planos de Magalhães: as Molucas (atual Indonésia), a joia do Índico, onde o cravo-da-índia crescia naturalmente nas florestas e chegava a forrar as praias.

Após anos de estudo, Magalhães atravessou a fronteira de Portugal em busca do rei espanhol. Queria que Carlos 1º financiasse sua viagem e, para isso, o português levava debaixo do braço mapas e cálculos indicando que as tais ilhas ficavam do lado espanhol do mundo.

Afinal, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, o globo havia sido dividido entre Portugal e Castela. A linha imaginária que cortava o litoral brasileiro também dividia o sudeste asiático em local até então desconhecido. Magalhães, porém, garantia que o rei espanhol teria direito a todas as riquezas vindas de Molucas.

Àquela época, portugueses já dominavam uma rota bastante sólida para as Índias, num caminho que consistia em: 1) contornar o norte da África; 2) aproveitando as correntes oceânicas, apontar a proa para a América; 3) no meio do Atlântico, retornar para o sul do continente africano até 4) entrar no oceano Índico, já no rumo das Índias.

Com esse conhecimento, portugueses fundaram portos, fortalezas e centros de comércio por toda a costa africana e pelo Brasil, fazendo do Atlântico um mar hostil a embarcações estrangeiras.

Assim, a opção óbvia dos espanhóis para chegar às Índias era rumar para oeste, em direção a um mundo praticamente desconhecido, até chegar a Molucas.

Foi com essa estratégia que, quase 30 anos antes, Cristóvão Colombo havia partido da mesma Espanha com destino às Índias. Chegou ao Caribe, mas voltou à Europa acreditando que tinha cumprido a missão de ir ao Oriente. Morreu com essa certeza, enquanto outros navegadores logo perceberam que Colombo havia, na verdade, topado com uma imensa massa continental que se estendia de norte a sul, a América.

A tarefa de Magalhães, portanto, era transpor pela primeira vez as Américas no seu caminho ao Oriente e retornar com os porões cheios de especiarias.

“Esses produtos, que hoje estão baratos, àquela altura eram caríssimos e ajudaram a montar um império. Algo interessante é que os grandes impérios coloniais foram montados em função de produtos desnecessários. Ninguém precisava de especiarias, bebidas, tabaco, chocolate, chá, café para viver. É como a Coca-Cola de hoje”, compara Oliveira e Costa.

O historiador observa que os navegadores daquele tempo, além dos lucros com o comércio, perseguiam algo mais: a ambição da glória pessoal ao realizar uma proeza inédita e marcar seu nome na história.

Assim, em setembro de 1519, Magalhães partiu da Espanha em um comboio de cinco naus com a missão de chegar às ilhas Molucas.

Ele levava sob seu comando uma expedição composta sobretudo por espanhóis (embora houvesse também portugueses, gregos, franceses etc.). Grande parte da tripulação não confiava no português. Também não acreditava que ele soubesse como contornar a América.

Um ponto importante para a expedição é a entrada no que é hoje o rio da Prata, um estuário de grandes rios que divide o Uruguai e a Argentina.

Quatro anos antes de Magalhães, havia estado por ali o navegador espanhol João Dias de Solis, com a mesma missão de transpor a América. Solis entrou no rio da Prata pensando ser aquela uma passagem para outro oceano. Enquanto explorava a região, o espanhol foi atacado por índios tupi e devorado em um ritual antropofágico.

Magalhães entrou nesta baía, mas percebeu que o rio não dava acesso a outro oceano. Restava a ele, então, retornar para a Espanha ou procurar uma nova passagem nos mares do sul, completamente desconhecidos.

O português optou pela segunda alternativa e foi tateando qualquer baía, qualquer reentrância do mar, apostando ser a passagem para outro oceano. Quando já estava mais ao sul do que qualquer outro europeu já estivera, e às vésperas da chegada do inverno, Magalhães decidiu ancorar em um porto natural no que é hoje o sul da Argentina. Ali passaram cinco meses até que o inverno findasse.

Os espanhóis decidiram então tomar o controle da frota e retornar à Europa, abandonando uma missão que julgavam ser suicida. Nada garantia que houvesse uma passagem navegável para o outro oceano. A América bem poderia ser uma enorme porção de terra ancorada nos polos Norte e Sul. E se a passagem existisse, nada garantia que estaria onde Magalhães insistia em procurar.

O português, contudo, conseguiu controlar o motim. Os chefes do movimento foram castigados ou sentenciados ao esquartejamento. A frota então retomou viagem, cada vez mais ao sul, até finalmente encontrar uma passagem navegável entre o Atlântico e um novo oceano.

O feito de 500 anos até hoje inspira o explorador Amyr Klink. “Ele acabou descobrindo a passagem mais difícil de todas. O estreito de Magalhães é um labirinto. Eu já naveguei nesses lugares e vou de carro para lá todo ano. E a vida lá é um inferno. Mesmo com um veleiro equipado como o nosso, é uma navegação super dura, dura dura. O canal é largo, o vento levanta ondas curtas. É absolutamente extraordinário o que eles fizeram.”

Ao avistarem o novo oceano, marujos rezaram em agradecimento. E por tê-los recebido com mares tão calmos, foi batizado de Pacífico.

O contorno da Argentina, porém, custou a perda de duas das cinco naus. Uma naufragou e outra desertou na travessia do estreito. Ainda assim, por instinto ou estudo, Magalhães conseguiu provar seu ponto: existia uma rota navegável às Índias pelo lado espanhol do mundo.

No entanto, outro problema atingiu a expedição. O navegador percebeu que aquele oceano era maior do que imaginara, obrigando a tripulação a um racionamento extremo de comida e água. Marinheiros batalhavam pelo direito de comer os ratos dos porões das embarcações.

Antonio Pigafetta, um italiano que completou a viagem e registrou suas observações num diário de bordo, escreveu sobre a miséria durante a travessia do Pacífico. “Já não tínhamos nem pão para comer, mas apenas polvo impregnado de morcegos, que tinham lhe devorado toda a substância, e que tinham um fedor insuportável por estar empapado em urina de rato. A água que nos víamos forçados a tomar era igualmente pútrida e fedorenta. Para não morrer de fome, chegamos ao ponto crítico de comer pedaços do couro com que se havia coberto o mastro maior, para impedir que a madeira roçasse nas cordas. Esse couro, sempre exposto ao sol, à água e ao vento, estava tão duro que tínhamos que deixá-lo de molho no mar durante quatro ou cinco dias para amolecer um pouco. Em seguida, nós o cozinhávamos e comíamos”.

