02 de março de 2022

JOANA ANGÉLICA, A MÁRTIR CATÓLICA QUE É CONSIDERADA HEROÍNA DA INDEPENDÊNCIA!

(BBC News Brasil, 19) O historiador Bernardino José de Souza (1884-1949) escreveu que dos acontecimentos “tormentosos” da época, “nenhum impressionou mais fundo a alma da Bahia do que o selvagem ataque dos soldados contra o indefeso convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa”. Foi o episódio no qual, segundo suas palavras, “morreu nobremente a primeira heroína da epopeia da Independência”.

Neste trecho, do livro Heroínas Baianas, Souza referia-se à religiosa concepcionista Joana Angélica de Jesus (1761-1822). Há exatos 200 anos, entre 11h e 12h do dia 20 de fevereiro de 1822, a freira morreu, após ter sido atingida por golpe de baioneta quando tentava proteger seu convento da invasão de tropas portuguesas.

Para a historiografia, acabou sendo aclamada como uma heroína do processo que culminaria, no mesmo ano, na Independência do Brasil. Para a Igreja Católica, seu ato de bravura a torna uma mártir da fé, postulando-a à devoção dos altares.

Joana foi um dos destaques de uma exposição realizada pela Câmara dos Deputados em 2016 sob o título Mulheres Pioneiras: Elas Fizeram História. Na ocasião, foi apresentada como “um símbolo da resistência contra o autoritarismo português” já que, “em meio aos conflitos entre as milícias brasileiras pró-independência e o exército português, Joana, aos 60 anos, morreu ao receber um golpe de um soldado por resistir à invasão das tropas ao convento”.

Em texto recente, o arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, cardeal Sergio da Rocha exaltou Joana Angélica como uma das “figuras marcantes do itinerário rumo à independência”, segundo ele uma heroína “por integrar um outro ‘exército’, formado por mulheres que traziam consigo a cruz e o rosário, assassinada às portas do convento”.

“O significado do seu gesto ultrapassa a atitude patriótica de enfrentamento dos soldados portugueses, pela liberdade do Brasil”, pontua Rocha. “O seu martírio ocorre em defesa, não somente de um edifício religioso, mas do que ele representava: a comunidade de irmãs que lá vivia, a fé em Cristo por elas professada, a Igreja que devias ser sempre respeitada.”

Para o cardeal, o episódio protagonizado por Joana “merece figurar, com maior atenção, não somente na história da Independência do Brasil, mas na história da Igreja Católica da Bahia”. “Precisamos conhecer e valorizar mais Joana Angélica, bem como a história rica e plural da Bahia”, acrescenta ele.

Contexto
À BBC News Brasil, o historiador Sérgio Guerra Filho, professor na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, explica que o episódio da morte de Joana Angélica insere-se no contexto anti-lusitano que havia na Bahia naquele início de século 19.

“A Independência [do Brasil] foi um ato complexo que envolveu uma série de eventos em diversas regiões do que hoje chamamos Brasil. Lutava-se contra a dominação portuguesa. No caso da Bahia, havia uma disputa pelo comando militar da região”, afirma ele.

Vale ressaltar que o clima havia se complicado em decorrência do “rearranjo do Reino Unido”, ou seja, da coroa portuguesa. Depois de 13 anos em que a corte havia se transferido para o Rio de Janeiro, o rei português dom João VI (1767-1826) havia retornado para Portugal no ano anterior.

“[Muitos revoltosos] queriam que as províncias [do Brasil Colônia] mantivessem algumas autonomias que tinham conseguido a partir de 1808”, acrescenta Guerra Filho.

Em solo baiano, essa situação se materializava na disputa entre “os nascidos em Portugal, interessados na retomada das prerrogativas coloniais e os nascidos na Bahia, preocupados com a manutenção das vantagens que tinham conseguido com a vinda da família real ao Brasil”, diz o professor.

Entre essas vantagens, ele lista como as principais a liberdade de comércio e as “experiências de poder”, ou seja, com portugueses nascidos no Brasil sendo alçados a cargos importantes.

Pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato frisa que a região do Recôncavo Baiano era um reduto de revoltas desde o fim do século 18 — ele lembra o episódio de cunho separatista conhecido como Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates, ocorrido entre 1798 e 1799.

“Ou seja: era um local de movimentos muito radicais com algumas vertentes republicanas lutando pela a autonomia ou pela independência, dependendo do grupo”, pontua ele, em conversa com a BBC News Brasil. “Havia na Bahia uma relação muito conflituosa entre portugueses e nativos, muito por conta da cobrança de impostos mas também por conta da miséria em que muitos escravos e libertos viviam numa região que estava perdendo cada vez mais força para o Rio de Janeiro.”

Autor de diversos livros sobre o período, o pesquisador Paulo Rezzutti diz à reportagem que “os eventos ocorridos na Bahia no começo do ano [de 1822] são um marco do processo da independência” que “não foi somente eternizado com o grito do Ipiranga em 7 de setembro” e “estava longe de não ser um movimento popular e que só atingia o sudeste brasileiro”.

O conflito
Rezzutti explica que naquele início de ano, setores populares baianos reagiram contra a nomeação de um militar português, o general Madeira de Melo, para o cargo de governador das Armas da Bahia. “Tanto a população quanto as tropas tentaram não aceitar a nomeação imposta por Lisboa”, comenta. “Cidadãos notáveis tentaram impugnar a posse e o caso acabou levando a um embate entre os populares e os soldados baianos contra o general e seus comandados.”

