03 de outubro de 2019

EVO MORALES, PRESIDENTE OU IMPERADOR?!

(Sylvia Colombo – Folha de S.Paulo, 29) Por que a comunidade internacional faz vista grossa para o avanço que Evo Morales realiza contra a democracia na Bolívia? No dia 20, Evo disputará um quarto mandato desrespeitando a Constituição que ele mesmo aprovou em 2009 e o resultado de um referendo que ele mesmo convocou para alterá-la.

Evo foi eleito pela primeira vez em 2005, com 53,7% dos votos e grande apoio internacional. Por fim, um país tão pobre elegia o primeiro presidente indígena. Em 2009, venceu de maneira ainda mais arrasadora (64,2%).

De sua posse até hoje, a economia boliviana melhorou, com média anual de crescimento do PIB de 4% e uma diminuição de mais de 30 pontos percentuais na pobreza. Um grande feito. Porém, desde então, as instituições vêm sendo agredidas. A Justiça é subserviente ao Executivo, obras são contratadas sem transparência e a imprensa independente já quase não existe.

Em 2014, Evo deu sua primeira torcida no texto constitucional. A Carta boliviana diz: “O período do mandato do presidente é de cinco anos, podendo ser reeleito apenas uma vez de modo consecutivo”.

Evo alegou que, como seu primeiro mandato tinha começado antes da entrada em vigor da nova lei, não contava. Ele ganhou novamente, com 63,3% dos votos.

A avidez por seguir no poder passou dos limites a partir de 2016. Determinado a mudar o agora incômodo artigo constitucional, Evo convocou um referendo. Qual não foi sua surpresa quando a população disse que não, por 51,3% contra 48,7%.

Evo começou a avaliar que outros caminhos havia para disputar o quarto mandato. Mas os bolivianos, principalmente a classe média dos centros urbanos, começou a sair às ruas, colocando tensão no ambiente. Desde então, tem havido manifestações em todo dia 21, para protestar contra o desrespeito ao resultado do plebiscito.

O governo então recorreu ao artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos que diz que toda pessoa tem “o direito de participar em um governo de seu país, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos”.

Tal artigo foi pensado para garantir os direitos a todos os cidadãos, incluindo perseguidos políticos ou minorias excluídas, mas há precedentes de seu uso por mandatários ávidos por eternizar-se no poder.

E que dizem que seus “direitos humanos” seriam violados caso não pudessem seguir concorrendo, mesmo que extrapolando o limite do texto constitucional. Já o usaram o atual ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, e Juan Orlando Hernández, de Honduras.

A condescendência com Evo pode ser explicada pelo seu êxito econômico e pelo temor de que a Bolívia, sem ele, passe a ser uma nova dor de cabeça na região.

Porém, a alternância de poder é requerimento básico para uma democracia vigorosa.

É de se lamentar que os organismos internacionais e os outros países da região prefiram não se importar com o fato de um homem ir acumulando tanto poder por tanto tempo à frente de um país rico em recursos como a Bolívia.

Resta torcer para que Evo não vire um autocrata capaz de desestabilizar a região. Porque o caminho para chegar a isso ele já escolheu tomar.

02 de outubro de 2019

REFORMA OU AJUSTE?!

(Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal  – O Estado de S. Paulo, 01) Uma das críticas ao projeto de reforma tributária em análise na Câmara dos Deputados (PEC 45) é de que ela seria desnecessária e equivocada. Desnecessária porque os grandes problemas do sistema tributário brasileiro – burocracia e excesso de litigiosidade – poderiam ser resolvidos por meio de mudanças administrativas. Equivocada porque a adoção de uma alíquota uniforme para todos os bens e serviços resultaria numa grande redistribuição da carga tributária prejudicando, por exemplo, os prestadores de serviços do regime do lucro presumido. A principal falha desse tipo de crítica é que ela parte de uma visão limitada dos problemas do sistema tributário brasileiro, bem como de uma incompreensão das características de um bom sistema tributário.

O argumento de que uma reforma estrutural dos tributos seria desnecessária, pois seria possível reduzir a burocracia e o litígio por meio de melhorias no processo administrativo fiscal, é equivocado por dois motivos.