Com uma dieta baseada em couro, serragem e ratos, os marinheiros adoeciam rapidamente. As gengivas inchavam com a doença do escorbuto, ao ponto de encobrir os dentes. Os marujos eram castigados por fortes dores e sangramentos. A enfermidade impossibilitava qualquer tipo de alimentação.

Só na travessia do Pacífico, 19 homens morreram, incluindo indígenas que haviam sido capturados e eram levados como escravos à Europa. Diante de uma travessia tão dura, Pigafetta anotou em seu diário que acreditava que ninguém viria a se aventurar novamente por aquela rota.

Após três meses no meio do deserto azul do Pacífico, Magalhães encontrou ilhas grandes, onde resolveu desembarcar em busca de repouso. Naquelas ilhas, atuais Filipinas, um dos escravos do português percebeu que os habitantes locais falavam sua língua materna. Ele havia nascido na Malásia antes de ser levado para a Europa. Por isso, alguns historiadores defendem que esse escravo seria o primeiro homem a dar a volta ao mundo e que agora retornava a sua região natal.

Com a chegada às Filipinas, o ânimo de Magalhães declinou. Talvez por ter percebido que a viagem fora mais desgastante do que o razoável para uma rota comercial ou porque se deu conta de que as ilhas Molucas, na verdade, não estavam do lado espanhol do mundo, ficou abatido.

“Magalhães estava preso na teia que ele próprio havia criado. Não tinha como voltar atrás. É provável que ele tenha tido a consciência de que a viagem era, no fundo, um fracasso. Ele começa a buscar uma agenda pessoal qualquer que o permita ter uma sobrevivência ali”, analisa o historiador Paulo Azevedo de Oliveira e Costa. “Ele no fundo sabe que está num beco sem saída, sem poder voltar a Portugal e à Espanha.”

O português, então, começou a entrar em conflitos com reis locais. Meteu-se em desavenças alheias. Com uns criou inimizades, a outros prometia apoio militar.

A um líder filipino ele chegou a dizer que um de seus homens, vestindo uma armadura europeia, era capaz de guerrear contra cem aldeões. Assim, ele se ofereceu para guerrear em nome de um rei local, numa batalha onde teria pouca chances de sobreviver. A bordo de um bote com cerca de 60 de seus homens, Magalhães desembarcou numa praia tomada por mais de mil guerreiros rivais.

Manco por um ferimento que há anos tinha na perna, avançou com dificuldade entre as ondas. Batalhou sob uma chuva de flechas e lanças que vinham da praia. Foi atingido e derrubado três vezes até ser cercado e morto a golpes de lança e sabre. Os soldados retornaram às suas embarcações feridos e sem seu capitão.

Após a morte de Magalhães, oficiais da frota disputaram o comando da viagem, que caiu nas mãos de um navegador espanhol, secundário até este ponto da história: Juan Sebastián Elcano. Ele era um dos que haviam se rebelado contra Magalhães ainda na América.

Coube a Elcano chegar às ilhas Molucas e negociar a compra das especiarias que enchiam as três naus. Os marinheiros tiveram, porém, que deixar para trás grande parte do produto comprado, já que duas das embarcações tinham infiltrações e não aguentariam a viagem de retorno.

Elcano percebeu também que aqueles marujos, já tão castigados, não conseguiriam refazer o caminho de volta pelo Pacífico, como era previsto. O espanhol, então, tomou a decisão que colocou a viagem para sempre na história. Escolheu abandonar o plano de retorno pelo Pacífico e voltou para a Europa pelo Oceano Índico, mesmo correndo o risco de ser pego por alguma frota portuguesa.

“Magalhães não queria dar a volta ao mundo. É Elcano que, depois de tudo o que a tripulação passou, decide voltar pelo Ocidente. Então, é o que chamam de volta ao mundo por acaso, por acidente”, explica Iris Kantor.

A nau Victória avançou pelo mar, por seis meses sem parar, desviando de portos e navios portugueses até chegar às ilhas de Cabo Verde, onde os marinheiros tiveram de ludibriar as autoridades locais para não serem presos por terem percorrido mares portugueses.

Três anos após deixarem a Espanha, os 18 homens retornavam ávidos por velas para poderem agradecer aos céus a graça de terem sobrevivido à viagem que deu a primeira volta ao mundo.

“Naquela época a Terra era redonda. E eles comprovaram isso”, brinca Amyr Klink diante de teorias cada vez mais disseminadas de que a Terra é plana. “Eu lamento desapontar os crentes dessa teoria, mas eu fui lá e vi. Adoraria sentar na beira da Terra, balançar as perninhas e dar tchau para o Universo. Mas não dá, a terra é redonda”.

Quinhentos anos depois do feito da primeira viagem ao redor do mundo, Espanha e Portugal travam uma discreta disputa pelo legado da expedição. Portugueses exaltam o gênio e a tradição marítima lusitana representada por Magalhães, o homem por trás do projeto e que iniciou a expedição (ainda que algumas gerações lusitanas o tenham visto como traidor).

Espanhóis iluminam a parte da saga em que Elcano conduz com maestria o retorno à Europa, passando fome e desviando com astúcia dos portugueses. Em sua homenagem, por exemplo, foi batizado o navio-escola da Marinha espanhola. O historiador Oliveira e Costa gosta da versão que confere os louros aos dois países ibéricos.

Na disputa internacional, Magalhães parece ter obtido maior notoriedade. Virou nome de galáxia, de cratera na Lua e em Marte, além de uma sonda da Nasa dedicada a explorar o Sistema Solar. Com seu nome foi ainda batizado o estreito na ponta sul da América, vencido apenas por sua teimosia.

13 de setembro de 2019

TRIBUTAÇÃO EM NÚMEROS!

(José Serra, senador – PSDB-SP – O Estado de S. Paulo, 12) A reforma tributária tem sido apregoada como o principal instrumento para reequilibrar o chamado pacto federativo. Consta que seu principal objetivo é promover a descentralização de receitas da União para Estados e municípios. Mas as evidências disponíveis mostram que do ponto de vista tributário o Brasil é o país federativo mais descentralizado do mundo! Essa posição, boa ou ruim, foi consequência direta do pacto social e político que esteve por trás da Assembleia Nacional Constituinte de 1988.

Os números são inquestionáveis. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Estados e municípios brasileiros se apropriam de 56,4% da arrecadação interna de impostos. Em média, essa participação é de 30,9% nos países federados situados em nossa faixa de renda e de 49,5% entre os mais ricos.

A esses dados poderíamos acrescentar: mais de 53% dos impostos federais no Brasil retornam aos Estados e municípios em benefícios previdenciários e assistenciais, abono salarial ou seguro-desemprego. Ou seja, outros 23% da arrecadação total se somam aos recursos destinados diretamente a essas esferas da Federação, o que produz uma descentralização de 79,5% das receitas totais. A maior do mundo!

