12 de agosto de 2022

OS DEMOCRATAS SALVARAM A CIVILIZAÇÃO?!

(Paul Krugman – The New York Times/O Estado de S. Paulo, 12) Eles realmente conseguiram. A Lei de Redução da Inflação – que é principalmente um projeto legislativo destinado a combater as mudanças climáticas, com um aspecto que favorece uma reforma na saúde – foi aprovada pelo Senado, no domingo; e, segundo todos os cálculos, será facilmente aprovada na Câmara dos Deputados e se tornará lei.

Isso é realmente muito importante. A lei, em si, não é suficiente para evitar o desastre climático. Mas é um passo enorme na direção certa e prepara o cenário para mais ações nos próximos anos. A legislação catalisará progresso em tecnologia verde. Seus benefícios econômicos facilitarão a aprovação de mais leis. Ela dá aos EUA a credibilidade de que o país precisa para liderar um esforço global para limitar as emissões de gases de efeito estufa.

DIFAMAÇÃO. Há, evidentemente, cínicos ávidos para difamar essa conquista. Alguns na esquerda se apressaram em desprezar o projeto de lei, qualificando-o como um prêmio para a indústria de combustíveis fósseis com pose de ação ambiental. Mais importante, os republicanos – que se opuseram à legislação de maneira unânime – estão berrando o que sempre berram: Gastos altos! Inflação!

Mas verdadeiros especialistas em energia e meio ambiente estão exultantes com o que foi alcançado, e economistas sérios não estão preocupados com o efeito sobre a inflação.

Comecemos com o lado ambiental. Muitas pessoas com quem converso acreditam que a agenda ambiental do presidente Joe Biden, conforme definida em sua proposta original do pacote Build Back Better, deva ter sido em grande parte diluída na legislação aprovada.

Afinal, os democratas não tiveram de abrir grandes concessões para ganhar o voto do senador Joe Manchin? E não estão previstos importantes benefícios para os interesses do setor de combustíveis fósseis, como ajuda para um controvertido gasoduto?

GANHOS. Mas analistas da indústria de energia acreditam que qualquer efeito climático adverso decorrente dessas concessões será obliterado pelos ganhos de créditos fiscais para a energia limpa. O Repeat Project, compilado pelo Zero Lab, de Princeton, produziu uma comparação lado a lado dos cortes de emissão sob a Lei de Redução da Inflação (LRI) e sob a versão mais branda do Build Back Better (BBB).

Até 2035 a LRI, estimam os pesquisadores, terá ocasionado mais de 90% das reduções de emissões que o BBB teria alcançado. Depois daquele drama legislativo, a política ambiental de Biden emergiu essencialmente intacta.

Como isso foi possível? Logo em seu início, o governo Biden decidiu que sua política ambiental seria movida a cenouras, em vez de chicotes – isso proveria incentivos para fazer a coisa certa, não penalidades por fazer a coisa errada.

Essa estratégia, esperava-se, se provaria factível politicamente de uma maneira que, digamos, impostos sobre emissões de carbono não seriam capazes. E essa esperança foi reivindicada.

DIVIDENDOS. Além disso, tratase de uma estratégia que, aparentemente, renderá dividendos políticos no futuro. Um novo estudo, de E. Mark Curtis e Ioana Marinescu, constata que “o crescimento da energia renovável leva à criação de empregos relativamente bem remunerados, que são com bastante frequência localizados em áreas que têm a perder com o declínio dos empregos na extração de combustíveis fósseis”.

Então, o que o governo Biden perdeu? Infelizmente, grande parte do gasto social que o BBB original previa – créditos fiscais em benefício de crianças, creches públicas universais e mais – foi cortada. Isso é trágico, apesar de o aumento nos subsídios para seguro-saúde – que ajudaram a produzir uma redução recorde no número de americanos não segurados – ter sido estendido. Mas os democratas cumpriram quase todas as suas promessas em relação ao meio ambiente.

INFLAÇÃO. E o que diz a crítica da direita? Além da patética tentativa de retratar a LRI como uma grande escalada nos impostos da classe média, republicanos como Mitt Romney estão tentando associar a legislação com o Plano de Resgate Americano, do ano passado, que, afirmam eles, causou aumento na inflação.

Não importa se essa alegação é verdadeira ou não. Importante é fazer a conta. A Lei de Redução da Inflação prevê gastos inferiores a US$ 500 bilhões ao longo de uma década, e o Plano de Resgate Americano determinou o gasto de US$ 1,9 trilhão em um único ano – e na realidade reduzirá o déficit. É por isso que analistas independentes consideram que a LRI influenciará pouco a inflação.

Mas se o gasto não é tão grande, como é capaz de surtir tamanho impacto? A resposta é que, neste momento, estamos numa espécie de limiar. A tecnologia em energia renovável fez um progresso revolucionário, e fontes renováveis já são mais baratas do que combustíveis fósseis em muitas áreas.

Um estímulo moderado da política pública basta para ocasionar a transição para uma economia muito mais verde. E a Lei de Redução de Inflação vai dar esse empurrão.

IGNORÂNCIA. Mas, diante tudo isso, por que todos os senadores republicanos votaram contra a LRI? Nem todos eles são ignorantes e alguns sabem fazer contas – estou bem certo que Romney, por exemplo, sabe que está falando besteira.

Diferenças ideológicas também não podem ser facilmente invocadas. O esforço ambiental da LRI depende principalmente de créditos fiscais – e os próprios republicanos usaram créditos fiscais para cumprir metas sociais, como os (tão abusados) créditos em Zonas de Oportunidade previstos no corte de impostos aplicado por Donald Trump em 2017.

Quase certamente, o que vemos agora é a política do despeito. Todos os senadores republicanos se mostraram dispostos a acabar com nossa melhor chance de evitar um desastre climático simplesmente para negar uma vitória ao governo Biden.

A boa notícia é que a lei foi aprovada a despeito de seu despeito. E o mundo se tornou um lugar com mais esperança do que era semanas atrás.

10 de agosto de 2022

A GUERRA FAZ A CLAREZA!

(Alastair Crooke, ex-diplomata britânico – Les Crises) O acidente de trem é esperado há tanto tempo que nos tornamos confortáveis ​​vivendo sob sua sombra. A vida continuou; os mercados estavam otimistas de que o subsídio ao estilo de vida de mercado fornecido pelos Bancos Centrais continuaria inabalável. E não sem uma boa razão também: qualquer decepção do trader com a ação do Banco Central, qualquer queda nos mercados, provocava um chilique coletivo no mercado que geralmente forçava os Bancos Centrais a um apaziguamento imediato. Fomos pressionados a imaginar de forma diferente.

Agora, no entanto, estamos em uma nova era, de muitas maneiras. O Ocidente entrou em guerra com a Rússia e a China. O Ocidente, no entanto, não fez sua lição de casa primeiro, e agora está descobrindo que a ‘guerra’ está revelando cruelmente a rigidez estrutural e as falhas inerentes ao seu próprio sistema econômico, em vez de explorar as fraquezas de seus rivais.

Por que essa nova era é tão grave? Em primeiro lugar, por causa do que está ‘debaixo das pedras’. Essas contradições estruturais vêm se acumulando ao longo de décadas, espreitando no lado escuro e úmido das pedras. Mantidos escondidos da vista pelo resultado econômico fortuito (para os EUA) da Segunda Guerra Mundial, e a combinação igualmente fortuita de fatores que mantiveram a inflação baixa (tão baixa que os economistas ocidentais acreditavam ter encontrado o ‘santo graal’ da ‘flexibilização’ monetária – eles baniu as recessões para sempre). Tão simples, realmente, basta ligar a impressora de dinheiro!

Salvar o navio, é claro, é imperativo. Assim, a América decidiu cuidar ‘dos ​​seus’. O plano de Davos-Bruxelas de eventualmente transformar os bancos comerciais europeus superendividados em uma única moeda digital controlada por Bruxelas de repente é visto – como se escamas tivessem caído dos olhos – como potencialmente ameaçando furar o casco abaixo da linha d’água .

O que isso revela é que o ‘jogo dólar forte-dólar fraco’ – em conjunto com as sanções do Tesouro – não foi ‘tão ruim’ para os grandes bancos de NY! Por que deixar os europeus recolherem todos esses ativos em dificuldades que surgem em tempos de crise? Por que permitir que a grande esfera bancária dos EUA se dissolva em um mundo de aplicativos fin-tech? Por que privar o primeiro de seus direitos históricos de invasão? Por que parar agora porque os europeus querem ‘Davos’.

Assim, os grandes bancos dos EUA estão pensando, deixe o BCE – e por extensão a Zona do Euro – ‘cair sob o ônibus’. De qualquer forma, coordenar a política com o BCE amarrou as mãos do Fed para administrar os assuntos em seu próprio benefício.

É a guerra, estúpido (para citar erroneamente o presidente Clinton). Se você levar um martelo de sanções a uma rede de fornecimento complexa e frágil ‘just in time’, você terá bloqueios de fornecimento – e a inflação de custos é inevitável . Abrir a torneira do dinheiro quando você enfrentar a inflação gerada pela oferta apenas retornará a dinâmica inflacionária ao sistema. O que o Fed está tentando fazer é manter intactos alguns benefícios de uma moeda de reserva, em um momento em que o valor da mercadoria como meio de negociação chama a atenção do mundo.

O que isso pode significar em termos de política prática? Bem, as crises de custo de vida já estão aqui, assim como o início das ruínas políticas que se seguiram. O BCE anunciou na semana passada o fim das compras de ativos e não colocou mais nada no lugar. Tudo o que o BCE disse foi que trabalharia em um ‘instrumento de emergência’.

Então, claramente, há uma emergência – mas não há um novo instrumento e não haverá um. O BCE pode usar uma ferramenta de QE existente para comprar uma quantidade ilimitada de títulos soberanos ou não. É uma escolha, não uma ferramenta nova.

O Euro é apenas um derivado do dólar (que em si é um derivado da garantia subjacente). O Euro-sistema (para usar uma metáfora militar) foi construído para proteger as linhas defensivas estáticas existentes: não é uma força militar expedicionária móvel e itinerante.

A base sistêmica para a zona do euro tem sido o compromisso absoluto do BCE de manter o Bund alemão de 10 anos com um prêmio gerenciado sobre os títulos do Tesouro dos EUA de 10 anos (estes são, respectivamente, as duas ‘âncoras de valor’ que sustentam o funcionamento da zona do euro) .

E, à medida que as taxas de juros sobem nos EUA, isso deve ser refletido no Bund (para preservar seu ‘valor’) – pois os títulos soberanos representam a garantia altamente alavancada sobre a qual está (ou não) o edifício bancário europeu. Se o valor, digamos, das garantias italianas cair, um ciclo de destruição financeira se instala – como aconteceu em 2012. Em uma palavra, a Zona do Euro potencialmente entraria em colapso.

Com uma inflação de 2%, os títulos soberanos europeus poderiam ser mantidos mais ou menos alinhados. Em 8% eles não podem. E o mercado de títulos está se fragmentando. Os spreads entre os títulos dos estados dispararam nas últimas semanas. Como paliativo, o BCE parece estar vendendo bunds alemães para comprar dívida italiana.

O que isso prenuncia para o futuro? Uma dica do que pode estar por vir foi quando Christine Lagarde não deixou dúvidas de que o BCE pelo menos tentará resistir. Ela disse durante uma conversa na London School of Economics que o BCE não se sujeitaria ao domínio financeiro. O domínio financeiro é um conceito mais amplo do que o de ‘domínio fiscal’ porque inclui o resgate de bancos e outras instituições financeiras, bem como as necessidades de empréstimos do governo.

Isso efetivamente poderia, pelo menos, salvar um núcleo para o ‘projeto’ do euro, eliminando os estados mais fracos e reservando o euro para as economias do norte menos endividadas. A consequência seria uma Europa imitando o que Wall Street fez com a Rússia durante a era Yeltsin: ou seja, imagine-a como a Itália, com seus ativos ‘privatizados’ e vendidos por US$ 1 (como Draghi fez uma vez com o Banco Popular, que ele ‘ assumiu’ como chefe do BCE e depois vendeu ao Santander por 1 euro).

Nos EUA, já existem indícios de tais ações armadas decorrentes de fragmentos do movimento pró-aborto, mas na Europa (e particularmente na Alemanha), podemos ver a raiva derivada de ativistas climáticos radicais, furiosos ao descobrir que é o Transição de energia que será jogada sob o ônibus, enquanto os estados lutam para fazer o melhor possível para manter um sistema à tona, o mais barato possível. A auto-sobrevivência invariavelmente tem prioridade, deixando outros interesses de lado.

Um livro do acadêmico e ativista climático sueco Andreas Malm, observou Wolfgang Münchau , traz o título “ Como explodir um oleoduto” . Sua mensagem mais importante foi um grito de guerra para os ativistas climáticos queimarem e destruirem todas as máquinas emissoras de CO2. Também invocou a declaração mais famosa de Meinhof – que era hora de uma transição da oposição para a resistência.

09 de agosto de 2022

SEGURANÇA DO CELULAR: AS DICAS VÃO DO NÍVEL BÁSICO ATÉ O AVANÇADO!

(O Estado de S. Paulo, 07)

Nível básico •

1) Use senhas alfanuméricas (incluindo símbolos e combinando letras minúsculas e maiúsculas) diferentes para cada cadastro;

2) Use sequências numéricas aleatórias em instituições financeiras, como senhas de cartões ou credenciais em aplicativos bancários;

3) Ative a verificação em duas etapas por celular ou e-mail; 4) Coloque senha no chip (SIM) da operadora, o que irá impedir que ladrões insiram o cartão em outro aparelho e tenham acesso ao seu número; 5) Não clique em links duvidosos ou dê informações pessoais, mesmo que o pedido seja de um contato conhecido; 6) Ative todas as biometrias do seu aparelho, como leitores de digitais e de rosto, que criam camadas a mais de segurança.

Nível intermediário •

1) Tenha senhas aleatórias, complexas e impossíveis de decorar: use apps específicos (1Password, Last Password) ou ferramentas de navegadores (Google Chrome e Safari) que criam senhas e as colocam em um “cofre” na nuvem;

2) Ative senhas de uso único como outra etapa de verificação. São números aleatórios que funcionam como segundo código. São criadas por apps próprios (Google Authenticator, Microsoft Authenticator, Authy, 1Password);

3) Entre em contato com a instituição financeira e diminua limites diários de transferência (DOC, TED e Pix), saques e empréstimo pré-aprovado; 4) Considere incluir um contato de confiança em sua família iCloud (Apple), permitindo que familiares possam apagar o dispositivo a distância em caso de roubo – Android (Google) não tem o recurso.

