11 de janeiro de 2021

INVASÃO DO CAPITÓLIO É RETRATO DE COMO TRUMP MUDOU SEU PARTIDO!

(The Economist / O Estado de S. Paulo, 10) O livro mais importante da era Trump não foi Medo, de Bob Woodward, nem Fogo e Fúria, de Michael Wolff, nem qualquer um dos outros best-sellers que expuseram o circo da Casa Branca. Indiscutivelmente, o livro mais importante da era Trump foi a obra instigante de dois cientistas políticos de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicada um ano após a ascensão de Donald Trump à presidência e intitulada Como as democracias morrem.

Depois de muitos anos pesquisando derrapagens democráticas no Leste Europeu e na América Latina, a dupla admitiu ter ficado surpresa ao voltar os olhos para seu próprio país: “Sentimos pavor (…) bem agora que estamos tentando nos tranquilizar, dizendo que as coisas não podem ser tão ruins assim por aqui”. A invasão do edifício do Capitólio em 6 de janeiro por milhares de seguidores de Trump brandindo tacos de beisebol e a bandeira dos confederados mostrou que as coisas estão bem ruins, sim.

Pode-se argumentar que a sessão do Senado interrompida pelos insurgentes seria ainda mais preocupante. Mais de dois terços dos membros republicanos da Câmara dos Representantes e mais de um quarto dos senadores republicanos estavam prestes a votar para magicamente reverter a derrota de Trump em vitória, rejeitando os votos do colégio eleitoral de um punhado de Estados nos quais ele perdera.

Naturalmente, com uma ladainha bem familiar aos golpistas, os parlamentares em questão alegavam que estavam tentando proteger a democracia, não a derrubar. Josh Hawley, do Missouri, que liderou a iniciativa no Senado, declarou que “as preocupações de milhões de eleitores quanto à integridade eleitoral merecem ser ouvidas”.

A grande maioria dos eleitores republicanos que afirmam acreditar que Trump ganhou a reeleição em novembro não está respondendo a preocupações racionais. Se estivessem, deveriam ter se tranquilizado diante do número recorde de decisões judiciais, verificações de segurança e recontagens gerado pelos dois meses de esforços de Trump para reverter os resultados. As sessenta e tantas contestações de sua equipe jurídica foram objeto de escárnio geral, até mesmo na Suprema Corte dos Estados Unidos. Ainda assim, a crença de que Trump foi roubado se recrudesceu entre o eleitorado republicano. Uma pesquisa do YouGov encomendada pela Economist nesta semana apontou que 64% queriam que o Congresso revogasse o resultado da eleição em favor de Trump.

William F. Buckley Junior, um dos arquitetos do movimento conservador moderno, chamou o conservadorismo de “política da realidade”. Agora parece justamente o contrário. A maioria dos eleitores republicanos aceitou a afirmação de Trump de que os democratas não podem ganhar legitimamente e de que a falta de provas de suas tramoias é prova de que houve alguma ocultação.

“É difícil imaginar um ato mais antidemocrático e anticonservador”, foi o veredicto do sempre reticente Paul Ryan, ex-líder republicano na Câmara, sobre a decisão de tantos congressistas republicanos de apoiar essa ficção. De sua parte, Ziblatt disse que vê essa manobra como um “ensaio geral” para um esforço republicano mais sério de derrubar alguma eleição, possibilidade que ele agora considera provável.

Há razões para esperar que essa previsão acabe se provando pessimista demais. Os republicanos que votaram para anular os resultados o fizeram de maneira imprudente e cínica, mas sabendo que não teriam sucesso. As autoridades republicanas que realmente poderiam ter mudado o resultado da eleição seguiram a Constituição. Entre elas se encontra o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, objeto de uma campanha de intimidação e abuso por parte do presidente e seus comparsas. Mitch McConnell, assim despojado de sua maioria no Senado, emitiu uma repreensão contundente contra Hawley e os demais. Derrubar os votos do colégio eleitoral “causaria danos à nossa república para sempre”, disse McConnell, que raras vezes é acusado de agir com base em princípios. Minutos depois, as “pessoas especiais” de Trump se lançaram à invasão do Capitólio – o que, por sua vez, encorajou os republicanos mais experientes a criticar o presidente de maneira mais direta do que jamais haviam ousado.

Ainda está longe de ser um repúdio generalizado a Trump por parte do establishment republicano. E, sem esse repúdio, é difícil imaginar que o presidente abrirá mão de sua força dentro do partido, o que daria a este a oportunidade de voltar a se comprometer com as normas democráticas. No entanto, esse repúdio agora parece mais imaginável.