Diante dos números disponíveis, torna-se difícil acreditar que estejamos sofrendo um agudo desequilíbrio no pacto federativo, ao contrário do que tem sido sempre alardeado. De fato, o pacto prevalecente representa uma conquista da sociedade brasileira que precisa ser preservada.

Isso exige múltiplos esforços. Na Federação brasileira ainda proliferam casos de dependência e irresponsabilidade fiscal. Nosso país continua desigual e tem sofrido alguma piora em indicadores relevantes, como o índice de concentração de renda.

Note-se que uma descentralização adicional de receitas sem condicionantes adequados pode criar ineficiências que corrompem a qualidade do gasto público e a própria autonomia dos entes federativos. Alguns indicadores a esse respeito são a baixa arrecadação municipal nas bases do IPTU e do ISS e a ociosidade de recursos destinados a projetos específicos, inclusive de emendas parlamentares.

Ou seja, alguns Estados e municípios parecem estar abdicando de exercer bem a competência de tributar e de executar investimentos, ambos fundamentais para sua plena autonomia. Ao contrário, estão dando prioridade a gastos correntes custeados majoritariamente pelas transferências que recebem da União, ampliando a dependência desses recursos.

Essa dependência crescente se inscreve no contexto de uma elevada irresponsabilidade fiscal, que veio à tona com a grave recessão, evidenciada por folhas de pagamento inchadas e má qualidade dos serviços públicos. Tal cenário criou um ambiente político-institucional propício ao socorro de Estados e municípios pela União, sobretudo em momentos de queda de arrecadação e das respectivas transferências. E vai se criando um círculo vicioso de dependência e indulgência em relação à irresponsabilidade fiscal.

O aumento das desigualdades também preocupa. Após longa recessão, o Brasil superou a África do Sul como o mais desigual dos países que abrigam as 20 maiores economias, de acordo com o índice de Gini. Nosso sistema tributário reforça esse quadro em razão de sua alta regressividade.

As pessoas mais pobres são as que gastam a maior parte da renda em impostos elevados que incidem em alimentos, energia elétrica, gás, medicamentos, telefonia e transporte.

Já as “reformas” propostas, em vez de enfrentarem a regressividade, fazem o oposto: aumentam a carga tributária sobre alimentos e serviços básicos, que afetam a todos. Há quem diga que esse aumento é mais relevante sobre a classe média, consumidora de serviços, mas esquecem que os serviços são a principal fonte de renda para as classes mais pobres e regiões menos desenvolvidas, que sofrerão desproporcionalmente com a queda da demanda e, logo, da renda.

Do ponto de vista federativo, as “reformas” alardeadas também representam retrocesso. Por concepção, impedem que os entes federativos promovam políticas de desenvolvimento ou de estímulo a seus mercados via tributos, minando sua autonomia para concorrer e se autodeterminar preconizada na Carta.

Essa visão míope, de defender o aumento da produtividade apenas do ponto de vista de cadeias produtivas, desconsidera a enorme ociosidade presente na economia, especialmente humana, e o amplo potencial de desenvolvimento regional.

Sob a ótica da otimização econômica, seria muito mais eficiente ocupar o capital humano e desenvolver o potencial das regiões, multiplicando as externalidades positivas e difusas, do que concentrar-se em otimizar localmente cadeias produtivas já estabelecidas.

Reconhecendo esse desequilíbrio regional e social, que seria mantido e até estimulado, as “reformas” encarregam o Congresso de promover as ações políticas “mitigadoras”, em especial a ampliação das já robustas transferências e equalizações regionais.

Ora, isso fomentaria as ineficiências e a irresponsabilidade fiscal nos federativos, além de ampliar a dependência destes com a União, perpetuando o círculo vicioso. Estaríamos reforçando os traços do colonialismo centenário, em que a União manteria e ampliaria o status quo, representado por regiões desenvolvidas e subdesenvolvidas, todos inseridos numa espiral de dependência e irresponsabilidade fiscal que seguiria deteriorando toda a Federação.

E as regiões subdesenvolvidas se manteriam dependentes de equalizações definidas na arena política do Congresso, mas sem poderem – ou mesmo quererem – concorrer e produzir plenamente. Assim, privaríamos essas localidades da autonomia e dos incentivos necessários para se desenvolverem, no esplendor de produzirem o próprio sustento e se libertarem.

Do ponto de vista federativo, as ‘reformas’ alardeadas representam um retrocesso.

12 de setembro de 2019

REFORMA POLÍTICA: REFORMAR O QUÊ, QUANDO, PARA QUÊ?

(Bolívar Lamounier – O Estado de S. Paulo, 11) Ao longo de sua história independente, o Brasil efetivou numerosas alterações em seu sistema políticoinstitucional, algumas muito positivas, outras nem tanto. Algumas em resposta a desafios bem definidos, outras na esteira de um “clima” reformista vagamente delineado.

Entre as reformas positivas, eu começaria por mencionar a própria Constituição de 1824, muitas vezes debatida em tom de chacota, mas que teve o mérito, nem mais nem menos, de encaminhar nossa evolução política na direção do moderno Estado constitucional, devendo-se também observar que os órgãos legislativos e judiciários que tal evolução pressupõe foram imediatamente instalados. Outra alteração notável foi a de 1840, que muitos historiadores, incorrendo mais uma vez no pecado do anacronismo, denominam “o golpe da maioridade”. Ao autorizar a ascensão ao trono de um adolescente de 15 anos, o referido “golpe” teve o condão de encerrar quase instantaneamente a onda de rebeliões e pequenas guerras civis regionais que se configurara durante o período regencial (18311840), cujo prosseguimento poderia pôr em risco nossa unidade territorial.

Entre as mudanças negativas, a pior foi, sem dúvida, o autogolpe desfechado por Getúlio Vargas no dia 10 de novembro de 1937, o famigerado Estado Novo, a única vez em que o regime representativo e os mecanismos institucionais que o legitimam foram inteiramente erradicados em nossa história.

No passado recente, a tentativa mais ambiciosa foi a do Congresso Constituinte de 19871988, precedida pelos estudos levados a cabo durante quase um ano pela Comissão Afonso Arinos (Comissão Provisória de Estudos Constitucionais), nomeada pelo presidente José Sarney. Tratava-se, na ocasião, de reorganizar constitucionalmente o País após 21 anos de governos militares, convocando toda a sociedade a participar do processo a fim de lhe conferir o máximo possível de legitimidade. Natural, portanto, que todo o leque de questões pertinentes fosse aberto, dando ensejo a um debate público que equivalia praticamente a um reexame de toda a experiência histórica iniciada em 1824. Do ponto de vista institucional, no entanto, uma preocupação – a da estabilidade do novo regime democrático – destacava-se claramente sobre as demais, e nem poderia ser diferente, uma vez que Brasil, Argentina e Chile mal saíam de interregnos autoritários. E que outras experiências desse tipo se insinuavam no cenário latino-americano – poucos anos depois, o Peru sucumbiria ao fujimorismo e a Venezuela, ao chavismo.