• Nível avançado

1) Comprar uma chave de segurança física para recuperação de senha e logins, como Titan (do Google), Yubico e OnlyKey — os preços, no entanto, podem ultrapassar a faixa dos R$ 800. Esses objetos são pequenos e podem ser guardados em chaveiros, por exemplo;

2) Gere e imprima códigos de backup alternativos, senhas criadas automaticamente pelo próprio cadastro dos serviços. Devem ser guardados em casa em local seguro; 3) Caso tenha adotado um app gerador de senhas, apague as senhas salvas dos navegadores para evitar brechas; 4) Crie um “e-mail secreto” a que só você tem acesso: essa conta não pode estar salva em nenhum dispositivo do cotidiano, deve ter senhas fortes e autenticação em dois fatores ativada. Por esse e-mail, você fará recuperação das contas mais importantes;

5) Deixe um dispositivo em casa (como um tablet ou celular velho) para ser o local por onde você acessa seu e-mail “secreto”, apps próprios de senhas ou até de instituições financeiras menos utilizadas.

08 de agosto de 2022

CRIANÇAS E ADOLESCENTES NUM PAÍS FAMINTO!

(Raquel Franzim e Ana Claudia Cifali respectivamente, diretora de educação e culturas infantis do Instituto Alana e coordenadora jurídica do Instituto Alana – O Estado de S. Paulo, 07) Ao longo dos primeiros 18 anos de vida, a criança e o adolescente vivem transformações físicas, cognitivas e emocionais que estruturam os anos que seguem e a vida adulta. Esse período, que é breve, produz efeitos duradouros. É por isso que o dado revelado de que o número de pessoas passando fome dobrou do final de 2020 para o começo de 2022 em lares do País com crianças de até 18 anos (25,7% das famílias) é o anúncio da tragédia humanitária que vivemos no presente com potencial de arruinar uma geração inteira no futuro. Durante as férias escolares, com a interrupção da oferta de merenda escolar, este quadro se agrava ainda mais.

Apenas 26% das crianças de 2 anos a 9 anos no Brasil fazem três refeições por dia. Famílias negras e chefiadas por mulheres são as mais impactadas, escancarando como a raça e o gênero são características decisivas para uma vida de privações e para a desigualdade na garantia de direitos em nosso país. A alimentação é o direito social mais básico da vida humana. A interrupção do acesso regular e permanente à alimentação de qualidade e em quantidade suficiente gera um efeito cascata nos demais direitos, impactando o desenvolvimento e freando a autonomia humana, essencial para um Estado Democrático de Direito.

Uma criança que passa fome não deveria preocupar apenas sua família: é a demonstração de que toda a responsabilidade compartilhada prevista no artigo 227 da Constituição federal falhou. Falhamos nós, sociedade e suas instituições, e falham os governos, que deveriam protegê-la acima de tudo, em primeiríssimo lugar, de toda ordem de violência e crueldade que a fome provoca.

Entre os direitos sociais mais afetados ao passar fome encontra-se o direito à educação. Tanto não há condições para aprender, participar e se desenvolver integralmente que o País criou ainda em 1954 o consolidado Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Posteriormente, foi incorporado como direito na Constituição federal de 1988 nos artigos 205 e 208 como um programa suplementar, ou seja, fundamental na garantia de qualidade na educação.

Responsável por garantir 15% das necessidades nutricionais básicas da vida, o programa é uma política pública baseada em evidências que comprovam que, do ponto de vista cognitivo, a desnutrição infantil prejudica o desenvolvimento da atenção, a memória, a leitura e a aprendizagem de linguagens como um todo.

A equação é simples: com menos energia e nutrientes, a performance ao participar da vida escolar diminui e as dificuldades de aprendizagem aparecem. Importante destacar que a fome provoca efeitos sistêmicos no desenvolvimento da criança, desde o crescimento neuromotor abaixo do esperado até, também, prejuízos em habilidades socioemocionais como iniciativa e tomada de decisão. Além disso, permanecer na escola nessas condições se mostra difícil, em alguns casos gerando o abandono escolar para busca de trabalho na tentativa de ampliar a renda familiar, como aponta relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 2020.

Por isso, uma boa alimentação escolar é fundamental, inclusive no período de férias, com programas próprios e específicos para alcançar as crianças e adolescentes que passam fome. Ainda que não responda a todo o problema da fome e da pobreza, a alimentação escolar faz parte da adoção de uma estratégia multidimensional, que inclui a elevação da agenda como prioridade política, com programas consistentes de redistribuição de recursos, assistência, renda e trabalho, sobretudo para as famílias mais afetadas. Infelizmente, dados revelam que o País não apenas deixou de apresentar essas soluções, como, em virtude das escolhas políticas recentes do governo federal, empurrou mais pessoas para a privação alimentar.

Com baixa competência técnica do Ministério da Educação (MEC) para resolver os problemas estruturais do setor durante a pandemia de covid-19, o governo federal tem priorizado questões irrelevantes para a população, entre elas o ensino domiciliar, e passa a escrever, agora, mais um capítulo desesperador. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão técnico vinculado ao MEC, palco recente de disputas políticas, vem nos últimos anos reduzindo a previsão e a execução orçamentárias do Pnae. Segundo dados do próprio governo federal no Portal da Transparência, a tendência é de diminuição de recursos destinados à alimentação escolar. Tudo isso em meio ao agravamento do cenário da fome.

Em outubro, o País passará por eleições para os governos federal, estaduais e para o Legislativo. Sem ter os direitos de todas as crianças e os adolescentes (especialmente os que passam fome) priorizados hoje, no centro do debate e das políticas públicas, o amanhã pode ser tarde demais para eles e para todos nós como sociedade e país.

02 de agosto de 2022

O BUMERANGUE FISCAL!

(O Estado de S. Paulo, 01) O Maranhão deu a largada para uma reação mais do que esperada dos governadores contra a perda de receitas imposta à força pelo presidente Jair Bolsonaro. O Estado foi o primeiro a pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender o pagamento de dívidas garantidas pela União. Ao analisar o caso, o ministro Alexandre de Moraes concordou com os argumentos do Estado e considerou que as leis que impuseram um teto para o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de combustíveis e mudaram a base de cálculo do tributo devem acarretar “um profundo desequilíbrio na conta dos entes da federação”. Com um pedido semelhante, Alagoas também obteve uma liminar, e é questão de tempo para que outros Estados também apelem ao Supremo. É a crônica de um desastre anunciado, que certamente vai custar muito caro para o País.

O aumento da arrecadação dos Estados não é algo estrutural – está relacionado a efeitos temporários, caso do aumento dos preços do petróleo e derivados em razão da guerra na Ucrânia. Qualquer presidente responsável e dotado de articulação política veria nesse contexto uma oportunidade para liderar esforços pela aprovação de uma ampla reforma para simplificar e unificar impostos, eliminar regimes especiais e garantir uma tributação progressiva com vistas a impulsionar o crescimento econômico. Por óbvio, as negociações são difíceis, mas é mais fácil chegar a um acordo quando as partes envolvidas estão com o caixa cheio. O governo federal, no entanto, fez exatamente o contrário. Usou os combustíveis como pretexto para iniciar uma campanha difamatória contra os governadores, jogou Câmara e Senado contra os Estados e optou pela chantagem pública. Encurralados pela disputa eleitoral, os governadores não quiseram correr o risco de serem vistos como inimigos. De forma irresponsável, decidiram se antecipar e arcar com as perdas. Agora que a conta começou a chegar, recorreram ao socorro do STF.

São várias as consequências desse improviso tributário generalizado. Para começar, suas consequências são definitivas: tanto a imposição do teto de 17% quanto a mudança na base de incidência do ICMS continuarão a vigorar mesmo que os preços do petróleo eventualmente despenquem de uma hora para outra. Muitos Estados que iriam encerrar o ano com as contas no azul já projetam um déficit, e investimentos em saúde e educação, que fazem diferença na vida da população mais carente, terão de ser reduzidos. Os municípios, que historicamente têm contas mais ordenadas, podem em breve se tornar uma nova fonte de problemas financeiros, já que uma parte da arrecadação de ICMS fica com os prefeitos. Após anos de negociação para aderir a planos de recuperação fiscal, os Estados mais endividados, como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul,

Goiás e Minas Gerais, dificilmente conseguirão atingir uma trajetória de equilíbrio das contas públicas no médio prazo. O fato de que os acordos foram fechados considerando receitas que não mais se realizarão abre margem para que as contrapartidas com as quais eles haviam se comprometido tampouco sejam cumpridas, como o veto a reajustes de servidores, a aprovação de reformas e a privatização de estatais.

Ainda que sejam tratados como inimigos por Bolsonaro, Estados e municípios são parte da Federação. Sem autorização para emitir dívida, eles não têm muitas alternativas para arrecadar receitas a não ser a cobrança de impostos – como vinham fazendo por meio do ICMS sobre bens essenciais – ou com empréstimos em instituições financeiras públicas e multilaterais. Essas operações, no entanto, precisam do aval do Tesouro Nacional, e, em caso de calote, quem herda a conta é a União. É o que deve ocorrer se todos os Estados que apelarem ao STF tiverem sucesso em seus pleitos. É, portanto, um despropósito que Bolsonaro tenha atuado para corroer as finanças de Estados e municípios quando sabe (ou deveria saber) que o custo dessa política recairá sobre o próprio governo federal. O desastre fiscal dos entes federativos é, em última instância, a ruína do País.

01 de agosto de 2022

BIDEN MOSTRA QUE SE PODE GOVERNAR DO CENTRO!

(Fareed Zakaria – Washington Post/O Estado de S. Paulo, 30) Se o compromisso alcançado na quarta-feira entre o líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, democrata de Nova York, e o senador Joe Manchin, democrata de Virgínia Ocidental, for aprovado, acarretará no maior investimento no combate às mudanças climáticas já realizado pelo governo federal e será o maior pacote de redução de déficit em uma década.

O acordo – obtido após a aprovação da Lei para Chips e Ciência, que prevê investimentos massivos e pesquisa de base em tecnologias cruciais – se seguiu à aprovação da primeira legislação bipartidária para controle de armas de fogo em uma geração. E isso foi precedido pela aprovação do pacote trilionário de infraestrutura, uma das promessas mais emblemáticas da campanha de Donald Trump.

CENTRISMO. No mundo atual, governar a partir do centro parece muito diferente do que foi no passado. Quando o Congresso se uniu, nas décadas de 80 e 90, para aprovar grandes pacotes bipartidários, salvando o sistema de bem-estar social, reformulando impostos, ajudando americanos com deficiências e reduzindo a poluição atmosférica, os autores dos projetos com frequência foram idolatrados pela mídia e dentro de próprios partidos.

Hoje, o mote no Congresso americano é jamais abrir concessões. Resistir ao outro partido, que não é considerado apenas oposição, mas inimigo, é uma distinção de honra. É isso que permite aos congressistas levantar financiamentos com os elementos mais radicais de cada lado do espectro. Um grande esforço bipartidário de empreender uma reforma migratória empacou no início dos anos 2000, ferozmente atacada pelos extremos de ambos os partidos.

REVOLUÇÃO. O Dream Act teve apoio dos dois dos senadores mais opostos ideologicamente, Edward Kennedy, democrata de Massachusetts, e Orrin Hatch, republicano de Utah, que também eram bons amigos.

Eles estavam entre os mais antigos membros do Senado e talvez encarnassem uma antiga maneira de governar, desalinhada em relação a tempos em transformação. A revolução Gingrich (de Newt Gingrich, republicano ex-presidente da Câmara), dos anos 90, tinha transformado o Partido Republicano e,

Os democratas têm mais chances do que os republicanos de se tornarem um grande partido guarda-chuva

posteriormente, a própria Washington. Abrir concessões era considerado se vender – ou até uma traição.

Ao tentar ressuscitar aquele antigo modelo de governo, Biden está remando contra a maré. Mas, surpreendentemente, de maneiras modestas, mas significativas, ele está vencendo. Se mais projetos de lei bipartidários forem aprovados e se os legisladores não forem punidos por cooperar através das linhas partidárias – ou forem recompensados por isso –, esse movimento poderá começar a transformar alguns motes e reduzir a toxicidade em Washington.

Para os democratas, há um real lado positivo aqui. Eles estão mais bem posicionados do que os republicanos para se tornar um grande partido guardachuva. Conforme mostrou um notável estudo Brookings, em 2020, “a vitória de Biden veio dos subúrbios”, e esses eleitores são presumivelmente mais moderados e centristas do que, digamos, a base do Partido Democrata.

LEGISLATIVO. Eleitores dos subúrbios parecem cada vez mais insatisfeitos com as posições dos republicanos sobre temas como aborto e armas de fogo. Após a Suprema Corte reverter Roe versus Wade, a disputa da eleição de meio de mandato para o Congresso deixou de favorecer os republicanos para virar, essencialmente, um empate.

Ser um grande partido guarda-chuva é difícil. Significa manter coalizões unidas, incluindo pessoas que você discorda diametralmente. Mas em um país enorme e diverso, com mais de 330 milhões de habitantes, esta é a única maneira de formar maiorias eficientes. Algumas das maiores realizações dos democratas foram alcançadas com esse espírito.

Franklin Roosevelt postergou ações sobre direitos civis para conseguir aprovar o New Deal. Lyndon Johnson convenceu o Sul segregacionista a apoiar grande parte de seus programas da Grande Sociedade.

Bill Clinton teve de governar durante a maior parte de seu mandato com um Congresso controlado pelos republicanos. E, quando Barack Obama teve maioria no Congresso, ele escolheu priorizar assistência de saúde universal em detrimento de muitas outras questões sociais, incluindo casamento entre pessoas do mesmo sexo.

CONCESSÕES. Às vezes, fazer concessões pode levar a desfechos melhores. Por exemplo, o projeto de lei sobre imigração era um plano melhor do que qualquer dos partidos poderia ter aprovado independentemente, porque ambos os lados possuíam preocupações legítimas e argumentos válidos que foram representados.

Alguns dos argumentos de Manchin no passado, de maneira similar, foram críveis. Ele argumentou, por exemplo, contra fazer os pacotes parecerem baratos, prevendo vários programas, mas os financiando apenas por um ano, na esperança de que eles sejam estendidos anualmente.

Sobre o meio ambiente, a visão dele de que não devemos parar de usar combustíveis fósseis antes de termos tecnologias verdes suficientes e em escala para substituí-los pode até servir a interesses egoístas do senador da Virgínia Ocidental, mas também resulta de uma leitura precisa do momento que vivemos atualmente. REVIRAVOLTA. Mais importante, se lembre, por favor, que Manchin representa um Estado em que Trump venceu por cerca de 40 pontos porcentuais em 2020. A surpresa é Manchin estar disposto a chegar até onde já chegou até agora. Pense nele como um teste decisivo.

Se os democratas conseguem manter Manchin do seu lado, por definição, eles estão construindo um grande guarda-chuva, com capacidade de abrigar a maioria dos americanos.

29 de julho de 2022

OS VENTOS ESTÃO MUDANDO NA AMÉRICA LATINA’!