“O ponto alto da batalha em Salvador foi a tomada do Forte de São Pedro, onde o brigadeiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães, comandante nativista, acabou dominado, preso e enviado para Portugal”, narra o pesquisador. “Na sequência dos combates, soldados portugueses, grande parte embriagados, perseguiram os brasileiros que escaparam do Quartel da Mouraria. Como esse ficava perto do Convento da Lapa, ele foram até o convento para verificar se os brasileiros tinham fugido para lá e se o local guardaria armas.”

Alegando terem ouvido rumores, os portugueses disseram acreditar que as religiosas estivessem dando abrigo para os brasileiros. “Ela tentou impedir que os soldados entrassem no claustro, que era vetado para os homens, e acabou sendo morta com golpes de baioneta”, relata o pesquisador Rezzutti.

“[A freira] agiu de maneira a resguardar a integridade das freiras, colocando-se diante dos soldados portugueses que queriam invadir a clausura, e acabou morta por eles”, diz ainda o pesquisador. “A ação dela era de proteger o convento, as noviças e outras irmãs, não tinha qualquer ligação com a causa entre portugueses e brasileiros.”

Mesmo assim, Rezzutti ressalta que ela “é considerada a primeira heroína da independência” e é “pouco lembrada por isso”.

Narrativas da época registram que ela teria enfrentado as tropas dizendo: “Para trás, bandidos! Respeitem a casa de Deus! Recuem: só conseguirão penetrar nesta casa passando por cima do meu cadáver!” Mas hoje se acredita que esses dizeres tenham sido inventados postumamente para ilustrar o seu martírio.

Para o historiador Guerra Filho, o gesto de Joana pode ter sido imbuído de valores católicos e também de um conhecimento do contexto político. “Eu acredito que ela praticou a defesa da religião, ou seja, protegendo o claustro como um local, dentro de um convento feminino, em que homens não podem entrar. Mas não desprezo que ela tivesse também a percepção das injustiças, da opressão portuguesa, algo que era muito comum à época.”

Como era uma religiosa baiana, não havia como ignorar esse contexto. “Era uma percepção daquele período: a das diferenças entre os nascidos em Portugal, os portugueses da Europa, e os portugueses nascidos no Brasil”, complementa o historiador. “Nesse processo, a ação dela durante uma disputa entre soldados portugueses e soldados baianos foi incorporada pela historiografia baiana como um ato patriótico.”

“Não temos como dizer com certeza o que se passava na cabeça da freira, mas é possível dizer que ela estava defendendo o claustro e, ao mesmo tempo, entendendo que os portugueses exerciam uma força de opressão colonial, uma opressão contra os baianos”, avalia ele.

Missiato lembra que o fato de ela ter sido uma religiosa, “em uma sociedade hegemonicamente católica”, onde “a defesa das instituições católicas sempre se fez muito presente” deu dimensões mais reluzentes ao episódio.

“E os portugueses foram extremamente violentos na entrada do convento. A morte de Joana Angélica acabou gerando uma comoção popular na Bahia”, afirma ele. “Mesmo que [o episódio] tenha sido exaltado posteriormente como um caso de identificação nacional, o que ocorreu no calor do momento foi importante. Ela teve um papel importante, para a historiografia, no processo de independência.”

Quem foi
Joana Angélica era de uma família de ricos aristocratas de Salvador. Conta-se que desde muito cedo manifestava inclinação pela vida religiosa e seus pais, José Tavares de Almeida e Catarina Maria da Silva, nunca se opuseram a isso — pelo contrário, apoiaram a menina.

Segundo informações da Arquidiocese de Salvador, ela foi aceita aos 20 anos como noviça no Convento Nossa Senhora da Conceição da Lapa. Tornou-se irmã consagrada no ano seguinte.

A biografia disponibilizada pela Arquidiocese ainda atesta que ela era “estimada pelos m oradores da capital baiana pelos conhecimentos que detinha”. Ela foi designada abadessa — cargo máximo do convento — por duas vezes. Primeiro, de 1815 a 1817. Depois, de 1821 até seu assassinato.

Há tempos setores da Igreja defendem que Joana Angélica pode ser reconhecida como beata — e, posteriormente, como santa. Se sua morte for entendida oficialmente pelo Vaticano como um martírio em defesa da fé, nem a comprovação de milagres seria necessária.

De acordo com a Arquidiocese de Salvador, em 2001 foi solicitada “a inclusão da pesquisa de documentos comprobatórios” do martírio dela “para que se tornasse possível o processo canônico da beatificação da citada freira”.

Os trabalhos consistiram de pente-finos em arquivos como o do Estado da Bahia, da Cúria Metropolitana e de conventos e mosteiros. Considerado insuficiente, o processo avançou por outros acervos. A partir de então, o dossiê passou a incluir documentos do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, do arquivo do Mosteiro da Luz de São Paulo, da Biblioteca Nacional, do Museu Histórico Nacional e do Arquivo Nacional, entre outras instituições brasileiras.

Pesquisadores também buscaram materiais em Portugal, com consultas ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, à Biblioteca Nacional e ao acervo da Universidade de Coimbra.

“Atualmente, há uma equipe escrevendo sobre a biografia dela para dar respaldo a um processo de beatificação”, conta Guerra Filho.

Procurada pela reportagem, a Arquidiocese de Salvador não respondeu sobre o status atual dos trâmites que podem levar Joana Angélica à chamada “glória dos altares”. A assessoria de comunicação da instituição limitou-se a informar que uma missa especial deve ser celebrada neste domingo em memória ao bicentenário do martírio dela.