Esta breve evocação das preocupações daquela época se afigura imperativa neste momento, dado o sentimento generalizado de que cedo ou tarde teremos de encarar novamente o desafio da reforma política. Dados, também, os cenários doméstico e internacional que ora se descortinam, com referências quase diárias a um suposto “fim da democracia representativa” e com tendências de fato preocupantes em diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a disputa entre Donald Trump e Hilary Clinton configurou-se como um enfrentamento raivoso, bem o oposto da garantia que os estudiosos políticos daquele país sempre nos deram: a de que a eleição presidencial sempre favoreceria a moderação e a convergência, forçando os radicais e furibundos a se contentarem com o apoio de faixas minoritárias da sociedade.

No quadro atual, é indispensável considerar que uma reforma política que se preze deve levar em conta pelo menos três critérios, ou perspectivas, examinando meticulosamente as interligações e eventuais contradições que entre eles se estabelecem. Refiro-me, em primeiro lugar, ao já referido critério da estabilidade, vale dizer, ao imperativo de reduzir ao mínimo possível as chances de ruptura da ordem constitucional e a consequente imposição de fórmulas ditatoriais.

Segundo, o critério da governabilidade, vale dizer, o da eficácia do sistema político em seu conjunto na produção das políticas públicas e, principalmente, na efetivação de reformas estruturais, que de tempos em tempos se faz necessária.

Terceiro, o critério da representatividade, da identificação ou não do eleitorado com seus representantes, questão que remete invariavelmente ao debate sobre o voto distrital e à desproporcionalidade entre as populações de certos Estados e as respectivas bancadas na Câmara dos Deputados (agravada pela representação igual de três parlamentares por Estado no Senado Federal).

Retrocessos ditatoriais geralmente decorrem de uma combinação de fatores, como crises econômicas, acirramento do embate entre partidos ou grupos ideológicos, personalidades destemperadas ocupando posições elevadas na estrutura de poder e, por último, mas não menos importante, sistemas de governo propícios à instabilidade, como o é o sistema presidencial.

Nesse aspecto, a situação brasileira atual é profundamente diferente daquela que vivenciamos nos anos 80 do século passado. Hoje, o que nos preocupa não é apenas a memória de retrocessos passados, mas a alta probabilidade de que possamos sucumbir a situações ainda mais graves num futuro não muito distante. Somos, como é de conhecimento geral, um país enredado na “armadilha do baixo crescimento”, incapaz de elevar sua renda anual por habitante a um nível compatível com a assustadora acumulação de problemas na sociedade. Direta ou indiretamente, tudo isso tem que ver com a governabilidade, vale dizer, com a constatação de que o sistema político tem grande parte de seu potencial travado por acoplamentos disfuncionais de mecanismos institucionais específicos.

Nesse aspecto, como ninguém ignora, o Brasil é um caso de alto risco, na medida em que associa o regime presidencial, com sua característica rigidez, a um sistema de partidos que é sabidamente o mais fragmentado do mundo.

O Brasil é um caso de alto risco, por associar o regime presidencial a partidos fragmentados.

11 de setembro de 2019

ESTAGNAÇÃO INDUSTRIAL JÁ DURA UMA DÉCADA!

(Antonio Corrêa de Lacerda – O Estado de S. Paulo, 10) A produção industrial brasileira de julho caiu 0,3% em relação a junho, frustrando expectativas de retomada a partir dos dados do Produto Interno Bruto (PIB) divulgados na semana anterior, que apontavam para um resultado global da economia um pouco melhor do que o esperado.

Mas o que chama a atenção no nível atual da produção industrial é que ele é equivalente ao de dez anos antes (janeiro de 2009), período marcado pelos efeitos da crise do subprime nos EUA. Ou seja, a indústria vive uma longa estagnação. O País está num processo precoce de desindustrialização, com perda substancial de participação do setor no PIB, hoje restrita a cerca de 10%, ante a média internacional de 16% e bem abaixo da verificada em países como México (17,5%) e Coreia do Sul (27,6%).

Além da perda da participação relativa, observa-se, ainda, uma queda da qualidade da produção, medida pela participação da indústria de média e alta tecnologia no PIB, que recuou de 11,4%, em 2009, para 8,1%, em 2017, último dado disponível.

Vários foram e são os fatores que contribuíram para essa situação. Há os de ordem macroeconômica, há aqueles relacionados à ausência de uma política de competitividade favorável e há, também, outros de ordem microeconômica.

Os juros básicos estão no menor patamar nominal histórico, o que em tese contribuiria para um aumento do interesse na produção e no investimento. No entanto, outros aspectos jogam contra isso. O primeiro é que, em razão da distorção do mercado financeiro brasileiro, a distância entre o juro básico e aquele cobrado do tomador final ainda é abissal e incompatível com a rentabilidade esperada de qualquer atividade produtiva. O segundo aspecto é que investimento produtivo é motivado pela expectativa favorável de crescimento futuro da demanda, bem como da rentabilidade esperada.

Nada está a indicar uma retomada da demanda. Primeiro porque o crédito, como já mencionado, é ainda mais proibitivo ao consumidor. Além disso, o desemprego é dos mais elevados, especialmente considerando um conceito mais amplo que inclui os desalentados e com ocupações precárias, um contingente de quase 30 milhões de pessoas. A renda das pessoas ocupadas também não tem acompanhado o crescimento dos custos de itens representativos da cesta de consumo da classe média, como taxas de planos de saúde, de condomínio e mensalidades escolares, por exemplo. São fatores que comprimem o orçamento familiar e restringem a capacidade de consumir.

Há, ainda, os fatores de competitividade desfavoráveis, como burocracia, custo de logística e infraestrutura, impactos da tributação, além de outros piores do que a maioria dos nossos competidores. A desvalorização do real relativamente às demais moedas deveria compensar parte dessas desvantagens, mas isso não é imediato nem automático.

O desempenho exportador é algo que requer uma estratégia mais ativa, de forma a vir a representar uma parcela maior do que a atual. Diante da crise global, as “guerras” comercial e cambial estão acirrando a disputa pelos mercados e tornando mais árdua.