(Ilan Goldfajn – ex-presidente do BC e diretor do FMI – O Estado de S. Paulo, 29) Depois de o Fundo Monetário Internacional (FMI) elevar a projeção de crescimento da América Latina para este ano de 2,5% para 3%, o diretor do órgão para o Hemisfério Ocidental, Ilan Goldfajn, afirmou que a tendência é de desaceleração a partir deste segundo semestre. “A percepção é de que os ventos estão mudando de direção. Vamos ter aperto das condições internacionais, com os Estados Unidos subindo a taxa de juros. Isso significa que o fluxo de capital diminui para a região e que o dólar fica mais forte.”

O ex-presidente do Banco Central (BC) do Brasil disse que a inflação – o “grande problema” do mundo hoje – deve demorar para cair. Questionado sobre o aumento dos gastos públicos no País, que podem pressionar a inflação ainda mais, Goldfajn afirmou que “a questão fiscal tem de contribuir para este momento que estamos vivendo” e destacou que o BC está trabalhando para que o Brasil enfrente os “ventos contrários”. Confira, a seguir, trechos da entrevista.

Apesar da deterioração financeira global, o FMI está com uma projeção melhor de crescimento econômico para a região agora, de 3%, do que em janeiro, quando era de 2,4%. O que está por trás dessa mudança?

Observamos que a recuperação econômica de 2021, que foi forte na região, continuou no primeiro semestre de 2022. Temos países em que o turismo voltou. Temos países que dependem das forças globais, e os EUA e outros países continuaram crescendo. Tivemos um período, no primeiro semestre, em que as commodities estavam mais altas. Isso também contribuiu. Agora, temos de separar a tendência do começo do ano e o que a gente percebe daqui para frente. A percepção é de que os ventos estão mudando de direção. Vamos ter aperto das condições internacionais, com os Estados Unidos subindo a taxa de juros. Isso significa que o fluxo de capital diminui para a região e que o dólar fica mais forte. Temos uma revisão de crescimento para os EUA para 1% em 2023 (antes, a projeção era de 1,7%). Esse crescimento dos EUA menor, a China e a Europa também crescendo menos, significa que a região deve, daqui para frente, ter uma desaceleração. Por isso, houve uma revisão da projeção de crescimento para o ano que vem (de 2,5%) para 2%.

Devemos esperar instabilidade política e social na América Latina como consequência da inflação?

Inflação é o grande problema global, não só do Brasil ou da região. Você vê as altas taxas de inflação nos EUA e na Europa. Até mesmo o Japão, que tinha sempre o problema de pouca inflação, está começando a ter mais inflação. O aperto das condições monetárias deve levar à desaceleração. Nesse contexto, a região, até por sua história, teve atuação relativamente mais rápida do que a dos países avançados. O Fed (Federal Reserve, o Banco Central dos EUA) está subindo a taxa de juros neste ano, quando a maioria dos BCs da região, inclusive o do Brasil, subiu antes. Não significa que a inflação esteja resolvida. Significa que, em termos de credibilidade, a reação ocorreu. Os BCs estão tentando reagir, e há uma percepção de que, ao menos em perspectivas de longo prazo, eles têm sido relativamente bem-sucedidos. Não estamos vendo as expectativas completamente desancoradas. Vemos expectativas mais altas agora e nos próximos dois ou três anos. É o efeito do choque. Vai demorar para voltar, mas os BCs estão reagindo. Acho que a institucionalidade nos últimos anos, os BCs autônomos, os regimes de meta de inflação e a ideia de que inflação é um bem público, que tem de ser cuidado, ajudaram – aí houve essa reação. Agora, a política monetária e a do governo têm de continuar.

Nos momentos em que o Fed eleva juros, crises graves ocorrem em países da região. Vocês veem esse risco?

Toda vez que há aperto de condições monetárias, há uma consequência. A consequência clássica é a reversão dos fluxos de capitais (em direção aos países avançados), o que já está ocorrendo. Segundo, o dólar fica mais forte. Isso leva a um custo interno maior. As taxas de juros domésticas sobem, e as moedas se depreciam, o que pressiona a inflação. Essa combinação leva a mais aperto monetário dentro dos países. Aí a desaceleração mundial acaba se transformando também numa desaceleração local. Estamos reduzindo a previsão de crescimento para a região porque vemos esse desenrolar.

Como fica o Brasil nesse cenário?

O Brasil se encaixa como outros países da região. Quando elevamos a projeção para este ano, o Brasil se encaixa nisso. Mas o País também vai enfrentar um cenário global mais difícil: taxas de juros globais mais altas e dólar mais forte, o que significa pressão maior sobre a taxa de câmbio, em um ambiente em que provavelmente vai ter uma desaceleração de crescimento. As commodities, que foram um fator mitigador no choque anterior, podem não ter esse efeito agora. Isso gera desafios para o Brasil e para a região.

Qual será o maior desafio para o próximo ano no Brasil?

É o mesmo desafio global. Vamos ter um 2023 com crescimento dos EUA e do resto do mundo bem menor do que em 2022. Em compensação, a região podia se colocar – e acho que está fazendo isso – como parte da solução. Se o mundo está precisando de mais alimento e de energia verde, a região pode se colocar como uma grande vendedora. Ao mesmo tempo que temos um desafio conjuntural, que é o desafio desse aperto das condições monetárias e da desaceleração da economia global, temos oportunidades.

26 de julho de 2022

OS PATRONOS DA INDEPENDÊNCIA!

(João Luiz Sampaio – O Estado de S. Paulo, 24) O momento não comporta mais delongas ou condescendências. Com essas palavras, José Bonifácio de Andrada e Silva escrevia no dia 1.º de setembro de 1822 a d. Pedro. “Fique”, segue o texto, exortando o príncipe regente a não retornar a Portugal. “E, se não ficar, correrão rios de sangue nesta grande e nobre terra.”

A carta chegou às mãos de d. Pedro em 7 de setembro, mesmo dia em que mais tarde, às margens do Ipiranga, ele declararia a independência. Ele se tornaria, então, d. Pedro I, imperador do Brasil. E o herói mais vistoso do movimento que teve Bonifácio como principal teórico e artífice.

“A deles era uma relação de confiança e de convergência de ideias”, diz a historiadora Miriam Dolhnikoff, biógrafa de Bonifácio. Mas não uma relação fácil. “Eles tinham personalidades muito fortes, a diferença de idade era grande. Bonifácio podia ser autoritário e d. Pedro, instável, temperamental”, lembra a historiadora Isabel Lustosa, autora de biografia do imperador.

CIÊNCIA E RITOS.

Bonifácio e d. Pedro tiveram formações bastante diferentes. Bonifácio nasceu em Santos em junho de 1763, mas logo seguiu para a Europa. Em Portugal, graduou-se em Filosofia Natural e Direito Civil na Universidade de Coimbra, na qual deu aulas de geognosia (estudo da composição das rochas) e metalurgia.

A serviço do governo português, viajou pela Europa pesquisando sobre mineralogia e foi nomeado em 1802, pelo príncipe regente d. João, intendente-geral das Minas e Metais. “Bonifácio se formou no início do liberalismo e via o cientista como alguém que deve colocar o seu conhecimento a favor de um projeto de modernização, alguém capaz de influenciar políticas de Estado”, conta Dolhnikoff. “Ele ocupou cargos públicos com objetivos pragmáticos, como pesquisar sobre a produção de ferro ou a exploração de minas.”

Bonifácio lutou como comandante contra os invasores franceses, em 1807. E, em 1819, após se aposentar na universidade, começou a pensar em um retorno ao Brasil, para “viver e morrer como simples roceiro” em seu sítio em Santos.

A essa altura, d. Pedro havia acabado de celebrar seu casamento com Leopoldina, garantindo assim a aliança entre Portugal e Áustria e mantendo o reino próximo dos países que haviam derrotado Napoleão – de quem a corte portuguesa fugira em 1808, mudando-se para o Brasil.

Com d. João e Carlota Joaquina, seus pais, d. Pedro chegou à colônia com 9 anos. Biógrafos dão conta de uma infância e adolescência difíceis, com pouco interesse pelos estudos, convulsões causadas pela epilepsia e uma relação hesitante com o pai. “D. Pedro cresceu no Rio de Janeiro, não era um homem inculto, mas gostava de andar pelas ruas, tinha certo desprezo pelos ritos oficiais da monarquia”, lembra Lustosa.

A proximidade com as questões de Estado surgiu no início dos anos 1820. Em abril de 1821, a Revolução Liberal do Porto fez com que d. João VI retornasse a Portugal, deixando d. Pedro no Brasil como príncipe regente. “É só então que ele vai aprender na marra, no dia a dia mesmo, o que significava uma atuação política”, acredita o historiador Paulo Rezzutti, autor do recém-lançado Independência – A Construção do Brasil: 1500-1825. E é nesse momento que as trajetórias do príncipe e de José Bonifácio vão se cruzar de modo indissociável – ao menos de início.

FICO I E FICO II.

A Revolução do Porto teve consequências diretas no Brasil. Se o discurso por lá era liberal, na prática, no que se referia ao País, o movimento só reforçava o espírito colonialista, com a crença de que a reestruturação econômica de Portugal se daria com a subjugação completa da colônia. Entre 1820 e 1821, tentou-se proibir que ela negociasse com qualquer outro país além de Portugal (o que significava um baque para agricultores que mantinham relações comerciais com a Inglaterra). A metrópole chamou de volta as repartições instaladas no Brasil. E novas tropas foram enviadas ao País.

Bonifácio a essa altura já havia desistido da breve vida pacata em Santos, envolvendose com a política nacional. Em 1821, tornou-se vice-presidente da Junta Governativa de São Paulo. E esteve ao lado do príncipe regente quando nova ordem chegou de Portugal: d. Pedro deveria voltar à Europa. Enquanto grupos defendiam o retorno do príncipe e o respeito às decisões tomadas pela corte – ou, então, a implementação de um improvável modelo republicano –, Bonifácio pregava a instalação de um regime monárquico constitucional.

Ao lado da princesa Leopoldina, ele foi fundamental no processo de convencimento que levaria à decisão do regente de ficar no País, tomada no dia 9 de janeiro de 1822, data que ficou conhecida como o Dia do Fico. E d. Pedro fez dele o primeiro brasileiro a ocupar um posto de ministro de Estado, na importante pasta dos Negócios do Reino, Justiça e Negócios Estrangeiros.

Os dois não concordaram com o passo seguinte: a convocação de eleições e de uma assembleia constituinte ainda em 1822. Mas ela aconteceu e teve um significado concreto: o afastamento cada vez mais iminente entre metrópole e colônia. Qualquer possibilidade, anteriormente aventada pelo próprio Bonifácio, de negociação com Portugal, esvaziou-se.

Em agosto, d. Pedro determinou que qualquer nova tropa enviada por Portugal seria considerada inimiga. E partiu para viagem a São Paulo. Enquanto isso, a corte enviou documentos ao Brasil determinando mais uma vez o seu retorno imediato e revogando os decretos do príncipe.

Leopoldina, que ficara no Rio como regente durante a viagem, e Bonifácio enviaram a ele cartas contando do acontecido, recebidas pouco antes da declaração da independência – os originais se perderam, mas há transcrições sobre as quais trabalham os historiadores.

“Pedro, o Brasil está como um vulcão. As Cortes Portuguesas ordenam vossa partida imediata, ameaçam-vos, humilham-vos. (…) Meu coração de mulher e de esposa prevê desgraças se partirmos agora para Lisboa”, escreveu Leopoldina. “O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio, ele fará a sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece. Pedro, o momento é o mais importante de vossa vida”, completa. A carta de Bonifácio, por sua vez, insistia na urgência do momento: a revolução estava preparada.

PROJETOS.

“José Bonifácio tinha uma ideia de nação bem definida. Em seu período em Portugal, ele sentiu que não conseguiu realizar tudo o que imaginava e culpou a burocracia e a ignorância. Agora, era como se a independência fosse uma nova oportunidade, de caráter ainda mais político, de colocar em prática um projeto. E de estar à frente dele”, diz Dolhnikoff.

Entre as propostas de Bonifácio estavam o fim da escravidão, a mudança na forma de apropriação da terra e a organização do Estado, sem a qual, acreditava, não poderia existir uma nação de fato moderna.

“Era um projeto reformista, que levava adiante as ideias do modelo norte-americano, já colocando em pauta a questão do negro e do indígena, por exemplo”, explica Rezzutti. “Se Bonifácio é o artífice da independência e de uma nova ideia de país, d. Pedro I será capaz de congregar como líder esse movimento.”

Para Isabel Lustosa, não se pode menosprezar o papel de d. Pedro I nesse processo. “Bonifácio imaginou e ele levou o projeto adiante. D. Pedro já entendia que o Estado precisava ser organizado em torno de uma Constituição capaz de manter a integridade nacional. Era um príncipe do antigo regime, mas que fez um movimento em direção ao constitucionalismo.”

A questão da integridade seria central após a independência – e uma que preocupou Bonifácio em especial. Em 1822, 1823 e 1824, foram debeladas revoluções no Pará, em Pernambuco, na Bahia e outras províncias, que resolveram se posicionar a favor de Portugal. “D. Pedro I vai demonstrar nesses episódios enorme força e determinação, mas precisamos lembrar também que esse projeto de unificação territorial era autoritário e se deu por meio da violência”, explica Lustosa.

Bonifácio não participou de todo o processo: ele e d. Pedro I se desentenderam em 1823, quando se formou a Assembleia Constituinte responsável por criar uma Constituição.

“A relação entre os dois passou a enfrentar problemas quando diferentes forças começaram a se impor no jogo político. Tanto Bonifácio quanto d. Pedro I acreditavam que o poder executivo precisava ser forte, enquanto outros grupos que participaram da constituinte preferiam dar ao parlamento o maior peso. Esses grupos eventualmente conseguiram afastar o imperador da presença constante de seu ministro. E não por acaso. Afastar Bonifácio era uma maneira de afastar também a ameaça das reformas radicais que ele pregava”, observa Dolhnikoff.

Ainda em 1823, d. Pedro fechou a constituinte e começou a preparar, com o apoio dos militares e de alguns deputados, uma Constituição que seria promulgada em 1824. Bonifácio foi preso e mandado para o exílio na Europa. De lá, retornaria apenas em 1829. Retirou-se para a Ilha de Paquetá, até que, entre 1831 e 1832, serviu como deputado pela Bahia.

Também em 1831, a relação dos dois viveu um novo episódio curioso, como diz Dolhnikoff: foi quando d. Pedro I chamou Bonifácio para ser tutor de seus filhos. “Bonifácio foi muito duro em suas críticas ao imperador, a quem xingou e desprezou em textos na imprensa. E, em troca, foi exilado. Ou seja, havia entre os dois enorme antagonismo. Então, como saber o que motivou esse convite? A hipótese que levanto é a de que Bonifácio também era inimigo da ala que, em 1831, forçaria a abdicação. E d. Pedro I não queria que a educação de seus filhos ficasse nas mãos desse grupo.”