O americano médio, ainda que sob intensa polarização, não gosta de violência de turbas e preza pelos símbolos de sua democracia. Um comentarista lembrou a mudança no apoio da população aos republicanos em 1995, depois que Timothy McVeigh, integrante do tipo de milícia que diz amar a liberdade até então defendida pela direita, explodiu um prédio federal em Oklahoma, matando 168 pessoas. O paralelo é inexato, mas indica até que ponto Antes mesmo dos eventos desta semana, entre a maioria dos republicanos mais experientes parecia muito forte a convicção de que Trump manteria sua preeminência sobre o partido – um caso de síndrome de Estocolmo, talvez. “A base acha que Trump é um mártir”, disse um senador republicano. “Pelos próximos dois anos, talvez quatro, ele vai conseguir ferrar todo mundo nas primárias, sem levantar um dedo”. Isto pode se revelar correto. Ainda assim, os eleitores querem um vencedor, e é por isso que Grover Cleveland foi o único presidente com mandato único a ter sido reeleito para o cargo, em 1892. E, depois que Trump deixar a Casa Branca e desaparecer da vista diária, mais e mais republicanos talvez comecem a enxergar aquilo que o mito da eleição roubada pretende ocultar: sua fraqueza eleitoral.

Os proponentes do mito citam os muitos novos eleitores que ele atraiu em novembro para explicar por que Trump não poderia ter perdido. Mas para tanto seria necessário fechar os olhos para o fato de que Biden atraiu muito mais gente. Em uma eleição que teve comparecimento recorde para ambos os partidos, o democrata ganhou os 6 milhões de eleitores que já haviam votado em algum candidato de outro partido por uma proporção de 2 para 1. E conquistou eleitores de primeira viagem pela mesma proporção.

Trump também impulsionou a maioria dos candidatos republicanos ao Congresso. Seu partido teve um ganho líquido de dez cadeiras na Câmara e quase manteve a maioria no Senado, mesmo que ele tenha perdido a disputa presidencial por uma margem considerável. Isto sugere que os republicanos podem ter um belo futuro pósTrump. Apesar de suas derrotas esta semana na Geórgia – Estado cujo eleitorado jovem e plural há muito tem apresentado tendências democratas – a marca republicana não foi muito prejudicada pelos anos Trump. O partido também tem uma grande vantagem na Flórida. Carlos Curbelo, ex-congressista do sul da Flórida, onde novos apoiadores latinos ajudaram o partido a ganhar duas cadeiras na Câmara, descreve esse avanço como “um grande processo, a coisa pela qual os republicanos estão mais animados”. Ele o considera um indicador do futuro ideal para o partido: uma coalizão multiétnica dedicada a fornecer soluções de mercado para os grandes problemas – como, por exemplo, a mudança climática – que a esquerda tende a lançar sobre os ombros do governo.

Estas são conjecturas razoáveis. Sublinham o fato de que a trajetória futura do partido ainda não está definida. Ninguém previu Trump em 2012. Mas esse futuro pós-Trump mais feliz para o partido do presidente até agora é só uma possibilidade teórica. A realidade do populismo de Trump não é o pensamento conservador heterodoxo, mas as fúrias dos populares que irromperam no Capitólio esta semana. E reprimi-los não será fácil, mesmo se Trump for embora.

É bem difícil imaginar a direita voltando deste estado fanático para o reaganismo moderado. A ideia de Marco Rubio – manter os eleitores da classe trabalhadora a bordo de políticas econômicas populistas e, ao mesmo tempo, baixar o volume da mensagem cultural o suficiente para atrair de volta alguns suburbanos – pode ser mais promissora.

McConnell e sua facção republicana deveriam ver a iminente possibilidade de cooperação com o governo Biden como uma oportunidade para este fim. O presidente eleito é um veterano negociador do Senado, disposto a governar a partir do centro. E a estreita maioria democrata no Senado não dará ao seu partido outra opção a não ser tentar fazer exatamente isto. O senso comum diz que McConnell, veterano da oposição desleal, não vai querer participar desse processo – assim como ele obstruiu o governo Obama.

Essa dinâmica empurrou Obama para a esquerda e ajudou a alimentar a crescente fúria partidária da direita. O que, por sua vez, acabou gerando o Tea Party, Trump e a vergonhosa guinada antidemocrática entre os republicanos do Senado – à qual, é preciso reconhecer, McConnell se opôs firmemente. É de se imaginar que ele e seus colegas republicanos machucados por Trump não queiram passar por tudo isso mais uma vez. Trabalhar com Biden para consertar alguns dos problemas mais graves do país seria um sinal de que eles de fato não querem.