O nível atual da produção é equivalente ao de dez anos antes, período dos efeitos da crise do subprime a tarefa de quem deseje obter ganhos de participação.

A agenda da política industrial num sentido mais amplo, considerando as políticas de competitividade comercial e de ciência, tecnologia e inovação, precisa fazer parte das discussões das alternativas para o fortalecimento da indústria. Nesse sentido, ao contrário do esperado por alguns, a junção do antigo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) ao atual Ministério da Economia parece ter ocultado a temática.

O desafio da retomada da economia passa, necessariamente, pela recuperação da indústria, tendo em vista sua relevância para a geração de valor agregado e suas interconexões com os setores agropecuário e de serviços.

10 de setembro de 2019

CIVILIDADE!

(Marcos Lisboa – Folha de S.Paulo, 08) Keith Thomas é um notável historiador de Oxford que analisa o passado com a obsessão e o cuidado de um antropólogo. Seus livros surpreendem pela vastidão de fatos e observações sobre o cotidiano para contar as transformações nos hábitos e na mentalidade da Inglaterra nos últimos séculos.

Thomas já descreveu o declínio da magia no cotidiano, assim como a transformação da nossa compreensão da natureza e dos animais durante a longa transição que assistiu ao surgimento do Estado de Direito e da economia moderna.

Seus temas, porém, não são a grande política nem os dados da economia, mas sim as práticas e crenças que compõem o dia a dia da sociedade e suas contradições.

Em seu surpreendente “O Homem e o Mundo Natural”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, Thomas documenta como a antiga visão de que os animais foram criados para servir a humanidade foi progressivamente se transformando em empatia pela natureza, afinal todos seriam filhos da criação divina.

Seu livro me fez lembrar de uma história correlata. A religiosidade cristã, em que Deus é amor e toda a humanidade é parte do Ser, levou ao impressionante movimento para abolir a escravidão na Inglaterra no fim do século 18, liderado por William Wilberforce.

Ele contou com o apoio de seu amigo William Pitt, primeiro-ministro que morreu em 1806, um ano antes da proibição do comércio de escravos. Wilberforce teve mais sorte e assistiu, inclusive, à aprovação da lei que aboliu a escravidão na maior parte do Império Britânico, em 1833.

O mais recente livro de Thomas, ainda ativo aos 86 anos, entrega mais uma joia que descobri graças ao New York Review of Books, a minha Bíblia pessoal.

O tema, desta vez, é a construção da noção moderna de civilidade, termo derivado do latim “civitas”, a comunidade organizada e seus códigos de convivência que, inicialmente, diferenciavam a sociedade romana dos bárbaros, palavra de origem grega que mimetiza a fala incompreensível dos estrangeiros.

Na Inglaterra de séculos atrás, o processo civilizatório justificou a conquista de povos com costumes e hábitos considerados inaceitáveis.

Thomas documenta, com a sua erudição inacreditável, a construção da versão moderna de civilidade em que, como apontara Norbert Elias, o comedimento nas paixões políticas e religiosas permite a convivência e o diálogo entre os diferentes, evitando a tragédia das guerras.

A civilidade requer respeito às instituições, permite a criatividade das artes, incentiva a pesquisa nas ciências e tolera a divergência.

Caso morasse no Brasil, Thomas não precisaria recorrer aos registros de tempos passados.

09 de setembro de 2019

LIVROS INFANTIS ME AJUDARAM A DESCOBRIR O COLONIALISMO, DIZ RUY GUERRA!

(Ruy Guerra) O que é a minha maior influência? Certamente o livro que mais me influenciou não é o que eu mais gosto, nem o filme. É difícil saber o que é isso. Se é um amigo, uma paixão.

Mas pensei: há um personagem. De um escritor italiano do final do século 19 chamado Emilio Salgari (1863-1911). Toda a obra dele é infantojuvenil. Seus livros chegavam em remessas mensais a Moçambique, onde eu nasci, em navios que levavam 20 dias para chegar e 20 dias para voltar.

Esse italiano é um cara interessante, porque morreu na miséria com 40 e poucos anos e publicou mais de 90 livros. Era roubado pelos editores. Mas publicou sobre a África, o Oriente Médio, a América, o Caribe. Abraçou o universo da fantasia e da aventura em toda área. É considerado hoje pelos estudiosos um dos precursores da ficção científica: era editado em inglês, francês, português. Bem, mas não me interessa o escritor, e sim o personagem.

Havia um herói chamado Sandokan, que vivia no extremo Oriente asiático, levava uma cimitarra de rubi e vinha de um pequeno feudo. Quando chegava um livro do Sandokan, a cada um ou dois meses, pum, era um alvoroço pra garotada.

Há poucos anos um desses foi relançado aqui no Brasil e eu o reli. É muito divertido ler já com uma bagagem. A linguagem é de uma exaltação, de uma grandiloquência: beber um café é uma aventura. “Avançam no escuro da noite para o meio das trevas”, o vento sempre soprando, as barbas negras como asa de corvo —tudo no pico máximo da tensão.

Lembro que o primeiro livro da série portuguesa foi “Sandokan, o Tigre da Malásia”. Lá no sétimo ou oitavo, veio “A Morte de Sandokan”.

Era tão impressionante a força do livro que me lembro, com 9 ou 10 anos —eu me lembro mesmo— da imagem de mim mesmo sentado nas escadas da minha casa, do térreo para o primeiro andar, aos prantos porque Sandokan tinha morrido. Eu não conheci o meu avô, mas se conhecesse, choraria menos por ele que pela morte de Sandokan.

E na remessa seguinte, veio “A Volta de Sandokan”. Eu pulava de alegria, cantava. Sofri sua morte e em seguida renasci.

Tenho certeza de que não percebi isso com dez anos de idade, mas o que é curioso nessas histórias é a posição anticolonialista. Os heróis de Salgari nunca eram europeus. E eu vivia numa colônia de Portugal.

Os grandes escritores europeus sempre escreveram seus heróis de seu lado. Eles são sempre defrontados com o mundo selvagem da África, dos berberes, dos índios americanos. Já o herói do Salgari luta contra a opressão —é ele e o povo.

Aqueles que escrevem com a perspectiva eurocêntrica, mesmo que o olhar seja generoso, complacente, seu herói é sempre o aventureiro europeu. Nas histórias do Sandokan, os outros são os opressores que vêm para saquear —ou, como era uma fantasia infantojuvenil, para roubar um tesouro.

Essa inversão do olhar foi extremamente importante no ponto de vista da formação de uma identidade. Vivendo num país que é o invadido, e não o invasor, você se identifica mais com essas histórias.