Por um lado, ainda que a melhora do processo administrativo fiscal seja desejável, ela é claramente insuficiente para eliminar os problemas que resultam na excessiva burocracia e litigiosidade. Parte importante desses problemas é de natureza estrutural, como a fronteira imprecisa entre a área de incidência do ICMS e do ISS. Parte deve-se à profusão de alíquotas dos tributos atuais, a qual inevitavelmente leva a problemas de classificação e contencioso.

Por outro lado, e principalmente, as distorções estruturais dos tributos brasileiros sobre bens e serviços – como a fragmentação da base de incidência, a tributação na origem e a cumulatividade – têm impactos que vão muito além da burocracia e do alto grau de litígio. Entre esses impactos se destacam a oneração de investimentos e exportações, a guerra fiscal entre os Estados (e entre os municípios) e a criação de uma série de distorções alocativas que levam a uma organização extremamente ineficiente da economia brasileira. A consequência é uma enorme redução do potencial de crescimento da economia brasileira, decorrente da perda de produtividade e da redução da taxa de investimento.

Tais problemas não podem ser resolvidos mantendo-se os tributos atuais: em parte porque são de natureza estrutural (como a fragmentação da base de incidência, a tributação na origem e a incidência cumulativa do ISS) e em parte porque sua correção resultaria numa perda de arrecadação que é inviável na atual situação fiscal do País (como a desoneração completa dos investimentos e das exportações no ICMS).

Já o argumento de que o modelo de alíquota uniforme da PEC 45 seria equivocado por provocar grande redistribuição da carga tributária também não se sustenta.

Em primeiro lugar, a proposta da adoção de alíquota uniforme e base ampla na tributação do consumo não é uma invenção brasileira, mas sim a recomendação quase unânime da literatura internacional. Não é por acaso que a grande maioria dos IVAs criados nos últimos 30 anos tem apenas uma alíquota positiva (embora com alguns casos de isenção e alíquota zero).

Em segundo lugar, um dos efeitos da redistribuição da carga tributária (claramente superestimada pelos críticos) é corrigir distorções alocativas absolutamente injustificáveis. Esse é o caso, por exemplo, dos sócios de empresas do regime do lucro presumido. No regime atual, um prestador de serviço do lucro presumido com renda mensal de R$ 100 mil ou mais está sujeito a uma alíquota marginal de 14,5% a 19,5%, enquanto a alíquota marginal incidente sobre a renda de um empregado formal que ganha R$ 6 mil chega a mais de 42% (parte cobrada na forma de IRPF e parte como contribuição do empregador sobre a folha).

Os críticos da PEC 45 argumentam que a correção dessa distorção levaria a uma “tempestade perfeita” de sonegação. Honestamente, prefiro acreditar que é possível combater a sonegação no Brasil sem depender de um sistema tributário em que os ricos são muito menos tributados que os empregados formais de renda média.

01 de outubro de 2019

‘SÓ UMA FRENTE DEMOCRÁTICA ACABA A POLARIZAÇÃO’!

(O Estado de S. Paulo, 30) A polarização política, implantada com o “nós ou eles” do PT e reafirmada, no extremo oposto, pelo bolsonarismo, significou o adeus à moderação e ao consenso na política brasileira e afastou do debate público largos setores de classe média. A isso se juntou “uma crise de lideranças que levou a uma perda de conteúdo da democracia liberal”.

A advertência é de um dos mais experientes analistas da cena brasileira dos últimos 40 anos, José Álvaro Moisés. De um lado, Moisés aponta a radicalização no debate sobre segurança e corrupção. De outro, uma perda de conteúdo dos partidos do centro, em especial PSDB e MDB. E deixa, nesta entrevista a Gabriel Manzano, uma ideia para se tirar a sociedade do impasse: a formação “de uma frente democrática, envolvendo as diferentes forças independentemente de elas estarem um pouco à esquerda, ou à direita. O momento está exigindo isso.”

À parte tarefas imediatas dessa frente, como aprovar o voto distrital misto e redefinir os limites que a sociedade aceita para financiar campanhas, “temos de deixar claro que defender a democracia é mais importante do que atacar o outro lado”. É preciso, conclui, “de novo impor a moderação como marca do debate social e político”. A seguir, os principais trechos da conversa.

O Brasil vive, há tempos, uma polarização alimentada pelo “nós ou eles” de Lula e depois pela “nova política” de Bolsonaro, e no meio uma imensa classe média órfã de representação nesse debate. Como analisa isso?