Isabel Lustosa vê a questão por outro ângulo. “D. Pedro foi figura profundamente contraditória. Era um homem violento, mesquinho, pouco gentil no trato, traía a esposa. Mas também entendia que um rei não valeria mais só por si mesmo, preocupação que influenciou na educação dos filhos”, reflete. E Rezzutti completa: “Nas cartas dele para os filhos, mesmo os que teve fora do casamento, o imperador insistia muito na questão da educação. Havia acabado a época em que o lugar que se ocupa é determinado só por privilégios. E ele talvez soubesse que Bonifácio era o homem mais bem preparado para orientar seus filhos”.

18 de julho de 2022

JOSÉ BONIFÁCIO QUERIA CIVILIZAR ELITE BRANCA E CRIAR NAÇÃO MESTIÇA!

(Miriam Dolhnikoff, professora do Departamento de História da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Folha de SP, 14) Súdito do império português nascido em sua porção americana, José Bonifácio de Andrada e Silva viveu em um mundo em transformação que abria diferentes possibilidades para conceber e implementar reformas políticas e sociais. Não queria, a princípio, a independência. Defendia um império luso-brasileiro renovado por mudanças estruturais, no reino e na colônia, que o conduzissem para o que se afigurava ser uma nova era.

Nasceu em Santos, na capitania de São Paulo, em 1763, e passou a maior parte da sua vida adulta na Europa. Como muitos filhos da elite colonial, embarcou para Portugal aos 20 anos para estudar na Universidade de Coimbra, mas, ao contrário da maioria, só retornou ao Brasil com 56 anos.

Cursou a Faculdade de Direito, como era usual entre os jovens vindos da América, e a Faculdade de Filosofia, que incluía o estudo das ciências naturais. Especializou-se em mineralogia, campo que incorporava geologia, química e metalurgia, atividades essenciais no contexto do desenvolvimento da indústria da época.

Formado na Ilustração, acreditava no poder da razão e do conhecimento científico para moldar os homens e seu meio. Por isso, ao seu ver, o cientista não poderia ficar preso em seu gabinete, envolto em livros e absorto em teorias, mas deveria se dedicar à resolução dos problemas que afligiam a sociedade e obstruíam o progresso material.

José Bonifácio fazia parte do grupo de letrados portugueses reunidos na Academia das Ciências de Lisboa que, sob a liderança de dom Rodrigo de Souza Coutinho, ministro de dom João, se empenhou em desenhar políticas para a modernização da economia.

A partir de 1801, dez anos depois de uma viagem de estudos por vários países europeus, recebeu de dom Rodrigo a incumbência de ocupar diversos cargos públicos, de modo que o mineralogista pudesse converter seu saber em políticas concretas. Procurou dinamizar a exploração de carvão, a fundição de ferro e outras atividades que estimulassem a manufatura. Foi também responsável por criar a cadeira de metalurgia na Universidade de Coimbra.

Sua vida seria alterada com a invasão de Portugal pela França em 1807, resultado da guerra entre franceses e ingleses, dos quais Portugal era aliado. A Corte fugiu para o Brasil, e Bonifácio permaneceu no reino para lutar contra os invasores.

Vencidos os franceses em 1810, demorou-se ainda alguns anos em Lisboa. Porém, expressava profundo desgosto e desilusão por ver seus esforços, no exercício dos cargos que ocupava, frustrados por seguidos entraves burocráticos. Era a hora de se aposentar e voltar à terra natal.

Encontrou um Brasil diferente quando chegou em 1819. Com a vinda da Corte, o Rio de Janeiro foi elevado à capital do império lusitano e o Brasil não era mais colônia —adquirira o estatuto de reino, o mesmo de Portugal. A intenção de Bonifácio era se retirar da vida pública. No entanto, em 1820, a revolução constitucionalista do Porto o impeliu para a política.

Os revoltosos exigiam a transferência da Coroa para Portugal e a instauração de uma monarquia constitucional. Com esse fim, convocaram as Cortes, assembleia que deveria escrever a Constituição do novo regime. As províncias da América elegeram seus deputados. O liberalismo unia os portugueses dos dois lados do Atlântico e inaugurava um novo tempo.

Bonifácio participou desses acontecimentos em São Paulo. Não se candidatou a deputado, mas escreveu uma espécie de programa para orientar os representantes paulistas na sua atuação nas Cortes. Nele, defendia o império luso-americano.

O Brasil permaneceria subordinado a Lisboa, mas contaria com um governo autônomo para tomar as decisões referentes à América. Sua direção caberia ao herdeiro do trono, dom Pedro, tornado príncipe regente depois que o rei dom João 6º obedeceu às ordens dos rebeldes vitoriosos e voltou a Portugal.

O cenário, contudo, foi de disputa. Os portugueses do reino não aceitavam a autonomia pretendida pelos brasileiros. Insistiam no retorno de dom Pedro a Lisboa e no desmonte das instituições instaladas no Rio de Janeiro quando para lá se transferiu a Coroa lusitana.

Em reação, setores da elite luso-brasileira, entre eles Bonifácio, se articularam em um movimento que reivindicava a permanência do príncipe, estabelecendo com ele uma aliança em nome de objetivos comuns: impedir que a América portuguesa seguisse o exemplo de seus vizinhos que optaram pela independência e assegurar sua unidade diante do perigo de fragmentação territorial.

Para Bonifácio, isso significava ainda garantir as condições para a adoção das reformas que defendia. Dom Pedro permaneceu no Rio de Janeiro e, em janeiro de 1822, nomeou Bonifácio ministro do Reino e Estrangeiros.

Diante da intransigência das Cortes, dom Pedro e Bonifácio caminharam juntos para a Independência, que passou a ser uma alternativa concreta em agosto daquele ano. Ele estava no centro das articulações que levaram à ruptura com a metrópole, atuando para que todo o território da América portuguesa fosse integrado em um novo país, o que incluiu o envio de tropas para províncias que resistiam a aderir ao Rio de Janeiro.

A Independência trazia consigo o desafio de construir um Estado e uma nação. Não havia, entretanto, consenso entre aqueles que estavam à frente desse processo sobre o perfil das instituições a serem organizadas, do país a ser constituído, do tipo de sociedade que deveria prevalecer.

Concordavam com a adoção de um regime liberal, com separação entre os Poderes, eleição de representantes para o Parlamento, súditos que se transformariam em cidadãos portadores de direitos individuais e políticos. Como, no entanto, materializar esse regime em uma sociedade escravista e marcada por uma profunda hierarquia social?

Bonifácio acreditava ter a resposta com seu projeto nacional, uma renovação profunda a ser conduzida pelo governo com o objetivo de civilizar uma população que, para ele, estava imersa na barbárie. Ele pretendeu amalgamar os metais de que dispunha em seu laboratório social para obter a têmpera de uma nação europeizada.

A natureza e a história forneceriam os elementos necessários, bastando os instrumentos da razão e do saber, postos a serviço do poder forjador do Estado, para sua transmutação em metal nobre. O Estado, em sua visão, seria o agente que, de cima para baixo, irradiaria essas mudanças. Por essa razão, a monarquia constitucional que defendia era altamente centralizada, com um Executivo forte e capaz de implementar as reformas que tornariam o país viável.

Não só o povo deveria ser civilizado antes de poder ser senhor de si, mas também a elite branca, por viver da exploração de escravizados.

Dela, resultava a violência, o ócio e o isolamento que marcavam o cotidiano dos grandes proprietários, incapacitados, portanto, para o exercício da cidadania e do compromisso com o bem comum. Em razão da escravidão, aferravam-se ainda a práticas agrícolas tradicionais, com a devastação das matas que empobrecia os recursos naturais, e resistiam à modernização das técnicas utilizadas na agricultura.

As medidas que deveriam ser adotadas eram radicais: abolir a escravidão, integrar o indígena, disseminar a educação e promover a mestiçagem. Todas visavam criar um povo homogêneo, a única forma de gerar um sentimento nacional e a aptidão para a cidadania.

Por meio da mestiçagem, surgiria uma nova raça com um repertório comum, moldado pela educação, meio para que a massa miscigenada adquirisse os valores, os costumes e os hábitos dos povos cultos. Os brancos teriam contribuição fundamental nesse projeto, ao inocular o sangue europeu na mistura que também seria cultural.

O pressuposto de Bonifácio era que todos os homens tinham capacidade intrínseca para alcançar o estágio superior que idealizava, inclusive os negros e os indígenas, mas só se tivessem condições de vida que propiciassem o desenvolvimento de suas potencialidades.

Por isso, era imperativo emancipar os negros e integrar os indígenas “selvagens”. Os primeiros, em razão da escravidão, eram refratários a uma civilização da qual só conheciam o trabalho excessivo e o açoite. O negro africano era, assim, um bárbaro em terras brasileiras, não por sua natureza, mas por ser escravo. Era a escravidão que o barbarizava, não sua origem, cor ou raça.

Além de empecilho para o exercício pleno da cidadania por negros e brancos, a escravidão ainda representava um permanente perigo para a manutenção da ordem. Bonifácio alertava para o risco de manter uma parcela da população em situação de inimiga interna, já que escravizada. Em vez de inimigos, seriam alçados a cidadãos, reconhecendo, dessa forma, o Estado e o pertencimento à nação brasileira.

A principal beneficiária seria, afinal, a própria aristocracia dirigente. No entanto, não era suficiente libertar os escravos: era preciso que o governo tomasse para si a tarefa de integrá-los à sociedade, fornecendo-lhes terras, o que lhes proveria meios de subsistência.

Nenhum bem resultaria se os negros fossem simplesmente abandonados à própria sorte. Na visão de Bonifácio, a profunda hierarquia social seria preservada dessa forma, porque educação e meios de subsistência seriam distribuídos na medida certa para converter ex-escravizados em trabalhadores disciplinados.

Bonifácio era uma exceção no seio do grupo dirigente, e suas convicções reformistas atraíram uma oposição feroz a ele. Em julho de 1823, foi demitido do ministério em função das desavenças com aqueles que disputavam o poder e o programa de nação.

Assumiu, então, sua cadeira de deputado na Assembleia Constituinte, que se reunira em março de 1823 para escrever a Constituição brasileira, e apresentou um projeto de lei, propondo o fim do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão. Enquanto a emancipação não ocorria, caberia ao governo mediar a relação entre senhores e escravos, regulando-a de modo a retirar do primeiro o pleno arbítrio sobre a vida de seus cativos. Essa mediação, por si só, já seria uma novidade.

Os artigos da lei que apresentou estipulavam normas para reger o trabalho dos negros então escravizados, com restrições à exploração de menores e mulheres, determinação da jornada de trabalho e previsão de fornecimento de alimentação e vestuários adequados pelos senhores.

Além disso, Bonifácio prescrevia medidas paliativas, para diminuir o risco de revoltas e preparar os escravizados para serem livros no futuro, e que ficaria a cargo do poder público, não mais dos senhores, o julgamento e a punição de infratores.

Porém, antes que o projeto entrasse em discussão e que a Constituição fosse promulgada, dom Pedro fechou a Constituinte, em novembro de 1823. Bonifácio foi condenado ao exílio na França, onde amargou sua derrota.

Para ele, haviam sido derrotados tanto o regime liberal, com a outorga de uma Constituição pelo imperador em 1824, quanto seu projeto nacional, com a continuidade da ordem escravista.

De volta ao Brasil anos depois, Bonifácio obteve certo protagonismo ao ser nomeado tutor de dom Pedro 2º, depois da abdicação do pai, em 1831. Mais uma vez, sofreu forte oposição de políticos que não concebiam que o jovem imperador fosse formado pelas ideias reformistas de Bonifácio. Destituído da tutoria em dezembro de 1833, foi colocado em prisão domiciliar em Paquetá e morreu em 1838.

A maior ilusão de Bonifácio foi, talvez, a volúpia voluntarista que o fez acreditar que o homem poderia escrever o futuro segundo exclusivamente sua vontade. Ele sabia, por outro lado, que não podia prescindir do apoio daqueles que compartilhassem sua visão ilustrada e tentou convencer a elite brasileira do que seriam seus reais interesses: aceitar o fim da escravidão e integrar os negros à sociedade para garantir a ordem, tendo na base da hierarquia social uma população homogênea e devidamente instruída.

Bonifácio falava aos grupos dominantes e só poderia ter sido bem-sucedido se contasse com a adesão de seus pares, mas encontrou uma forte resistência da elite, que não estava disposta a pagar o preço das reformas que supostamente a beneficiariam.

A alternativa que restava era inconcebível para um membro da elite branca brasileira do século 19: a mobilização de parcelas da população excluídas do poder. Ele acreditou ser possível transformações de fundo, econômicas e sociais, por meio de um projeto político que não era capaz de incorporar como agentes efetivos os diferentes setores de uma população heterogênea. Acabou derrotado.

15 de julho de 2022

LEI DE ORÇAMENTO TRAVA ANTECIPAÇÃO DE ELEIÇÃO!

(The Washington Post/O Estado de S. Paulo, 15) A Itália teve 67 governos desde a 2.ª Guerra, mas nunca realizou uma eleição durante o verão (no Hemisfério Norte). E há uma razão muito específica para isso. Mesmo que o governo do premiê Mario Draghi entre em colapso, é muito improvável que uma votação antecipada ocorra antes do fim de setembro (outono).

A razão se deve principalmente às etapas estabelecidas na Constituição italiana para formar um governo e à necessidade de ter um novo orçamento a cada ano, em meados do outono. Isso significa que, se uma eleição ocorresse antes disso, não haveria tempo suficiente para formar um governo estável, negociar e aprovar um orçamento no prazo.

Analistas do Goldman Sachs veem um risco baixo de eleições antecipadas e escreveram em uma nota recente que esperam que o atual governo continue até o primeiro semestre do próximo ano.

PRAZOS. O primeiro passo formal para convocar uma nova eleição é o presidente italiano, Sergio Mattarella, dissolver o Parlamento. Depois disso, deve-se esperar 45 dias para que os italianos sejam convocados às urnas.

Os mecanismos políticos italianos são notoriamente bizantinos e sujeitos a longos atrasos. Mas mesmo sob um cenário muito eficiente, uma votação não ocorreria até meados de setembro, no mínimo. Ainda assim, isso seria apenas o início de um longo processo para ter um novo governo com plenos poderes. Após a votação, um Parlamento recém-nomeado ainda precisaria consultar possíveis primeiros-ministros, e só depois disso iniciaria os trabalhos para uma nova lei orçamentária.

Se um processo de votação antecipada fosse acionado, Draghi ainda atuaria como uma espécie de zelador, mas seus poderes seriam limitados. Seria difícil elaborar um orçamento para 2023, que por lei precisa ser apresentado à União Europeia até meados de outubro.

“Eleições antecipadas são um resultado improvável”, disse Stefano Ceccanti, professor de direito constitucional da Universidade La Sapienza e legislador do Partido Democrata. “Draghi provavelmente permanecerá para preparar o terreno para a lei orçamentária, seguindo a pressão internacional para manter as contas econômicas sob controle.”

13 de julho de 2022

O BRICS NUMA NOVA ETAPA!

(Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior – O Estado de S. Paulo, 12) O Brics, grupo de países que inclui o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, reuniu-se em junho pela 14.ª vez, em nível presidencial, virtualmente, em Pequim. Precedido de reunião de chanceleres, o encontro buscou aumentar a parceria entre o grupo e atuar por uma nova era para o desenvolvimento global, com base em três pilares: governança global, economia e comércio e interação da sociedade civil.

O peso crescente das economias emergentes e em desenvolvimento encontrou no Brics uma representação que tenderá a se tornar, numa visão de médio e de longo prazos, cada vez mais visível no cenário internacional. Duas das três maiores economias do mundo (China e Índia), uma das duas maiores potências nucleares (Rússia) e um dos maiores produtores agrícolas globais (Brasil) fazem parte do grupo. O Brics, além de representar um fator de dinamismo econômico no cenário internacional, contribui para a geração de empregos e renda nos países-membros. Criado há 16 anos, o grupo, que não deve ser identificado como uma aliança política, tem contribuído para ampliar o conhecimento mútuo e as oportunidades de cooperação entre as respectivas economias, por meio de centenas de reuniões técnicas anuais.

O Brics passou a viver, desde fevereiro, um momento delicado pelo fato de um de seus membros estar envolvido num conflito militar de grande repercussão e alcance. Seria estranho se a crise não fosse tratada na reunião presidencial de Pequim, mas referência direta à guerra na Ucrânia foi evitada pelo Brasil, assim como pela Índia e pela África do Sul. Há uma referência direta ao conflito no comunicado final, notando que a situação na Ucrânia foi discutida, que foram lembradas as posições nacionais expressas nos fóruns apropriados – nomeadamente, o Conselho de Segurança da ONU e a Assembleia-geral das Nações Unidas – e que foram apoiadas as conversações entre a Rússia e a Ucrânia.

A China e a Rússia usaram a reunião de cúpula anual do Brics para criticar os países do Ocidente e as sanções aplicadas contra Moscou em razão da guerra na Ucrânia. O grupo deveria “assumir a responsabilidade” e trabalhar pela “igualdade e justiça” no mundo, disse o presidente chinês, Xi Jinping, em seu discurso de abertura. Ele apelou para que os países do Brics se oponham às sanções impostas pelo Ocidente. Xi já havia feito comentários semelhantes, pouco antes, no fórum empresarial do Brics, quando disse que as sanções eram “um bumerangue e uma espada de dois gumes” que afetavam todos os países do globo e advertiu contra a “expansão de alianças militares”, como vem ocorrendo com a Otan, com a inclusão da Suécia e da Finlândia.

O presidente russo, Vladimir Putin, por sua vez, culpou “ações impensadas e egoístas de certos países” pela crise econômica global e disse que “cooperação honesta e mutuamente benéfica” seria a única saída para essa crise. “Esta situação de crise que se configurou na economia global devido às ações impensadas e egoístas de certos Estados que, usando mecanismos financeiros, essencialmente transferem a culpa por seus próprios erros de política macroeconômica para o mundo inteiro”. O líder russo também afirmou que a autoridade e a influência do Brics em nível mundial estariam “aumentando constantemente” à medida que os paísesmembros aprofundavam sua cooperação e trabalhavam para “um sistema verdadeiramente multipolar de relações interestaduais”. No fórum empresarial do bloco, Putin havia ressaltado o aumento de parcerias comerciais e da exportação de petróleo russo para países do Brics.

Para o Brasil, segundo Bolsonaro, o Brics é um modelo de cooperação com ganhos para todos, inclusive para a comunidade internacional, e, por isso, as prioridades devem ser escolhidas com responsabilidade e transparência.

Embora enfatizando que o grupo não pretende lutar contra ou substituir as organizações multilaterais, no comunicado final, os países-membros consideram importante somar esforços para tornar as instituições multilaterais, políticas e econômicas, mais eficazes, transparentes e democráticas. Menciona-se de forma especial a reforma do

Conselho de Segurança da ONU, com vistas a torná-lo mais representativo, eficaz e eficiente, e para aumentar a representação dos países em desenvolvimento de maneira que possa responder adequadamente aos desafios globais. China e Rússia reiteraram a importância que atribuem ao status e ao papel do Brasil, da Índia e da África do Sul nos assuntos internacionais e apoiam sua aspiração de desempenhar um papel mais importante na ONU.

Por iniciativa da China, foi discutida a possibilidade de expansão do número de participantes. Sem contar com o apoio do Brasil e da Índia para o aumento de membros do grupo, os países decidiram continuar as discussões e esclarecer os princípios, critérios e procedimentos para o exame do processo de adesão. Tendo em vista as incertezas que cercam a evolução do Brics em razão da crise militar com a Rússia e seus possíveis desdobramentos, não parece oportuna agora a discussão sobre a expansão do número de seus membros.

O Brics não deverá se dividir nem desaparecer. A duração da guerra na Ucrânia e a evolução geopolítica global vão influir nas etapas futuras do grupo.

12 de julho de 2022

QUEM FOI HARRIET MARTINEAU, A POUCO CONHECIDA FUNDADORA DA SOCIOLOGIA!

(Folha de SP, 09) No começo dos anos 1980, quando cursava ciências sociais na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Celso Castro foi apresentado aos autores considerados fundamentais para quem quisesse se aventurar naquela disciplina. Não é difícil imaginar que todos eram homens brancos nascidos nos Estados Unidos ou na Europa.

Castro conheceu pensadores como o alemão Karl Marx (1818-1883), o francês Émile Durkheim (1858-1917) e o alemão Max Weber (1864-1920), apontados como pais fundadores daquela que viria a ser sua área de pesquisa.

Essa trinca, no entanto, nunca foi unânime. O francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) não teria lugar entre os pioneiros, já que seu volumoso “Da Democracia na América”, cujas duas partes saíram em 1835 e 1840, é um clássico da ciência política?

E o que dizer do também francês Auguste Comte (1798-1857), que lançou mão da palavra sociologia ainda em 1839 para designar uma nova ciência? Segundo ensinou na 47ª lição de seu “Curso de Filosofia Positiva”, à sociologia caberia analisar as leis fundamentais específicas aos fenômenos sociais.

Quase meio século depois, Durkheim afirmou em seu curso de ciências sociais que Comte tinha apenas empregado a palavra e indicado o propósito da sociologia, sem, contudo, ter criado de fato uma nova área do conhecimento.

A crer nessa linha de argumentação, o marco inaugural da sociologia poderia ser a publicação de “As Regras do Método Sociológico”, de 1895, livro no qual Durkheim defende que os fatos sociais devem ser tratados como coisas.

Essa foi a história que Celso Castro aprendeu, assim como os demais estudantes que vieram antes ou depois dele, em um ciclo que se retroalimenta: professores ensinam esses autores, alunos os estudam e, quando se tornam professores, voltam a indicá-los para seus próprios alunos.

Como uma serpente que morde o próprio rabo, ninguém tinha a boca livre para perguntar: onde estão as mulheres, onde estão as pessoas não brancas e os pensadores não ocidentais?

Talvez venha à mente a hipótese de que o mundo do século 19 era ainda mais excludente que o de hoje, de modo que apenas homens brancos ocidentais teriam condições materiais de se dedicar a uma carreira acadêmica e produzir conteúdo digno de nota. Opressão gerando mais opressão.

Essa explicação funciona para boa parte dos casos, mas não para todos. Quem duvidar pode tirar a prova com o livro “Além do Cânone: para Ampliar e Diversificar as Ciências Sociais”. Na obra, ele apresenta 16 pensadores e pensadoras que fogem ao estereótipo dessa tradição ocidental, muitos dos quais o próprio Castro desconhecia.

“Não tenho vergonha alguma de reconhecer isso. Foram meses intensos de descoberta e de aprendizado que me fizeram ver, 40 anos depois de ter iniciado o meu curso de graduação, a enorme dimensão da minha ignorância em relação às possibilidades que as ciências sociais podem nos oferecer como instrumento de conhecimento da realidade social”, diz.

“Em décadas recentes, ampliou-se a ‘descoberta’ e inclusão de autoras, de não brancos e não ocidentais, mas principalmente em disciplinas mais especializadas, de pós-graduação etc. O que não se ampliou até hoje foi o cânone”, afirma Castro, que é professor da FGV, onde dirige o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) e a Escola de Relações Internacionais.

Sua proposta é justamente essa: ampliar o cânone, não substituí-lo. Há bons motivos para que os clássicos sejam considerados clássicos, mas não há boa justificativa para que mulheres e negros, por exemplo, fiquem sempre alocados em nichos, como feminista, decolonial ou do Sul. Por que não poderiam pertencer à “grande tradição”?

“Acho necessário e importante inserir essas autoras e autores que estão no livro não para manter um ‘equilíbrio’, uma ‘cota’, ou por razões de afirmação identitária em relação ao cânone tradicional, mas sim porque são muito bons e porque nos ajudam a entender melhor a realidade social”, afirma Castro.

Seu livro, mais uma vez, serve de prova. Após a apresentação de cada um dos 16 pensadores, Castro inclui trechos de seus textos, boa parte dos quais inéditos no Brasil. Assim, o leitor pode julgar por conta própria o pioneirismo, o impacto e a qualidade de intelectuais que bem poderiam pleitear um lugar entre os pioneiros das ciências sociais.

Castro não está sozinho. A socióloga Fernanda H. C. Alcântara, professora da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), considera o apagamento de Martineau uma injustiça histórica.

“Não existe um motivo para que Martineau não tenha o seu reconhecimento como fundadora da sociologia. Ela não foi apenas mais uma pessoa que participou do processo. Em 1838, ela já falava da necessidade de sistematizar os estudos da ciência da sociedade e escreveu um livro a esse respeito”, diz.

A fim de divulgar a obra de Martineau e garantir o ingresso dela na agenda das ciências sociais no Brasil, Alcântara se dispôs a traduzir por conta própria alguns livros da pioneira britânica.

Em 2021, saiu “Como Observar: Morais e Costumes”, disponível para compra no blog da autora. Em julho deste ano, terá à mão o primeiro volume de “Sociedade na América”, que ela pretende publicar em quatro partes, em vez das duas originais, mantendo intervalo de três a quatro meses entre cada uma delas.

Alcântara afirma que Martineau teve elevado reconhecimento no século 19, mas depois, sem que fique nítido por qual motivo específico, ela passou a ser negligenciada.

“O processo de construção do cânone foi um movimento sobretudo de exclusão e de suposta criação de uma identidade para a nova ciência, que já nem era tão nova assim. Vários autores e autoras foram apagados da história da sociologia nesse processo”, diz a socióloga. “Embora façamos sempre essa associação entre o cânone e a fundação da sociologia, existe entre esses dois elementos ao menos meio século de diferença.”

Dentro dessas escolhas políticas para formação do cânone, não há de ser coincidência que a britânica tenha ficado de fora. “Trata-se de uma visão muito diferente quanto aos elementos que constituem a sociedade, com destaque para o fato de que Martineau não excluiu da análise as mulheres e os escravos. Suas contribuições consideram a possibilidade de objetividade, sem negligenciar todas as possíveis formas de interferência no processo de produção do conhecimento”, afirma Alcântara.

Celso Castro celebra o empenho de Alcântara em passar o trabalho de Martineau para o português. “É importantíssimo que sejam feitas mais traduções, pois de outro modo o acesso a estudantes de graduação ficará muito limitado”, diz.

“Espero que o ‘Além do Cânone’ ajude a formar cientistas sociais em uma perspectiva mais ampla, diversa e colorida que aquela que presidiu minha formação. E, mais importante, que desperte nos seus leitores o mesmo sentimento que tive: paixão pelo mundo, vasto mundo, das ciências sociais”, afirma Castro.

O seu livro de fato permite uma degustação bastante saborosa de outros pensadores em geral não considerados entre os clássicos. São intelectuais do Haiti e do México, da Índia e do Japão, do Irã, da Turquia e da antiga Rodésia do Sul; são homens e mulheres, brancos e não brancos.

Compõem um quadro muito mais abrangente e diversificado das ciências sociais e da sociedade que aquele no qual só aparecem os mesmos de sempre.

Dada a qualidade dos trechos selecionados em “Além do Cânone”, resta esperar que mais pesquisadores se proponham a traduzi-los para o português, de forma que possam ser apreciados não como aperitivo, mas como prato principal.

11 de julho de 2022

O CÍRCULO VICIOSO LATINO-AMERICANO!

(O Estado de S. Paulo, 08) O grupo The Economist produziu um dossiê sobre a América Latina. O tema rendeu uma matéria de capa na revista. O título não poderia ser mais eloquente: Como as democracias declinam – Estagnação econômica, frustração popular e polarização política estão reforçando umas às outras.

Há não muito tempo o futuro era promissor. O superciclo das commodities possibilitou novos programas sociais. A redução da desigualdade reforçava a redemocratização. Mas os governantes não empenharam seu capital político em modernizações estruturais (políticas, tributárias, administrativas) e desperdiçaram o capital físico que deveria ser investido nas engrenagens de um crescimento sustentável, como infraestrutura, educação, produtividade e diversificação econômica.

Se aquele círculo virtuoso era frágil, o atual círculo vicioso é forte. Uma década de estagnação acentuou a frustração, especialmente entre os jovens, com a falta de oportunidades. A ira popular se voltou não só contra os incumbentes políticos, mas contra a política. A esperança em salvacionistas autoritários cresce. Mas, além de serem tão ou mais ineficientes que seus pares moderados, eles dilapidam o Estado Democrático de Direito. Mesmo países que logravam um razoável desenvolvimento econômico e, em parte, social, como Chile, Peru ou Colômbia, foram tomados pela febre populista.

O Financial Times publicou um editorial com um título igualmente sugestivo: O tumulto político na América Latina durará até que suas economias sejam reformadas. Com efeito, a combinação de privilégios oligopolistas e protecionismo perpetua a baixa produtividade do setor privado e a falta de investimentos e inovação que são chave para a mistura tóxica de desigualdade e baixo crescimento – tornada explosiva pela violência política, criminal e social.

Mas, na esfera pública, o centro desmorona, a direita, em nome da “liberdade”, se aferra a regalias elitistas e a esquerda, em nome da “igualdade”, a manias utopistas e ultrarregulatórias (exacerbadas quase a ponto da caricatura, por exemplo, na Constituinte do Chile).

“A política está marcada não apenas pela polarização, mas também pela fragmentação e a extrema fraqueza dos partidos políticos, tornando difícil congregar maiorias governantes estáveis”, diagnostica a Economist. “Essa espiral descendente é acelerada pela influência maligna das redes sociais e pela importação de políticas identitárias do Norte.”

O Brasil é um caso exemplar do círculo vicioso latino-americano. Exasperados com a precariedade dos serviços públicos, a corrupção e a deterioração socioeconômica, os brasileiros elegeram o (supostamente) anti-establishment Jair Bolsonaro. Mas a sua mistura de autoritarismo político e indigência administrativa só piorou essas condições. Para sustentar seu mandato ele franqueou as cartas do Executivo aos fisiologistas do Congresso, e para renová-lo inflama sua ideologia reacionária e disruptiva. Resta pouca esperança quando o favorito às eleições, Lula da Silva, só tem a oferecer os mesmos hábitos e ideias retrógrados que gestaram as condições para a ascensão de Bolsonaro.