Depois soube que estava muito bem acompanhado. Havia outros que também foram apaixonados na infância pelas histórias de Salgari: Jorge Luis Borges, Umberto Eco, Federico Fellini, Gabriel García Márquez. Não é má companhia.

Noto um elo forte entre Sandokan e o universo de García Márquez: o exagero, a pompa, o deslumbramento, o ímpeto por uma coisa maior do que a realidade. Sinto nele a fantasia daquele universo infantojuvenil —uma subjetividade tal que, sabendo que García Márquez também leu aqueles livros, compreendo sua obra também através deles.

Vejo de uma forma triangular: Salgari, García Márquez e eu, que sou leitor dos dois. Nunca conversei com Gabo sobre isso, apesar de termos conversado sobre tanta coisa. Mas se ele escrevesse algo infantojuvenil, faria algo nas águas do Salgari.

Crescendo com esse encantamento, eu ia me afastando da Europa. Era uma bitola que me levava para ser contra o colonialismo e para descobrir, através da ficção, o próprio colonialismo em que eu estava inserido. Fui marcado de forma inconsciente. É uma paixão tão grande chorar por uma personagem que é impossível que não te deixe marcas.

E isso me deu uma precocidade: comecei a ter problemas políticos muito cedo —aos 15 anos, eu já estava sendo preso por atitudes consideradas subversivas.

Na minha adolescência, ainda estavam muito embrionários os movimentos de revolução em Moçambique e na África do Sul. E eu já escrevia textos acusando a metrópole portuguesa e sendo detido por isso. Ali eu estava a dez anos da leitura do Salgari —claro que com um salto qualitativo— e com a respiração de um Sandokan. Afrontando os invasores coloniais.

Se você me dissesse isso na época eu ficaria ofendido —“pô, me comparando a um personagem infantil”—, mas quando você entra na vida adulta vê que o inimigo é o mesmo de Sandokan. Continuei assim, e continuo, com ele na minha base.

06 de setembro de 2019

CRESCE O RISCO DE O REINO UNIDO VIRAR UM PAÍS DECADENTE!

(Guga Chacra – O Globo, 05) Quando uma crise se prolonga por décadas, como a da Argentina, passamos a chamar de decadência. O Reino Unido ainda não está neste patamar. Poderíamos dizer que segue em crise prolongada e sem perspectiva de resolução. Ao longo destes intermináveis quase quatro anos de caos do Brexit, no entanto, esta nação já diminuiu de importância, dando prosseguimento ao encolhimento iniciado com o fim do Império Britânico. O risco de virar decadente cresceu.

Longe de dizer que Londres se tornará uma despedaçada Alexandria, uma empobrecida Atenas, uma arrasada Aleppo ou uma marginalizada Caracas. A capital britânica segue como uma das duas metrópoles mais cosmopolitas do mundo ao lado de Nova York. É o sonho de russos, de sauditas, de brasileiros e ainda de muitos europeus.

De forma abrupta e inesperada, porém, a nuvem do Brexit estacionou sobre a cinzenta metrópole às margens do Tâmisa. Desde 2016, o país parou. Dois primeiros ministros caíram. Um terceiro corre o mesmo risco. Parece até a decadente Itália. A nação se divide entre aqueles que querem romper de vez com a União Europeia e aqueles que ainda lutam para se manter como parte do bloco europeu.

Pouco se fala de planos para a educação, saúde, segurança e mesmo a economia do Reino Unido. Todos os dias os jornais, tabloides e TVs se concentram nas notícias do Brexit de uma maneira ainda mais voraz que os americanos diante da sempre presente figura de Donald Trump. Mesmo hoje, nenhum parlamentar, nenhum ministro, nenhum analista e tampouco a rainha sabe qual será o destino do Reino Unido.

Não sabemos exatamente quando começou a decadência da Argentina, que mesmo decadente ainda tem números melhores do que os do Brasil em educação e segurança. Mas a persistente sequência de crises deixou os vizinhos dos brasileiros bem distantes do mundo desenvolvido e Buenos Aires, de uma certa forma, até encanta por sua decadência nostálgica se visitarmos como turistas e não pensarmos nos desempregados e endividados argentinos. Tampouco está claro quando o Egito começou a desmoronar. Foi com Nasser? Ou antes? A Venezuela, ao menos, sabemos que entrou em decadência com o chavismo e esta se agravou com Maduro.

No Reino Unido, se esta crise se prolongar e o final da novela do Brexit não for feliz, saberemos no futuro que a decadência começou por um dos maiores gols contra da história política internacional. A decisão de David Cameron de convocar um referendo sobre a permanência ou não dos britânicos na União Europeia, sem planejamento algum para a possibilidade de a maioria dos eleitores decidir abandonar a União Europeia, foi movida por uma campanha repleta das chamadas “fake news”, ou informações mentirosas.

A série “Years and Years”, da HBO, exibe um futuro próximo no pós-Brexit, no qual todas as tendências atuais de nacionalismo, extremismos de direita e de esquerda, xenofobia e aquecimento global se agravam. O Reino Unido se transformou em uma nação decadente e populista nesta ficção. Este futuro fictício pode ser o real. Em décadas, o Brexit possivelmente será lembrado como o símbolo do momento que vivemos.

Nenhum parlamentar, nenhum ministro, nenhum analista e tampouco a rainha sabe qual será o destino do Reino Unido.

05 de setembro de 2019

A DEMOGRAFIA E O CAPITALISMO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 02) Se a diminuição da população mundial é positiva para o clima, ela pode ser profundamente desafiadora para o sistema capitalista.

Em artigo publicado na revista Foreign Affairs (The Population Bust: Demographic Decline and the End of Capitalism as We Know It), Zachary Karabell analisa as possíveis consequências sociais e econômicas das atuais mudanças demográficas. “A maior parte do mundo está sofrendo fortes e bruscas contrações nas taxas de natalidade ou em sua população absoluta”, escreve.

O fenômeno das mudanças demográficas drásticas ocorre também aqui. É global. Por exemplo, no ano passado, o IBGE anunciou que, diante da diminuição da taxa de fertilidade e do aumento da expectativa de vida, o bônus demográfico do País terminava não mais em 2023, como estava previsto, mas em 2018. O bônus demográfico é a situação em que o número de habitantes em idade ativa, entre 15 e 64 anos, supera o total de pessoas consideradas dependentes – os idosos e as crianças.

Apesar dos enormes efeitos que as mudanças demográficas podem ter, por exemplo, sobre o clima, a geopolítica e o capitalismo, o assunto é muito pouco discutido. “Se o mundo no futuro tiver menos pessoas, será possível ter algum crescimento econômico real? Não apenas estamos despreparados para responder a essa pergunta, não estamos nem começando a nos perguntar”, afirma Zachary Karabell.

