05 de março de 2022

OS INIMIGOS DO LIBERALISMO MOSTRAM O QUE ISSO SIGNIFICA!

(O Estado de S. Paulo, 05) “Após duas décadas de dominância, o liberalismo político está perdendo espaço entre as mentes ocidentais”, escreve Matthew Rose em seu novo livro A World After Liberalism (Um mundo depois do liberalismo). Rose não se refere ao liberalismo político da maneira que empregamos o termo tipicamente. Ele se refere ao liberalismo enquanto conjunto de percepções compartilhadas no Ocidente: uma crença na dignidade humana, em direitos universais, no florescimento individual e no consentimento de quem é governado.

Esse liberalismo tem sido atacado por crises financeiras, pela crise climática, pelas questionáveis respostas à pandemia, por populistas de direita e pela China. Ele parece exaurido, moído, definido pelas contradições e promessas não cumpridas que se seguem à vitória, e não pela criatividade e a inspiração presentes na luta.

Pelo menos parecia ser assim. A recusa da Ucrânia em se ajoelhar diante de Vladimir Putin lembrou ao Ocidente que, para aqueles que não têm garantido o liberalismo, vale a pena lutar por ele. Mas uma renovação verdadeira exigirá mais do que horror em relação à invasão russa ou louvores à coragem ucraniana. Significará enfrentar as deficiências do liberalismo político e redescobrir o radicalismo em seu núcleo.

A World After Liberalism é um revigorante ponto de partida para iniciar essa redescoberta, em parte porque tanto da obra se passa na era de ascensão do liberalismo, mesmo enquanto se via sob violenta ameaça. No livro, Rose perfila Oswald Spengler, Julius Evola,

Francis Parker Yockey, Alain de Benoist e Samuel Francis, cinco pensadores de extrema direita do século 20 que estão experimentando uma popularidade renovada na atual direita – e cada vez mais no centro. Alguns deles influenciam nosso mundo diretamente.

ORIGENS. O argumento dos antiliberais é mais ou menos assim: nossas verdadeiras identidades têm suas raízes na terra em que nascemos e nos nossos parentes mais próximos. Nossas vidas ganham ordem e significado porque estão inseridas em uma estrutura maior e na luta pelo nosso povo.

O liberalismo político e, até certo grau, o cristianismo, envenenaram nosso solo cultural, deixando-nos à deriva em um mundo que privilegia o prazer e zomba da tradição. O multiculturalismo, nessa narrativa, torna-se um ideal conservador: deveríamos celebrar a força da distinção cultural, rejeitar as ocas compaixões universalistas dos progressistas e insistir na preservação daquilo que diferencia as pessoas. A genialidade dessa crítica, conforme escreve Rose, é que ela redefine as virtudes do liberalismo enquanto vícios.

Parte da sinistra relevância do livro decorre do papel que a Rússia desempenha na obra. Yockey, um dos mais notórios supremacistas brancos no zoológico de Rose, escreveu “à espera de uma Rússia ressurgente, que ajudará a corrigir um Ocidente decadente”. É justamente este o papel que Putin reivindica para si, insistindo numa identidade arraigada em solo e cultura, num imperialismo justificado por poder e passado; e num conceito de si e da Rússia enquanto bastiões solitários em luta pela cultura europeia tradicional.

O choque descabido ao ver Putin agir da mesma maneira que muitos líderes do passado agiram reflete o longo trabalho do liberalismo na reelaboração não somente o que acreditamos ser moral, mas também no que acreditamos ser normal.

Em sua melhor forma, e às vezes também na sua pior, o liberalismo político constrói o passado como uma terra verdadeiramente estrangeira, capaz de transformar aqueles que ainda o habitam em anacronismos em relação ao próprio tempo. Mas os progressistas enganam-se quando passam a acreditar que isso acontece apenas com os inimigos do liberalismo. Isso também acontece com pretensos amigos do liberalismo.