A armadilha do subdesenvolvimento latino-americano é tanto mais dramática porque não faltam recursos para desarmá-la. Afastada de conflitos geopolíticos graves, a região é rica em culturas multiétnicas e em alimentos, minérios e energia renovável que a colocam em uma posição-chave para tirar proveito de grandes tendências políticas e econômicas globais, como a disputa entre China e EUA ou a alta das commodities, e solucionar grandes desafios do século 21, como a segurança alimentar ou as mudanças climáticas.

“A tentação será ignorar o mal-estar econômico e político e simplesmente surfar no novo boom das commodities detonado pela guerra na Ucrânia. Isso seria um erro”, adverte a Economist. “Não há atalhos. Os latino-americanos precisam reconstruir suas democracias de baixo para cima. Se a região não redescobrir a vocação para a política como um serviço público e reaprender o hábito de forjar consensos, seu destino só piorará.”

08 de julho de 2022

ESQUERDA VOLVER?!

(Roberto Teixeira da Costa, conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais e do Conselho Empresarial da América Latina – Estado de S. Paulo, 07) Sem surpresa, ainda que por margem estreita, Gustavo Petro foi eleito presidente da Colômbia no segundo turno, em 19 de junho, e será o primeiro político de esquerda a governar o país. Em sua juventude, participou do extinto grupo guerrilheiro M-19, foi senador durante dois mandatos e prefeito de Bogotá. A Colômbia era vista como um dos últimos redutos conservadores de nossa região. Em suas primeiras declarações, Petro indicou que irá priorizar o problema da fome, já que 39% da população da Colômbia vive em situação de pobreza extrema.

A vice-presidente na chapa de Petro, Francia Márquez, é a primeira mulher negra a ser eleita no Poder Executivo da região.

Com a eleição de Petro, temos agora seis presidentes de esquerda na região.

Relembrando: López Obrador, no México; Gabriel Boric, no Chile; Pedro Castillo, no Peru; Luis Arce, na Bolívia; e Nicolás Maduro, na Venezuela. Mas eu também incluiria Alberto Fernández como sendo de esquerda, o presidente da Argentina que acaba de declarar apoio a Lula, fala em buscar uma política comum de atuação na região e passa por momento difícil, pois Cristina Kirchner continua tendo muita influência no governo. Caso Lula seja eleito, confirmando as pesquisas eleitorais para 2/10/2022, teremos oito presidentes de esquerda na região e um governo ditatorial na Venezuela.

No Equador, o presidente Guillermo Lasso, da direita, vem enfrentando violentas manifestações de grupos indígenas, que têm presença política relevante, contra a alta nos preços dos combustíveis, que, aliás, é uma constante mundo afora.

Assim, as eleições recentes indicam nova guinada para a esquerda, num movimento pendular, como vimos no passado?

Uma possível explicação para essa guinada seriam a pandemia, a guerra na Ucrânia e, mais recentemente, a inflação, que vieram a agravar os desníveis de renda e colocaram nossa região numa posição crítica e inaceitável. Assim, não me parece que seja um movimento simplesmente pendular, mas tenho dúvidas se os novos governantes conseguirão alterar o quadro descrito. Tentarão reformas mais agressivas para mitigar os efeitos perversos da desigualdade, mas terão de enfrentar Congressos divididos, sem um matiz ideológico claro. E, nesse contexto, registro a grande descrença nos políticos e, inclusive, no regime democrático, que é questionado.

Este quadro não é exclusivo de nossa região. A reeleição de Emmanuel Macron, na França, foi dificultada pela extrema-direita liderada por Marine Le Pen, que nas eleições parlamentares de 19 de junho conseguiu ampliar para 89 seus representantes (antes eram 8), e a frente de esquerda, liderada por Mélenchon, terá a segunda força na Câmara. Assim, Macron terá de fazer concessões para poder governar e cumprir seus projetos, entre eles a reforma da previdência, que continuará enfrentando grande resistência.

A maior democracia, os EUA, passa também por momentos difíceis, buscando recuperar-se do desastroso governo de Donald Trump e com Joe Biden constatando perda de popularidade. Fareed Zakaria, importante articulista do The Washington Post, em recente artigo, sob o título A intrigante impopularidade de Biden, aponta a inflação como fator predominante, com o consequente enfraquecimento da liderança de Biden em seu próprio partido. Os republicanos também não estão tornando sua vida nada fácil num quadro de altas taxas de juros e ameaça de recessão no médio prazo. Para surpresa de muitos, mesmo com o desgaste de Trump, que está sofrendo uma CPI que analisa a invasão ao Capitólio, existe um bolsão republicano que continua apoiando o ex-presidente.

Assim, os democratas nos EUA correm o risco de perder a maioria nas eleições de meio do ano (8 de novembro). Ficou muito difícil a aprovação de medidas apresentadas por Biden e ele corre o risco de não ser reeleito em 2024.

É nesse complexo cenário mundial que a democracia está sendo questionada, e quando teremos nossas eleições em 2 outubro. Precisamos, mais do que nunca, escolher um presidente que tenha o perfil de estadista capaz de implementar não só políticas internas para mitigar os efeitos da pobreza e da desigualdade social que assolam o País, mas, ao mesmo tempo, que dê a devida atenção à nossa política externa, para que estejamos em condições de reposicionar nosso país na nova geopolítica mundial. Certamente, contaremos com as consequências da guerra na Ucrânia e teremos de reparar os desgastes sofridos em anos recentes em nossas relações internacionais. É condição essencial para que o Brasil volte a ocupar uma posição condizente neste novo cenário, com o potencial que temos a oferecer. Infelizmente, nenhum dos atuais candidatos parece ter esse perfil.

Temos de admitir que a política externa não tem peso no julgamento dos eleitores e, consequentemente, nos programas dos candidatos, e a gravidade da política interna será mais relevante para quem for eleito, herdando uma situação fiscal que será de difícil solução no curto prazo.

Concluiria ser razoável imaginar que a predominância da esquerda em nossa região enfrentará dificuldades, não apenas na coordenação de suas políticas entre os diferentes países, mas também em como lidar com Congressos divididos.

07 de julho de 2022

RESSONÂNCIA DO MOVIMENTO PERMANECE NO PAÍS COMO SIMBÓLICA’!

(Boris Fausto, cientista político e historiador – O Estado de S. Paulo, 04) Com o livro A Revolução de 1930, o cientista político e historiador Boris Fausto provocou uma mudança nas análises sobre o tenentismo. Ele vê nos jovens militares um espírito que, “em grande linha, não era democrático”. “Era salvacionista. Propugnarão a manutenção da ditadura do Getúlio (Vargas).”

Que balanço o sr. faz dos impactos do tenentismo?

Foi um movimento que teve grande impacto na história da Primeira República. Foi um primeiro movimento armado de envergadura – houve outros, localizados – que rompe com a tradição de acomodação. O episódio do Forte de Copacabana, a revolta em São Paulo e a coluna Prestes-miguel Costa tiveram uma ressonância do País que permanece atualmente como simbólica. Mas o movimento teve limites. Nenhum tenente assumiu o comando do País.

Como ele atuou na luta política entre as oligarquias?

Após 1930, o grosso do tenentismo se acomoda no getulismo. A tendência, desde o início, é restritiva ao regime democrático. Eles querem reformar o País, acabar com o Brasil oligárquico, centralizar o poder. Era salvacionista. Propugnarão a manutenção da ditadura do Getúlio. Eles não queriam a Assembleia Constituinte, pois temiam a volta das oligarquias ao poder. Daí porque desejavam prolongar o governo provisório, que era uma ditadura.

Quem de fato os tenentes representavam?

Esta é uma chave da minha interpretação da Revolução de 1930 e do tenentismo. Ele não representava as classes médias. Hoje ninguém duvida disso. Ele era visto pelas classes médias urbanas com grande esperança. A coluna era simbólica da redenção do País. Mas era um movimento de militares, com ética e ótica militar e, embora não desvinculado das classes, deve ser investigado pelo que era, não como instrumento das classes médias.

06 de julho de 2022

POR QUE A INFLAÇÃO DEVE SEGUIR ACIMA DO NÍVEL PRÉ-PANDEMIA!

(O Estado de S. Paulo, 03) As más notícias a respeito da inflação continuam chegando. Nos países ricos ela está acima de 9% ao ano e não ficava tão alta desde a década de 1980 – e nunca houve tantas “surpresas com a inflação”, com dados maiores do que o previsto pelos economistas. Isso, por sua vez, está afetando fortemente a economia e os mercados financeiros. Os bancos centrais estão aumentando as taxas de juros e encerrando programas de compra de títulos, devastando as ações. Em muitos países, a confiança do consumidor está menor do que nos primeiros dias da pandemia de covid-19. Indicadores de todos os setores, desde a habitação até a produção industrial, sugerem que o crescimento econômico está desacelerando de forma acentuada.

O que acontecerá com os preços ao consumidor é uma das questões mais importantes para a economia global. Muitos analistas esperam que a inflação anual diminua em breve, em parte porque os preços das commodities devem cair na comparação ano a ano, após aumentos significativos em 2021. Em projeções econômicas mais recentes, o Federal Reserve, por exemplo, espera que a inflação anual nos EUA (medida pelo índice de despesas de consumo pessoal) caia de 5,2%, no final de 2022, para 2,6% até o final de 2023.

É perdoável não levar essas previsões tão a sério. Afinal, a maioria dos economistas não foi capaz de ver a onda inflacionária chegando e, depois, previu erroneamente que ela desapareceria depressa. A futura trajetória da inflação está, em grande parte, cercada de incertezas.

As preocupações com a inflação podem apontar para três outros indicadores que sugerem ser improvável o mundo rico retornar tão cedo ao padrão anterior à pandemia, de crescimento de preços baixo e estável: aumento salarial crescente e expectativas de inflação maior tanto de consumidores como de empresas. Se prolongados, juntos, poderiam contribuir para o que o Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), o banco central dos bancos centrais, descreveu em relatório de 26 de junho como um “ponto crítico”. Além disso, advertiu o BIS, “uma psicologia inflacionária” poderia se espalhar e se tornar “arraigada”.

INDEXAÇÃO. Há evidências crescentes de que os trabalhadores estão começando a negociar por salários mais altos. Isso poderia criar outra rodada de aumentos de preços conforme as empresas repassam as despesas extras. Uma pesquisa do Banco da Espanha sugere que metade dos acordos de negociação coletiva assinados para 2023 contém “cláusulas de indexação”, o que significa que os salários estão automaticamente vinculados à inflação, uma alta em comparação aos 20% antes da pandemia.

Na Alemanha, o sindicato IG Metall solicitou aumento salarial de 7% a 8% para quase 4 milhões de trabalhadores no setor de metais e de engenharia (provavelmente ele conseguirá cerca de metade disso). No Reino Unido, os trabalhadores ferroviários entraram em greve enquanto demandavam aumento de 7%, embora não esteja claro se vão alcançar o objetivo.

Tudo isso torna o crescimento salarial um tema ainda mais atual. Um índice que monitora o grupo de países do G-10, compilado pelo Goldman Sachs, já está subindo quase verticalmente. E os pisos salariais também estão subindo. A Holanda está propondo aumento do salário mínimo. A Alemanha aprovou lei aumentando seu mínimo em 20%. A agência de relações industriais da Austrália aumentou o piso salarial em 5,2%; mais que o dobro do aumento de 2021.

O crescimento salarial mais rápido reflete, em parte, as expectativas mais altas do público para futuros aumentos de preços – a segunda razão para se preocupar que a inflação possa se mostrar mais duradoura. Nos EUA, as expectativas de curto prazo estão aumentando depressa. Os canadenses dizem estar se preparando para uma inflação de 7% no próximo ano, o maior número entre qualquer país rico. Até mesmo no Japão, onde os preços raramente sofrem alterações, as crenças estão mudando. Um ano atrás, pesquisa do banco central japonês apontou que apenas 8% das pessoas acreditavam que os preços subiriam “significativamente” no próximo ano (os preços ao consumidor, de fato, aumentaram apenas 2,5% até abril). Agora, no entanto, 20% das pessoas supõem que isso vá acontecer.

VAREJO. O terceiro fator diz respeito às expectativas de inflação das empresas. No setor de varejo, elas estão em uma máxima histórica em um terço dos países da União Europeia. Pesquisa do Banco da Inglaterra sugere que os preços de roupas para as coleções de outono e inverno serão de 7% a 10% maiores que há um ano. O Fed de Dallas encontrou evidências preliminares de que os consumidores estão menos dispostos a tolerar aumentos. Um entrevistado do setor de aluguel e leasing reclamou que “está ficando difícil repassar os aumentos de preços de 20% a 30% dos fabricantes”. Mas isso apenas aponta para um nível mais baixo de inflação alta.

A grande esperança de uma inflação mais baixa está relacionada ao preço dos bens. Aumentos nos preços de carros, geladeiras e itens semelhantes, ligados em parte aos transtornos nas cadeias de suprimentos, motivaram o aumento inflacionário no ano passado. Agora há alguns indícios de mudança. O custo para enviar algo de Xangai para Los Angeles caiu 25% desde março. Nos últimos meses, diversos varejistas gastaram muito com estoques para manter suas prateleiras cheias. Vários agora estão reduzindo os preços para atualizar o estoque. Nos EUA, a produção de automóveis está finalmente melhorando.

Em teoria, a queda dos preços dos bens poderia ajudar a apagar as chamas inflacionárias no mundo rico, aliviando o custo de vida, dando aos bancos centrais espaço para respirar e estabilizando os mercados. Mas, com indicadores de preços futuros apontando para a direção contrária, as chances de isso acontecer aumentaram. Não se surpreenda se a inflação continuar feroz durante um tempo ainda.

05 de julho de 2022

HÁ UM SÉCULO, TENENTISMO DAVA INÍCIO À DERROCADA DA 1ª. REPÚBLICA!

(O Estado de S. Paulo, 04) O tenente Antônio de Siqueira Campos, de 24 anos, um dos responsáveis por preparar o Forte de Copacabana para o combate que se avizinhava, esperou um pouco depois que o canhão de 190 mm disparou contra a Ilha de Cotunduba, perto da entrada da Baía de Guanabara. Era 1h20 do dia 5 de julho de 1922, um ano tenso, marcado por uma sucessão de boatos entre os fardados de que “a ‘procissão’ (revolução) ia sair”. O estrondo na escuridão era um anúncio que ecoou pela cidade.

Na sala de bilhar do Palácio do Catete, prédio de estilo neoclássico encimado por sete harpias de bronze, o presidente Epitácio Pessoa, prevenido por agentes que vigiavam os conspiradores, tirou o relógio do bolso. Olhou e comentou: “Estão 20 minutos atrasados”. Começava a rebelião que um dia e meio depois seria debelada à baioneta, na praia abaixo da fortificação.