O que temos é uma crise de liderança política e econômica desde 2013. Ali ficou clara a rejeição de parte importante da classe média em relação ao mundo político. Em 2018 a classe média identificou o PT como responsável pela sua perda de renda com a recessão e votou contra ele. Acabou aceitando os termos da polarização. Não estou dizendo que não tivessem razão ao criticar, especialmente na questão da corrupção. Mas, sem dúvida, isso afastou do diálogo político a moderação, levou a classe média a conviver com uma posição mais extrema.

As recentes pesquisas apontam uma queda no prestígio do atual governo. Isso significaria que o atual cenário pode ser mudado?

Ele está começando a mudar. É visível a decepção com o governo, que não está entregando o que prometeu. A classe média começa a perceber e vai para uma posição mais crítica, já detectada nessas pesquisas. Mas ainda faltam, a meu juízo, novas lideranças que sejam capazes de aglutinar esses segmentos insatisfeitos. O fato é que temos, ao lado da crise econômica, uma crise dos partidos políticos, especialmente os de centro, centro-esquerda e centro-direita. Refiro-me especificamente ao PSDB, ao MDB, que perderam seu conteúdo programático e não foram capazes, desde então, de renovar as lideranças.

O que poderiam ter feito e não fizeram?

Se você olhar em relação aos protestos de 2013, ninguém, nenhuma liderança, mesmo, disse uma única palavra de empatia, de identificação com a rejeição que aqueles segmentos afirmaram nas ruas, em relação ao modo de funcionamento da política. Eles se afastaram.

O que seria essa empatia?

Os atos de 2013 tornaram visível a rejeição de um segmento muito importante da sociedade quanto ao modo de funcionamento da política. O que estava em questão era o esvaziamento dos partidos, a desconexão entre representados e representantes. E há também um funcionamento ruim das instituições, com resultado negativo nas políticas públicas. Essa rejeição apareceu com clareza em inúmeras pesquisas. Inclusive nas que eu conduzi na USP que apontaram altos índices de desconfiança com relação a partidos, Congresso, Judiciário. Veja o papel das lideranças na campanha presidencial. Alckmin, Meirelles, Ciro Gomes, Marina, nenhum desses líderes foi capaz de responder àquela crise.

Isso apareceu também nos níveis de rejeição aos candidatos nas urnas em 2018.

Exato, um alto nível de rejeição. Faltou aos líderes se mostrarem solidários com o sofrimento de uma parte importante da sociedade brasileira. Gente que, ao perder renda, perder emprego, ficou numa situação crítica. Não se estabeleceu nenhuma conexão.

Ficou um espaço vazio.

Sim, um espaço que foi ocupado por Bolsonaro e por uma posição de ultradireita que radicalizou o debate sobre segurança e sobre corrupção. Cabe perguntar: por que outros setores, democráticos, não tomaram uma posição clara em relação à corrupção? E os partidos? Não poderiam fazer uma autocrítica, admitir que cometeram erros, e que assumiriam o compromisso de se corrigir?

Pode-se dizer que 2018 ‘se esqueceu” de 2013, não?

Num certo sentido, de fato, 2018 foi uma consequência de esses líderes e partidos terem virado as costas para 2013, para o que ele representava. Nem o PT fez sua autocrítica. No caso do PSDB, o Tasso Jereissati, que ocupava a presidência interina, fez uma tentativa de autocrítica, inclusive com um programa de TV no qual se admitia que o partido cometeu erros, mas os estava corrigindo.

Mas a causa não avançou. Sim, isso não foi aceito pela grande maioria do partido. Morreu ali. O que traz à tona outra questão fundamental: a crise de lideranças no País, que teve como consequência uma perda de conteúdo da democracia liberal.

De que forma?

Porque permitiu que se organizasse um ataque da extrema direita em relação aos direitos fundamentais da democracia, em relação às minorias. Tivemos um bom exemplo disso agora, quando Bolsonaro, na ONU, abordou a questão indígena falando em “um indigenismo ultrapassado”. E houve outros ataques a outras minorias, como sabemos. A meu ver isso é responsabilidade das lideranças chamadas democráticas, que de algum modo representavam uma alternativa para as classes médias, mas não se apresentaram.

Como imagina que isso vai ser resolvido?