O assunto é complexo a começar pela própria dificuldade de traçar projeções seguras. A ONU prevê, por exemplo, que a população global chegará a quase dez bilhões em 2050. Mas estudiosos em demografia acham que os números podem estar superestimados. Quase sempre as expectativas da população feitas no passado não se concretizaram. Para o pesquisador Paul Morland, do Birkbeck College, é irracional atribuir um caráter de certeza às tendências futuras sobre a população.

Mesmo que não se saiba com segurança o que ocorrerá no futuro, os dados atuais já revelam, no entanto, que o paradigma de expansão da população utilizado nos dois últimos séculos não serve mais. “Chama a atenção que o declínio da população esteja se tornando um fenômeno global quase tão rapidamente quanto o boom populacional do século 20. As taxas de fecundidade na China e na Índia, que juntas respondem por quase 40% das pessoas do mundo, estão agora no nível de reposição ou abaixo dele. O mesmo acontece com as taxas de fecundidade em outros países populosos, como Brasil, Malásia, México e Tailândia.”

Zachary Karabell lembra que a deflação demográfica pode ter um efeito positivo sobre o aquecimento global. “Dado que as emissões de carbono são resultado direto de mais pessoas necessitando e exigindo mais material – de comida e água a carros e entretenimento –, se houver menos pessoas, haverá menor demanda.”

Mas se a diminuição da população mundial é positiva para o clima, ela pode ser profundamente desafiadora para o sistema capitalista – e aqui está o cerne da reflexão do artigo de Zachary Karabell. “O capitalismo é, essencialmente, um sistema de maximização – mais produção, mais bens e mais serviços. (…) Se a população global parar de se expandir e começar a diminuir, o capitalismo – um sistema que está implicitamente baseado em um número cada vez maior de pessoas – provavelmente não será capaz de prosperar em sua forma atual. O envelhecimento da população elevará o consumo de certos bens, como os cuidados com a saúde, mas, em geral, o envelhecimento e a diminuição da população acarretarão uma diminuição do consumo”, afirma Zachary Karabell.

Se essa mudança de paradigma é por si só desafiadora, ela traz ainda maiores desafios para países como o Brasil, que não conseguiram, nem mesmo no paradigma demográfico anterior – de população crescente e jovem –, alcançar um patamar mínimo de riqueza e de produtividade. Agora, com uma população mais velha e menos jovens, tudo indica que será ainda mais difícil. Como alerta Zachary Karabell, “se não estamos bem preparados para um mundo com mais pessoas, estamos totalmente despreparados para um mundo com menos gente”. É urgente abrir os olhos para a realidade.

 

04 de setembro de 2019

O CAPITALISMO NÃO ANDA BEM!

(The Economist – O Estado de S. Paulo) O capitalismo não está funcionando como deveria. Empregos existem, mas o crescimento se arrasta, a desigualdade é alta e o meio ambiente está sofrendo. Seria de se esperar que os governos fizessem reformas para enfrentar esses problemas, mas a política anda travada ou é instável. Quem, então, vai se encarregar do resgate?

Um número grande de pessoas acredita que a resposta é confiar nas corporações. Mesmo os executivos americanos, conhecidos por ignorar limites, concordam. Na semana passada, mais de 180 deles, incluindo os chefes do Walmart e do JPMorgan Chase, derrubaram três décadas de ortodoxia para anunciar que o propósito básico de suas empresas não é mais beneficiar apenas os donos, mas clientes, funcionários, fornecedores e comunidade.

A motivação deles é tática e parte de uma mudança de atitude contra os negócios. Funcionários jovens querem trabalhar para firmas que adotem padrões morais e políticos em relação a questões atuais.

Por melhores que sejam as intenções, porém, essa nova forma de capitalismo coletivo terminará provocando mais males que benefícios. Há riscos de se formar uma classe de executivos inexperientes e sem legitimidade. Há também uma ameaça à prosperidade de longo prazo, condição básica ao sucesso do capitalismo.

Desde que os negócios ganharam confiança limitada na Grã-Bretanha e na França, no século 19, discute-se o que a sociedade pode esperar em retorno. No anos 1950 e 1960, Estados Unidos e Europa experimentaram o capitalismo gerencial, no qual empresas gigantes trabalhavam com governo e sindicatos e ofereciam aos trabalhadores segurança no emprego e benefícios. Mas, após a estagnação dos anos 1970, o enriquecimento dos acionistas passou a dominar, no processo de maximizar os lucros. Sindicatos entraram em declínio e o sucesso dos acionistas conquistou os Estados Unidos e em seguida a Europa e o Japão.

É esse modelo que está sob ataque. Como parte da investida, há um perceptível declínio na ética dos negócios. Empresas listadas em bolsas são acusadas de uma série de pecados, como obsessão por ganhos de curto prazo, investimentos irresponsáveis, exploração de funcionários, achatamento de salários e recusa em pagar por danos ambientais que criaram.

Algumas das advertências são verdadeiras. Consumidores frequentemente saem perdendo e a mobilidade social afundou. De qualquer modo, a reação popular e intelectual ao lucro a qualquer preço já está alterando a tomada de decisões. Líderes empresariais passaram a apoiar causas sociais populares entre clientes e funcionários. Empresas investem levando em conta não apenas eficiência. A Microsoft está financiando um projeto habitacional de US$ 500 milhões em Seattle.

Parece ótimo, mas o capitalismo coletivo enfrenta dois grandes problemas: ausência de responsabilidade ética e de dinamismo. Em relação à ética, não está claro como os executivos ficarão sabendo o que a “sociedade” espera de suas empresas. As probabilidades são de que políticos, lobistas e os próprios executivos venham a decidir, não dando voz às pessoas comuns.

O segundo problema é o dinamismo. As empresas têm de abandonar pelo menos alguns participantes – um número necessário para enxugar uma empresa obsoleta e realocar capital.

O meio de fazer o capitalismo funcionar melhor não é limitar a responsabilidade ética e o dinamismo, mas aperfeiçoar ambos. Isso requer que os propósitos das empresas sejam estabelecidos pelos donos e não por executivos ou políticos. A maioria deles vai optar por maximizar valores de longo prazo.

Um bom modo de fazer empresas com mais responsabilidade ética é ampliar o número de proprietários. A proporção de famílias americanas ligadas ao mercado de ações é de apenas 50%. O sistema tributário deveria encorajar mais o compartilhamento da propriedade. Os beneficiários finais de planos de pensão e fundos de investimento deveriam poder votar em eleições de diretoria. Esse poder não deveria ser terceirizado para poucos barões da indústria de gestão de ativos.