A reportagem do Estadão consultou os arquivos do Exército, documentos e jornais da época para reconstruir a revolta que inaugurou o tenentismo e abriu caminho para pôr abaixo a Primeira República. Naquela noite, o forte começou a atirar, mas a procissão não saiu. Ele atingiu de novo a ilha, e acertou a base do Forte do Vigia, no Leme, e o 3.º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha. Mas não houve salvas de outras guarnições avisando que também se revoltavam. A conspiração dos militares (e alguns civis) fora – ou estava sendo – desmontada pelo governo, com base na ação de “secretas” e infiltrados. O Catete se antecipara aos rebeldes, ocupava quartéis, prendia suspeitos.

Um levante articulado na Vila Militar, no 1.º Regimento de Infantaria, foi sufocado após tiroteio que resultou na morte do capitão Barbosa Monteiro. Os cadetes da Escola Militar de Realengo, rebelados, também fracassaram. Parecia que tudo dava errado para os rebeldes.

O levante no 1.º Batalhão de Engenharia foi sufocado, assim como na Escola de Sargentos. A Fortaleza de Santa Cruz, em vez de aderir, dispararia contra o Forte de Copacabana. Até o acaso parecia estar com Epitácio. A 1.ª Companhia Ferroviária, em Deodoro, não se movimentou. Seu comandante, o tenente Luiz Carlos Prestes, estava com tifo. Anos depois, confessou a frustração por não poder sublevar. Enfraquecido, não conseguiu ficar de pé e se fardar.

Poderoso
Com os fracassos e as desistências, restou só na capital, tentando derrubar a velha ordem, o Forte de Copacabana. Era unidade poderosa. Construído sobre um rochedo que avança pelo mar e inaugurado em 1914, ele tinha cúpulas giratórias e canhões 75, 190 e 305 mm, importados da alemã Krupp. Como rodavam, as armas podiam atingir alvos em terra e mar, em um raio de 20 quilômetros.

Naquela manhã, o forte tinha 300 homens rebelados. No comando estava o capitão Euclydes Hermes da Fonseca. Os revolucionários ergueram barricada no portão do quartel, eletrificaram redes de arame farpado, minaram o corpo da guarda. O governo isolou o bairro, um balneário de casas distante do centro. O Exército instalou baterias em morros próximos e deslocou tropas para o Túnel Novo e a Praça Serzedelo Correia. Montou uma Força de Ataque e mandou dois ultimatos aos revolucionários.

Ao longo do dia 5, os revolucionários acertaram alvos no centro e na zona sul com projéteis lançados por cima dos morros. Um dos pontos atingidos foi o Quartel General do Exército, onde morreram um sargento e dois soldados. Foram vítimas de um tiro corrigido, ironicamente, com a ajuda involuntária de Pandiá Calógeras, o ministro da Guerra. Ele telefonou para o Forte. Queria reclamar que uma casa na Rua Barão de São Félix tinha sido atingida por um petardo dos revolucionários. Em consequência, três pessoas – inclusive uma criança de dois anos – morreram sob os escombros.

O Forte corrigiu a mira e disparou de novo, atingindo a ala esquerda do QG. Acertou mais duas vezes, uma do lado oposto do prédio, outra no pátio. Depois, visou a Ilha das Cobras, o Forte do Vigia, o Túnel Novo. E acertou um tiro no navio São Paulo, da Marinha, que disparara contra os revoltosos.

Mas os revoltosos também eram bombardeados. Até por aviões. Os problemas do movimento iam além do cerco. O canhão de 305 mm fora sabotado. O governo cortara água e energia do quartel. Antes das 7h do dia 6, diante da perspectiva do ataque do governo, Euclydes liberou os subordinados que quisessem deixar o Forte. Mais de 250 homens aceitaram. Em roupas civis, pularam a barricada e se dispersaram.

Marcha
Ficaram no Forte 28 homens. Decidiu-se que o capitão Euclydes iria conversar com Calógeras, para negociar uma rendição “com honra”. Levaria uma pauta escrita por Siqueira Campos: garantia de vida para os revolucionários; baixa do Exército; passagens para a Europa. O capitão passou o comando a Siqueira Campos. Em seguida, saiu do quartel e pegou um táxi.

Foi preso. Siqueira reuniu os comandados. Decidiram abandonar o Forte para enfrentar os governistas. Houve então um ritual. Com uma navalha de barbear, o comandante cortou uma bandeira do Brasil em 28 pedaços. Distribuiu a maioria deles entre os presentes. Ficou com três: um para si, um para Euclydes e um para Newton Prado, que montava guarda na barricada. Alguns revoltosos usaram os fragmentos para escrever. Eram bilhetes póstumos: despediam-se de parentes e amigos.

Após 13h30, começaram a marcha pela Avenida Atlântica. A eles incorporou-se um civil, Octavio Correia, que ganhou um fuzil e um pedaço da bandeira – o reservado a Euclydes. Depois de uma parada no Hotel Inglez, onde beberam água, o grupo seguiu em frente, segundo depoimento de Siqueira Campos. O tenente disse que “oficiais e praças do 3.º Regimento” gritavam de longe que se rendessem, ao que os revoltosos respondiam que atirassem.

Outros depoimentos, de militares, relatam o encontro, na altura da Rua Barroso – atual Siqueira Campos – do grupo de rebeldes com os legalistas. Ali, o tenente governista Segadas Viana estava com um pelotão. O comandante do 2.º Batalhão do 3.ª Regimento de Infantaria, major Pedro Chrysol Fernandes Brasil se aproximou, mas os revolucionários diziam que iriam ao Catete, ameaçando-o. “Vocês estão cometendo um ato de loucura”, disse o oficial ao depor. Brasil afirmou ter insistido, mais de uma vez, para que os rebeldes se rendessem, garantindo suas vidas. Não foi obedecido, e a tensão crescia. O oficial legalista, então, deu a Segadas ordem de fogo.

Foi quando, segundo sua versão, os revolucionários se dividiram em dois grupos e atiraram. Primeiro de pé. Depois pularam para a praia. Siqueira viu os companheiros caírem feridos: Eduardo Gomes, Octávio Correia e Prado. Em seguida, foi a sua vez.

Começou então o ataque final com baionetas autorizado pelo general Tertuliano Potiguara e comandado por Brasil. Ferido, Siqueira contou no processo ter visto que Prado, deitado e ferido, atirava de revólver. “Levantem os que estão vivos!”, gritavam os legalistas. A revolução acabara. Siqueira e Gomes sobreviveram. Prado morreu seis dias depois. Correia, ferido no peito, não sobreviveu. Ao menos três praças morreram.

O mesmo aconteceu com o tenente Mário Carpenter. Com ele foi achado seu fragmento da bandeira. Trazia a mensagem que escrevera pouco antes. Ela está guardado em caixa envidraçada, no Forte de Copacabana – hoje um centro cultural ligado ao Exército. Diz, em letras desbotadas: “Forte de Copacabana – 7 de julho de 1922. Aos queridos pais ofereço um pedaço da nossa bandeira em defesa da qual resolvi dar o que podia… minha vida”.

Governo bombardeou São Paulo em 1924 e proibiu o ‘Estadão’
Em 5 de julho de 1924, São Paulo foi o palco de nova rebelião dos tenentes. O governo do Estado deixou a cidade, e os rebeldes ofereceram a direção civil do movimento a empresários, entre eles Julio Mesquita, que declinou. Com o passar dos dias, as dificuldades na cidade – bombardeada pelas tropas federais – aumentaram.

O presidente da Associação Comercial, Macedo Soares, propôs a criação de uma Guarda Municipal e uma Comissão de Abastecimento Público, formada pelo arcebispo d. Duarte Leopoldo, pelo prefeito Firmiano Pinto, por Mesquita e outros. A revolta durou 22 dias e deixou 503 mortos e 4,8 mil feridos. Ao retomar a cidade, o governo prendeu e processou civis acusados de simpatizar com o movimento, entre eles Mesquita e o jornalista Paulo Duarte, redator do Estadão, e proibiu o jornal de circular.

1º de julho de 2022

ENERGIA RENOVÁVEL É O PLANO DE PAZ PARA O SÉCULO XXI!

(António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas – O Globo, 28) Nero foi acusado de tocar lira enquanto Roma ardia em chamas. Hoje, alguns líderes estão fazendo pior. Eles estão jogando combustível no fogo. Literalmente. Enquanto as consequências da invasão da Rússia na Ucrânia se propagam pelo mundo, a resposta de algumas nações à crescente crise de energia tem sido dobrar o uso de combustíveis fósseis – despejando bilhões de dólares em carvão, gasolina e gás, o que aprofunda nossa emergência climática.

Enquanto isso, os indicadores climáticos continuam a quebrar recordes, projetando um futuro de ferozes tempestades, inundações, secas, incêndios e temperaturas inabitáveis em vastas áreas do planeta. Nosso mundo enfrenta o caos climático. Novos investimentos na exploração de combustíveis fósseis e na produção de infraestrutura são ilusórios. Combustíveis fósseis não são a resposta e nunca deveriam ser. Podemos ver os danos que estamos fazendo ao planeta e às nossas sociedades. Está no noticiário diariamente e ninguém está imune.

Os combustíveis fósseis são a causa da crise climática. Energia renovável é a resposta para limitar os distúrbios climáticos e impulsionar a segurança energética. Se tivéssemos investido mais cedo e massivamente em energia renovável, não nos encontraríamos novamente a mercê dos instáveis mercados de combustíveis fósseis. Os renováveis são o plano de paz para o século 21. Mas a batalha por uma transição energética rápida e justa não está sendo travada em campo. Investidores ainda apoiam combustíveis fósseis e governos ainda distribuem bilhões para subsidiar carvão, petróleo e gás – cerca de 11 milhões de dólares a cada minuto.

Existe uma palavra que define alívio a curto prazo em vez de bem estar a longo prazo. Vício. Ainda estamos viciados em combustíveis fósseis. Pela saúde das nossas sociedades e do planeta, precisamos parar. Agora. O único caminho verdadeiro para a segurança energética, preços de energia estáveis, prosperidade e um planeta habitável está em abandonar combustíveis fósseis poluentes e acelerar a transição para energia renovável.

Para isto, pedi que os governos do G20 desfaçam infraestrutura em carvão, eliminando-a por completo em 2030, para os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e em 2040 para os demais. Tenho apelado para que os atores financeiros abandonem o financiamento do combustível fóssil e invistam em energia renovável. E proponho um plano com cinco pontos para impulsionar a energia renovável no mundo.

Primeiro, devemos instituir a tecnologia de energia renovável como um bem público global, incluindo a remoção das barreiras de propriedade intelectual para transferência de tecnologia. Segundo, devemos melhorar o acesso global às cadeias de suprimento para componentes e materiais brutos de tecnologia de energia renovável.

Em 2020, o mundo instalou 5 gigawatts de suprimento de bateria. Precisamos de uma capacidade de 600 gigawatts em 2030. Claramente, precisamos de uma coalisão global para alcançar isto. Gargalos no transporte e restrições nas cadeias de suprimento, assim como custos mais altos para lítio e outros metais estão afetando o emprego destas tecnologias e materiais justamente quando mais precisamos deles.

Terceiro, precisamos cortar a fita vermelha que atrapalha projetos solares e eólicos. Precisamos de aprovações mais rápidas e mais esforços para modernizar a matriz de eletricidade. Na União Europeia, demora-se oito anos para aprovar uma fazenda eólica; dez anos nos Estados Unidos. Na República da Coreia, projetos eólicos terrestres precisam de 22 licenças de oito ministérios diferentes.

Quarto, o mundo precisa trocar os subsídios energéticos de combustíveis fósseis para proteger as pessoas mais vulneráveis e investir em uma transição justa para um futuro sustentável.

E quinto, precisamos triplicar os investimentos em renováveis. Isto inclui bancos de desenvolvimento multilaterais e desenvolvimento de instituições financeiras, assim como bancos comerciais. Precisamos incrementar drasticamente o incentivo aos investimentos em renováveis.

Precisamos de mais urgência de todos os líderes globais. Já estamos perigosamente perto de alcançar o limite de 1,5 graus Celsius que a ciência aponta como o nível máximo de aquecimento para evitar os piores impactos climáticos. Para manter este 1,5, precisamos reduzir as emissões em 45% em 2030 e alcançar a neutralidade de carbono até a metade do século. Mas os comprometimentos nacionais atuais nos levarão a um aumento de quase 14% nesta década. Isto significa catástrofe.

A resposta está nos renováveis – para ação climática, para segurança energética e para prover eletricidade limpa para centenas de milhões de pessoas que atualmente não a tem. Os renováveis são um ganho triplo.

Não há desculpa para rejeitar uma revolução renovável. Enquanto os preços de gasolina e gás atingem níveis históricos, os renováveis estão ficando cada vez mais baratos, o tempo todo. O custo da energia solar e de baterias despencou 85% na última década. O custo da energia eólica caiu 55%. E investimento em renováveis cria três vezes mais empregos do que em combustíveis fósseis.

Claro que os renováveis não são a única resposta para a crise climática. Soluções baseadas na natureza, como reverter o desmatamento e a degradação de terra, são essenciais. Assim como os esforços para promover eficiência energética. Mas uma transição rápida para energias renováveis precisa ser nossa ambição.

Na medida em que superamos a dependência de combustíveis fósseis, os benefícios serão amplos e não apenas para o clima. Os preços da energia serão mais baixos e previsíveis, com efeitos positivos nos alimentos e na segurança econômica. Quando os preços de energia aumentam, também sobem os custos de alimentos e de todos os bens de que precisamos. Então vamos concordar que uma rápida revolução renovável é necessária para deixarmos de tocar a lira enquanto nosso futuro arde em chamas.

30 de junho de 2022

COLÔMBIA PRECISA SOBREVIVER AO POPULISMO!

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 27) A Colômbia acaba de eleger seu próximo presidente, Gustavo Petro, que, apesar de sua longa carreira política, se apresenta como um forasteiro que vai desalojar do poder as elites que sempre governaram o país. O mesmo foi prometido por Andrés Manuel López Obrador, no México, Gabriel Boric, no Chile, Pedro Castillo, no Peru, Alberto Fernández, na Argentina, e por vários outros presidentes latinoamericanos.

No dia 2 de outubro, haverá eleições no Brasil e é quase certo que o atual presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Lula da Silva disputarão o cargo. Além de enfrentar agressivamente seus oponentes, todos esses líderes prometem amplas mudanças institucionais e reformas econômicas. Todos também se comprometeram a reduzir fortemente a pobreza e a desigualdade. Eles serão bem sucedidos?

Não. Por várias décadas, nenhum da longa lista de predecessores que tentaram fazer mudanças permanentes e indispensáveis teve sucesso. A exceção a essa tendência foi Hugo Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro, que transformaram drasticamente a Venezuela. Eles a destruíram.

POPULISMO.