Temos de saber se esses efeitos negativos podem desencadear uma reação. Se novas lideranças conseguirão reafirmar posições mais moderadas. Acredito que estamos diante de um desafio: a formação de uma frente democrática, envolvendo as diferentes forças independentemente de elas estarem um pouco mais à esquerda, ou à direita. O momento está exigindo isso. Mas não pode ser, como alguns já acenam, uma frente de esquerda, que de novo leve ao isolamento.

Teria de ser uma frente obrigatoriamente ampla…

Não precisamos de isolamento neste momento. Precisamos de unificação de todos os segmentos que tenham algum compromisso com a democracia. Isso significa, por exemplo, chamar os liberais, eu até diria os liberais conservadores, que não são a ultradireita. Setores que não concordam com o governo Bolsonaro.

Quais seriam as tarefas práticas dessa frente?

Ela deve reiterar os compromissos da democracia, os direitos fundamentais envolvendo minorias – destaco os índios e os afrodescendentes. Vamos entender aqui: as políticas de segurança não estão respondendo ao fato de que as maiores vítimas da criminalidade e da insegurança continuam sendo os jovens negros. Em especial se moram nas periferias, nas favelas. Este é outro item quando eu digo que o governo não está entregando o que prometeu. O caso do Rio de Janeiro é dramático, mas não é só no Rio que isso ocorre.

Isso ajudaria a romper a polarização do “nós” contra “eles”? Essa frente precisaria combater a sério essa bipolarização. Deixar claro que defender a democracia é mais importante do que atacar o outro lado. Isso é essencial para trazer essa parcela da sociedade de volta a um papel proativo na política. Significa de novo impor a moderação como marca do debate social e político. E uma forma de antecipar essa meta é a qualificação desses segmentos para propor nomes novos já nesta eleição para prefeitos em 2020.

Já tem gente se dedicando a formar novas lideranças. O RenovaBR, o Raps e o Agora qualificam pessoas para os partidos. Acho extremamente positivo, é por aí. Selecionar e estimular novas lideranças é tarefa das instituições da sociedade civil, como as que você citou. Mas é também tarefa da universidade. Ela precisa… não digo lançar líderes, mas preparar uma camada de profissionais com conhecimento dos problemas do País e que se disponham a atuar na política com outra perspectiva.

Qual perspectiva?

A democrática e republicana. Porque, vamos nos entender, nem sempre a democracia reivindica os princípios republicanos. E nem sempre os princípios republicanos são realizados em contexto democrático. Essa é uma grande questão, na formação de novos líderes: a junção dessas duas perspectivas. Democracia com probidade administrativa e respeito ao interesse público.

A universidade, de modo geral, acha isso importante?

Há uma preocupação com esse tema no Instituto de Estudos Avançados da USP. Ali se faz um esforço nessa direção. Mas precisamos fazer mais do que o que tem sido feito até agora, avançar esse empenho em formar novos líderes.

Voltemos à ideia de uma frente. Imagina para ela um programa prioritário?

Um primeiro passo seria em relação às eleições de 2020, preparar candidaturas pensando nesse objetivo. E o segundo, preparar também lideranças para 2022. E tem aí também uma estratégia essencial, a de criar lideranças para disputar o Legislativo. Construir uma conexão entre os dois poderes, formar uma base de apoio político. Independentemente de partido A ou B, tem de focar em renovar a política.

Renovar em que direção?

Enfrentar os estrangulamentos do sistema político. Em primeiro lugar, caminhar logo para o voto distrital misto. Em segundo, focar a questão do financiamento das campanhas, definindo qual o nível que a sociedade aceita de recursos para financiar a democracia. Está claro que ela precisa, sim, ser financiada, mas não por atores privados porque isso já significa distorcer resultados eleitorais. Qual o grau que é aceitável? E isso leva à ideia de que as campanhas precisam ser mais baratas.

E o terceiro ponto?

Resolver, numa reforma política, a assimetria que hoje temos entre Executivo e Legislativo. Hoje é o Executivo que tem todos os poderes para definir a agenda política no País. Citaria no mínimo duas questões: limitar as medidas provisórias do Executivo e sua prerrogativa de montar e propor o Orçamento anual do governo. É o Orçamento que define as prioridades das políticas públicas, e isso não pode ficar nas mãos só do Executivo.