Responsabilidade ética só funciona se houver competição. Isso faz baixar preços, impulsiona a produtividade e garante que empresas não consigam ter por muito tempo lucros fora do normal. Mais ainda: estimula as empresas a se anteciparem às mudanças – por medo de que um concorrente faça isso primeiro.

Infelizmente, desde os anos 90 a consolidação deixou dois terços das indústrias dos Estados Unidos mais concentradas. Ao mesmo tempo, a economia digital parece tender ao monopólio. Se os lucros das empresas estivessem em níveis historicamente normais, e os trabalhadores do setor privado usufruíssem os benefícios, os salários seriam 6% mais altos. Na lista dos 180 empresários americanos que se reuniram na semana passada, muitos estão em indústrias que são oligopólios – incluindo cartões de crédito, TV a cabo, farmacêuticas e empresas aéreas –, que cobram demais dos consumidores. Sem surpresa, ninguém estava ansioso para reduzir as barreiras para ingresso no clube.

Obviamente, uma economia competitiva e saudável requer um governo efetivo – para aplicar leis antitruste, reprimir lobismo e nepotismo excessivos, lidar com as mudanças climáticas. Essa política ideal não existe, mas dar poder a executivos de grandes empresas para atuar como substitutos não é a resposta. O mundo precisa de inovação, de um maior número de proprietários e de empresas que se adaptem às necessidades da sociedade. É esse realmente o tipo mais esclarecido de capitalismo.

03 de setembro de 2019

TIM BELL, O FUNDADOR DAS FAKE NEWS!

(O Estado de S. Paulo – The Economist, 02) Tim Bell abominava regras. Em seu escritório de Mayfair, bairro chique de Londres, o homem que fez a indústria de relações públicas britânica famosa (e desacreditada) zombava da proibição de fumar. Mesmo no inverno, a fumaça de seus dois maços diários de Dunhills escapava pelas janelas abertas. Na rua embaixo, seu motorista o esperava para levá-lo para almoçar num restaurante a apenas 200 metros. Justificando sua opção por uma vistosa Ferrari vermelha, ele dizia: “Gosto de ser admirado”. No escritório a TV estava sempre ligada, ou na fala da premiê ou num jogo de críquete. Numa mesa, Bell mantinha fotos da família e da cliente, amiga e ídolo, cuja descomplicada devoção à liberdade combinava com a dele.

Na vida e na morte, o papel de Bell nas três eleições de Thatcher tem sido exagerado. Seu trabalho – primeiro na agência de publicidade Saatchi & Saatchi e depois em sua própria empresa – era conquistar clientes, não criar slogans. Thatcher acreditava em sua magia e o trouxe para a eleição de 1987, mesmo depois de a Saatchi o proibir de trabalhar na campanha após um desentendimento interno. Bell era o homem de Thatcher “no ônibus de Clapham”, aquele que conseguia captar a opinião das pessoas comuns.

Ele se tornou um cortesão, distribuindo elogios em tom solene em reuniões familiares e no almoço do dia de Natal. “O 26 de dezembro (‘Boxing Day’, feriado comemorado em países de língua inglesa) é só para o gabinete e para pessoas que dão dinheiro ao partido”, dizia ele. Quando Thatcher gravava peças de propaganda na TV, Bell sentava-se por perto e cuidava para que ela relaxasse e falasse como se se dirigisse a uma só pessoa, não a uma multidão.

Thatcher, apesar de seu puritanismo, perdoava a vida irregular de Bell. Ela riu muito quando ele, despertando de uma noite regada a champanhe, atendeu seu telefonema percebeu subitamente que havia sido assaltado. Foi lorde Bell quem anunciou a morte da ex-primeira-ministra, em 2013.

Seu legado mais significativo é fazer de Londres um polo do que ele chamava de “trabalho geopolítico”, mas outros chamavam de “centro de lavagem de reputações”. No auge da fama, Bell passou de publicidade para relações públicas. “Sua proximidade com a premiê não atrapalhava os negócios”, diz Bernard Ingham, ex-secretário de imprensa de Thatcher. Bell conseguiu um de seus primeiros clientes, F. W. de Klerk, então presidente da África do Sul, com um telefonema em nome de Thatcher. Mais tarde, ele diria que o telefonema fora “pelo menos 10% verdadeiro”.

Colegas diziam que ele era amigo só nos bons momentos e tinha uma inclinação para a esperteza. Bell, alegando que “moral é função de padre, não de homem”, ajudou o ditador chileno Augusto Pinochet a escapar da extradição para a Espanha por acusações de tortura, e melhorou as reputações de Alexander Lukashenko, homem forte da Bielorússia, e Asma al-Assad, mulher do presidente da sírio.

Num mesmo ano, ele participou de campanhas contra e a favor do tabagismo. Sua agência, Bell Pottinger, que ele fundou em 1998, criou blogs falsos e contas falsas na mídia social. Ele não levava muito a sério os fatos, dizendo que “as pessoas não levam”. E explicava que, “uma vez que o diabo está no detalhe, não precisamos da p… do detalhe”. Até onde suas campanhas funcionaram ainda está em aberto. Ele assessorou o ministro das Finanças de Pinochet e o francês Jacques Chirac em eleições que ambos perderam, e criou a estratégia de comunicação para a “transição para a democracia” do Iraque, em 2004.

Bell tinha um talento especial para jogar nos outros a culpa de seus erros. Ele insistiu para que David Mellor, um parlamentar adúltero inglês, fizesse uma desastrosa foto com a família. A ideia impopular de servir sanduíches de presuntada nas comemorações do 50º aniversário do Dia D foi sugerida, segundo ele, “pelos fuzileiros navais ingleses, não por mim”.

Felizmente para Bell, os resultados contavam menos que seu charme, o que lhe valeu contratos com o metrô de Londres, com o Sindicato Nacional de Professores, cuja política ele atacava, e com a BBC, meses depois de propor que a emissora fosse vendida.

No fim, a exemplo de seu ídolo, ele foi longe demais. Resistiu a sugestões para melhorar a imagem da Bell Pottinger. A agência entrou em colapso em 2017 após a revelação de uma campanha secreta feita por ela para manipular a opinião pública da África do Sul contra o “monopólio branco do capital”. Nessa altura, Bell havia renunciado à direção da agência, como sempre, jogando em outros executivos a culpa pelos problemas da empresa.

Ele não se aposentou e fundou outra agência. Também não abriu mão dos prazeres. Uma amiga que o visitou dias antes de ele morrer o encontrou grudado na TV, vendo um jogo de seu adorado críquete. Aí ele pediu a ela que lhe acendesse um cigarro.

O estrategista Tim Bell tinha um talento especial para jogar nos outros a culpa de seus erros.