O novo presidente colombiano é o mais recente membro desse clube de líderes políticos que chegam ao poder com promessas populistas que não poderão cumprir ou impor de qualquer maneira, independentemente dos custos e de outros efeitos nefastos. Além disso, terão de governar sociedades com níveis de polarização política e social que muitas vezes impossibilitam acordos e compromissos entre grupos ou segmentos da sociedade que rivalizam e não se toleram.

Como em muitas outras partes do mundo, importantes tomadas de decisão governamentais na América Latina são bloqueadas pela polarização, que se alimenta de identidades de grupo: religião, raça, gênero, região, idade, interesses econômicos, ideologias e muito mais.

Essa polarização, que sempre existiu, agora foi potencializada pela pós-verdade: o aumento da desinformação, das fake news, da manipulação e da disseminação de mensagens que provocam desconfiança.

NOVA REALIDADE.

Estes são os três “Ps” que definem as realidades políticas nestes tempos atuais: populismo (dividir e governar, prometer e vencer), polarização (o uso e abuso da discórdia) e pós-verdade (em quem acreditar?).

Governar com sucesso neste contexto torna-se ainda mais difícil quando se leva em conta a situação econômica da América Latina. A saúde das economias da região depende criticamente dos preços internacionais das matérias-primas, que constituem seus principais itens de exportação.

Quando a demanda e os preços desses produtos no mercado mundial aumentam, os governos latino-americanos obtêm recursos que alimentam os gastos públicos e, assim, aliviam os atritos políticos e sociais. Se os preços internacionais caem, o conflito político e social se intensifica. É um padrão recorrente.

CONTRAÇÃO.

Tudo parece indicar que a economia global experimentará uma forte contração e a América Latina não conseguirá evitar o impacto dos choques externos. A inflação, fenômeno até então desconhecido para a grande maioria dos jovens da região, reaparecerá após décadas em que a alta dos preços não fazia parte do cotidiano. A inflação será uma fonte perniciosa de fome, empobrecimento, desigualdade, estagnação econômica e conflito social.

Os efeitos políticos da inflação são agora agravados por uma terrível condição preexistente: a desilusão com a democracia. Milhões de latino-americanos fortemente afetados pela pandemia, pelo desemprego, pela má qualidade dos serviços públicos, pela insegurança alimentar, pela corrupção e pelo crime perderam a esperança de que as eleições e a democracia lhes deem as oportunidades que os políticos há muito lhes oferecem.

Este é o contexto em que o presidente Petro deve governar a Colômbia. Ele tem três alternativas. A primeira é dar viabilidade política a sua ambiciosa agenda de mudanças por meio de transações oportunistas com alguns líderes, partidos da oposição e grupos sociais que se opõem a ele, o que inevitavelmente exigirá que o presidente faça concessões. Aumentar essa margem de apoio será essencial e exigirá decisões bem menos virtuosas.

ACORDO NACIONAL.

A segunda alternativa é Petro propor à Colômbia um amplo e inclusivo acordo nacional. Uma aliança que permita a tomada de decisões importantes e seja sincera e possa lhe dar o apoio de que ele necessita. Novamente, isso envolve fazer concessões que podem ser difíceis de engolir para o presidente e para aqueles que o apoiaram.

A terceira opção que lhe resta é se comportar como os “presidentes 3Ps” fizeram em outras partes do mundo: enfraquecendo sorrateiramente as instituições, as normas e os freios e contrapesos que definem a democracia. Espero que a democracia colombiana sobreviva aos 3Ps.

29 de junho de 2022

MAIS SALGADA QUE O MAR E 100 VEZES MAIOR QUE A RODRIGO DE FREITAS: CONHEÇA A LAGOA DE ARARUAMA – QUE NÃO É LAGOA!

(G1, 26) Situada na Região dos Lagos, no estado do Rio de Janeiro, a Lagoa de Araruama – que, apesar de ser conhecida com este nome, não é uma lagoa – é um dos maiores corpos de água hipersalina (ou seja, mais salgada que a água do mar) do mundo.

O termo correto é “laguna” porque existe uma ligação com o mar. Ela é separada do Oceano Atlântico por uma comprida linha de costa, que compõe a Restinga de Massambaba, e a única ligação com o mar é pelo Canal do Itajurú, em Cabo Frio. Já sua salinidade vem do fato de que a laguna recebe mais água do mar do que consegue escoar água de seu interior para o oceano; esse processo, combinado ao clima seco da região –que faz com que a água evapore da laguna e deixe o sal –, faz com que ela fique hipersalina.

A Lagoa de Araruama se estende por 160 dos 850 quilômetros da região costeira do RJ. Além de Cabo Frio, outras cinco cidades são banhadas por suas águas salgadas: Araruama, Iguaba Grande, Saquarema, São Pedro da Aldeia e Arraial do Cabo.

A laguna tem 220 quilômetros quadrados e cerca de 630 milhões de metros cúbicos de água; como comparação, a Lagoa Rodrigo de Freitas, que fica na Zona Sul da cidade do Rio, e talvez seja a mais conhecida do estado, tem 2,4 quilômetros quadrados e cerca de 6 milhões e 200 mil metros cúbicos. Ou seja, a laguna é quase cem vezes maior que a Lagoa Rodrigo de Freitas.

Estudos apontam que a salinidade da água da laguna pode chegar ao dobro da salinidade da água do mar. De acordo com o Instituto Estadual do Ambiente, o Inea, podem ocorrer variações desse parâmetro em diferentes pontos da laguna, variando entre 33 ‰ (por mil) a 65‰, enquanto a salinidade média da água do mar é de 35%.

Além das belezas naturais que atraem banhistas e praticantes de diversos esportes como vela, stand up paddle e canoa havaiana, a Lagoa também é responsável pelo sustento de centenas de famílias de pescadores da região.

Por que é tão salgada?
O g1 conversou com o biólogo Eduardo Pimenta, bacharel em Biologia Marinha, pós-graduado em Planejamento Energético e Impactos Ambientais e Master of Sciences em Ciências da Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ, para entender o que leva a laguna a ter essa alta salinidade.

Pimenta atua há mais de 40 anos na área de impacto ambiental e já participou de diversos estudos e projetos que buscam beneficiar a Lagoa de Araruama. Ele também é presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica Lagos São João, que promove a gestão sustentável, democrática e participativa dos recursos hídricos na Região dos Lagos e Baixada Litorânea do Rio de Janeiro.

O especialista explica que o clima particular da região tem influência na salinidade da laguna. A área entre a Lagoa de Araruama e Armação dos Búzios apresenta um clima semiárido, com presença de cactos, vegetação característica de locais desérticos, e tem pouca chuva. Ele explica ainda que a laguna é parte de um estuário ou sistema estuarino, caracterizado por uma reentrância da costa para o continente onde a água doce de um rio se mistura à água salgada do oceano.

“Por ser um clima semiárido e chover muito pouco na região, principalmente no entorno da Bacia Hidrográfica da Lagoa de Araruama, entra mais água do mar pro interior da Lagoa do que sai água do interior dela para o mar. Ou seja, existe uma corrente preponderante mais forte jogando pra dentro da lagoa do que tirando água dela pro mar, porque tem muito pouco aporte de rios no interior da lagoa de Araruama. Os rios que tem não são caudalosos. Então, entrando mais água do mar e por ser um clima semiárido, essa água evapora e deixa o sal. Por isso que ela é hipersalina”, completa.

Fauna
Diversas espécies de animais podem ser encontradas dentro e no entorno da laguna. Recentemente, a presença de cavalos-marinhos foi identificada e passou a ser estudada pela Universidade Santa Úrsula. O biólogo Eduardo Pimenta destacou que o aparecimento de cavalos-marinhos é um dos indicativos de que a laguna está saudável e se recuperando.

“Existem vários animais que vivem na Lagoa e no entorno dela. Por exemplo, nós temos uma avifauna [conjunto das aves de uma região] riquíssima. Existe um grupo de estudo de aves da Região dos Lagos, que tem origem na Universidade Veiga de Almeida (Cabo Frio). O grupo vem inventariando as aves de toda a região há uma década. Mas nós também temos alguns outros animais. Os que são explorados economicamente é o pescado como perumbeba, carapicu, carapeba, tainha, parati e o camarão”, diz Eduardo Pimenta, que já publicou um livro em parceria com o ambientalista e fotógrafo Antonio Angelo Trindade Marques sobre as aves da Laguna Araruama.

“Esses são os produtos de maior valor comercial e explorados pela cadeia produtiva setorial pesqueira da Lagoa de Araruama. O camarão gosta muito de lagoa, lagunas e estuários, então é muito comum ver camarão em lagoa. Mas essas espécies de peixes são as que se sentem mais à vontade, que se sentem confortáveis e que toleram alta salinidade. Por isso, essa lista de espécies diferencia um pouco das espécies oceânicas, onde a salinidade é de 36 partes por mil litros. Então, tem uma variedade muito maior de peixes no oceano do que na própria Lagoa de Araruama pela característica hipersalina dela que condiciona uma ocorrência menor de espécies de peixes”.

Potencial turístico
A região tem um grande potencial turístico e geralmente é procurada pelas belas praias em Cabo Frio, Arraial do Cabo e Búzios, que são praias de mar aberto. Mas quem visita as praias da Lagoa também encontra um cenário paradisíaco.

Ao longo das cidades, os banhistas encontram píeres e espaços “instagramáveis” para registrar o momento da visita. Também foram espalhadas pela areia placas lembrando os visitantes da importância de preservar o meio ambiente.

Em Araruama, é possível fazer um passeio de ferryboat que sai da praia do Centro e atravessa a laguna até o distrito de Praia Seca, que possui mar aberto e é parte da Restinga de Massambaba. O trajeto é de 7 quilômetros e o tempo de travessia leva em média de 25 minutos a 30 minutos, variando a depender do peso da embarcação, do vento e das correntes marítimas.

Em Iguaba Grande, moradores e turistas podem admirar o nascer do sol privilegiado e até visitar a Ilha de Santa Rita, que fica no meio da lagoa, a cerca de 400 metros da orla. É possível chegar à ilha fazendo trajeto a pé por dentro da Lagoa. Esse caminho só pode ser feito andando a partir de um ponto específico, em frente à Câmara Municipal da cidade.

Práticas esportivas
A laguna também é muito usada para esportes, inclusive com projetos gratuitos de incentivo às práticas esportivas em algumas cidades. Em Araruama, existe um projeto gratuito que oferece modalidades esportivas diferentes como caiaque, standup paddle, Futmesa, Frescobol, Vôlei, Futevôlei, Beach Tênis.

Em Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia também há projetos que estimulam a prática de esportes na lagoa e na orla, como futebol de areia, stand up paddle, vôlei de praia e corrida, entre outras modalidades.

Questões ambientais
“Em relação a preservação ambiental, existe uma legislação. Tenho até muito orgulho de falar disso porque foi uma legislação que eu ajudei a construir quando eu era diretor do Ibama na Região dos Lagos. A gente consolidou, claro, com um grupo maior de pessoas, não fui eu sozinho. É a legislação da pesca na Lagoa de Araruama”, destaca Eduardo Pimenta.

De acordo com Pimenta, a lagoa entrou em colapso no final da década de 1990 porque a pouca eficiência do tratamento de esgoto na região deixou-a muito poluída. Com o tempo, a rede de coleta tornou-se maior e a qualidade da água melhorou: “Hoje, em 2022, um monitoramento físico ou químico de balneabilidade do corpo hídrico, feito por cientistas, comprovam que 85% das praias lagunares estão em boas e ótimas condições de saúde, de balneabilidade”, diz o pesquisador.

O Instituto Estadual do Ambiente (Inea), explica que a qualidade da água pode variar e é acompanhada com medições realizadas a cada 15 dias pelo instituto. Os resultados são disponibilizados no portal do órgão ambiental estadual. A análise da balneabilidade é feita com base nos níveis de bactérias de origem fecal (coliformes fecais ou enterococos) nas amostras de água coletadas, como recomenda a Resolução Conama 274/2000.

O biólogo reforça que também existem outros indicadores que comprovam isso, como a aparição de cavalo-marinho.

“Há quase duas décadas não ocorria e agora voltou a ocorrer como antigamente, quando a laguna tinha saúde. Hoje existe cavalo-marinho em abundância na Lagoa de Araruama e isso é um bom indicador de que a lagoa está se recuperando. Outro indicador é a produção pesqueira que aumentou demais”.

A região recebe um grande número de turistas em épocas de férias, principalmente no verão. Esse aumento também tem impacto na preservação ambiental.

“Claro que com o aumento populacional – e a região cresce assustadoramente -, aumentam os impactos oriundos da atividade humana. Seja de geração de efluentes, resíduos sólidos, resíduos líquidos… Tudo isso impacta, mas a Lagoa hoje passa por um bom momento. A Lagoa de Araruama hoje é estudada como um case de sucesso de recuperação ambiental e é um sistema tão grande e tão importante”.

O especialista atribui essa recuperação a um trabalho realizado em conjunto por diferentes órgãos e entidades. “Isso reflete em aquecimento da atividade econômica, seja pesqueira, turística, esportes náuticos, pousadas, quiosques do entorno da Lagoa de Araruama. Toda a cadeia produtiva setorial pesqueira volta a funcionar com maior propulsão, gerando trabalho, emprego e renda”, afirma.

Mesmo com os avanços em relação às questões ambientais, o futuro da laguna e o que é feito com o esgoto tratado ainda é discutido.

“O despejo desses efluentes tratados, que são água doce, num ecossistema hipersalino não tem alterado a salinidade da Lagoa de Araruama”, explica Pimenta. Ainda assim, o despejo de água doce na laguna não é o ideal, e está sendo estudada a transposição desses efluentes para outras regiões. “Já existem diversos estudos de viabilidade econômica e ambiental que comprovam a possibilidade dessas transposições, seja pra um rio ou pra zona rural ou até mesmo através de emissário submarino”, diz o biólogo.

No início de junho de 2022, o Ministério Público Federal fez uma recomendação à Prolagos, concessionária responsável pela água e esgoto de cinco cidades da Região do Lagos, com o objetivo de solucionar o antigo problema da poluição da lagoa. O MPF listou uma série de exigências para solucionar o problema da poluição da lagoa, que, segundo o órgão, ainda recebe lançamento de esgoto in natura.

Procurada pelo g1, a concessionária informou que as recomendações são resultado de uma vistoria realizada em 2019 às margens da Lagoa de Araruama para identificar pontos de lançamento de esgoto ainda não coletados.

A Prolagos disse que, desde então, iniciou uma série de investimentos, como a implantação de rede coletora no entorno da laguna, aumentando sua proteção, construção de novas elevatórias e melhorias nas estações de tratamento de esgoto.

A concessionária informou que já apresentou o plano de investimentos aos municípios e ao Ministério Público Federal onde prevê a ampliação das estações de tratamento de esgoto, implantação de rede separadora e a construção do trecho final do cinturão no entorno da Lagoa de Araruama, que iniciará no próximo mês, em julho de 2022.