11 de dezembro de 2020

RETRATO FIEL DE SAMUEL WAINER!

(Ubiratan Brasil – O Estado de S. Paulo, 09) Samuel Wainer era um homem de compleição física frágil, mas com grande ambição pessoal. Jornalista, morreu em setembro de 1980, vítima de problemas pulmonares resultantes de uma tuberculose mal curada e décadas fumando sem cessar. Mas deixou um dos principais legados da imprensa brasileira, fundando publicações que se tornaram históricas como a revista Diretrizes e o jornal Última Hora. Mais: manteve relações intrincadas com três presidentes da República (Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart), que lhe permitiram participar ativamente da história do Brasil.

Foi um homem que sempre lutou por seus ideais, ainda que conquistados por meios ilícitos – esse é o personagem de Samuel Wainer – O Homem que Estava Lá (Companhia das Letras), biografia de fôlego escrita por Karla Monteiro, desde já um dos principais lançamentos do ano. Para isso, ela entrevistou cerca de 100 pessoas, além de ter analisado milhares de documentos, entre cartas íntimas, negociação de dívidas e as fitas que deram origem ao livro Minha Razão de Viver – Memória de um Repórter (Record), autobiografia em que o jornalista deixou preparada pouco antes de morrer, mas com diversas lacunas.

A polêmica sempre rondou a trajetória de Wainer, desde a data precisa de seu nascimento (1912 ou 1914), até o local: ele sempre sustentou que veio ao mundo em uma rua do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, o que lhe garantia juridicamente o direito de ser dono de um jornal – mas Karla comprovou que Wainer nasceu na Bessarábia (hoje Moldávia), filho de família de judeus.

Determinado em seus objetivos, Wainer ganhou notoriedade nos anos 1940, quando criou a revista Diretrizes, publicação que contava com uma redação estrelada: Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz eram apenas alguns dos nomes. Dali, saltou para os Diários Associados, a maior cadeia de comunicações do Brasil de então, comandada por Assis Chateaubriand.

Foi lá que, em 1949, Wainer publicou seu maior furo, uma entrevista com Getúlio Vargas que, desde que fora deposto do poder, em 1945, vivia recolhido em seu sítio, no Rio Grande do Sul. A reportagem (que não foi casual, como se acreditava) anunciou, em primeira mão, o retorno do velho caudilho ao cenário político. Eleito em 1950, Vargas facilitou que Wainer fundasse o jornal Última Hora, que revolucionou a imprensa nacional, desde com um moderno projeto gráfico até a cobertura de esportes e causas sociais. De forte cunho nacionalista e trabalhista, também era o órgão que, de longe, melhor pagava os jornalistas.

A aliança com Vargas foi um dos mais fortes motivos que provocaram o rompimento da amizade de Wainer com Carlos Lacerda que, à frente da Tribuna da Imprensa, tornou-se seu mais ferrenho adversário, questionando, por exemplo, sua nacionalidade e, portanto, a legitimidade de comandar um jornal.

Para Wainer, órgãos de imprensa deveriam apoiar uma causa política, o que o levou a ficar ao lado de Kubitschek e, principalmente, de Jango, até seu último dia como presidente antes de ser deposto pelo golpe militar, em 1964. Opções, aliás, eram constantes em sua trajetória, marcada por enfrentamentos contra inimigos poderosos ao mesmo tempo em que criou intimidade com generais, ministros e empresários, sempre tirando proveito quando possível.

Ao mesmo tempo, revelou-se um notável jornalista, em busca da notícia exclusiva, o que o levou a cobrir, por exemplo, o Julgamento de Nuremberg, entre 1945 e 46, que condenou líderes nazistas, além de conseguir entrevistas exclusivas, como com o marechal Josip Broz Tito, que foi presidente da Iugoslávia entre 1953 e 1980, ano em que morreu.

Além de desembaraçar a intrincada teia política que marca a trajetória de Wainer, Karla Monteiro
se ocupa também de uma não menos agitada vida amorosa. Oficialmente, foram dois casamentos – primeiro com Bluma, que o flagrou com outra mulher na cama. O contra-ataque veio em seguida, quando ela o traiu com seu amigo e cronista Rubem Braga, chegando a abortar.

A outra grande paixão foi com a modelo e jornalista Danuza Leão, com quem teve três filhos. Já a lista extraconjugal foi extensa, com Wainer namorando mulheres bonitas e, em geral, mais novas que ele – como a atriz Joana Fomm. “O Samuel é um Macunaíma. Um Macunaíma judeu, versão semita do Macunaíma”, como afirmou Francisco de Assis Barbosa, que foi repórter da Última Hora, ressaltando o herói sem caráter de Mário de Andrade. Sobre o livro, Karla respondeu, por e-mail, as seguintes perguntas.

O subtítulo da biografia, “O Homem que Estava Lá”, faz lembrar a vinheta da revista “Manchete” (“Aconteceu? Virou Manchete”). Brincadeira à parte, como se explica o agudo senso de oportunidade de Samuel Wainer?

Exatamente: Aconteceu, Virou Manchete. Boa lembrança. Aliás, Samuel Wainer acreditava piamente que o fato só se tornava fato se havia um jornalista para testemunhar – e contar depois. Do contrário, não aconteceu. E também sua carreira indica que sabia bem que o fato depende de quem conta. Isenção? A fake news da imprensa. Agora… como se explica o agudo senso de oportunidade de Samuel Wainer? Acho que pela inteligência realmente aguda, rápida, desprovida de preconceitos. Ele não tinha preconceitos. Tinha metas. E também não tinha piedade. Piedade aqui como sinônimo da moral burguesa, judaico-cristã.

A conflituosa relação política entre Wainer e Carlos Lacerda pode ser comparada ao dualismo político de hoje, entre esquerda de direita?

Num artigo na revista Quatro Cinco Um, o veterano Cláudio Bojunga escreveu que houve um tempo em que bastava mencionar Samuel Wainer e Carlos Lacerda nos bares para identificar a esquerda e a direita na mesa. Os primeiros viam em Lacerda a mistura de Catão e Mccarthy. Conservadores reduziam Samuel a sanguessuga do poder. Dito isto, acho, sim, que é possível traçar diversos paralelos entre o tempo que coube a Samuel Wainer e Carlos Lacerda. E o tempo hoje. Na briga dos dois, está, por exemplo, os meandros, as entrelinhas, as maneiras como as forças se organizam e desorganizam a democracia brasileira. E, sobretudo, escancara o papel da imprensa como força política. Como parte e não fiscal do poder.

O que Wainer mais admirava em Lacerda e o que mais desprezava?

Wainer e Lacerda foram inimigos íntimos, um conhecia muito bem a ambição do outro. Acho que nem Lacerda acreditava que Samuel era um corrupto e nem Samuel acreditava que Lacerda era a encarnação do mal, o “doido do Lavradio”. Arrisco dizer que Samuel admirava a inteligência de Lacerda, mas desprezava sua demagogia – ou hipocrisia de bastião da moral. Como diria Antônio Maria, ninguém segurava a sua alma de tira.

O desmentido sobre o casual encontro entre Wainer e Getúlio Vargas, em 1949, como um dos vários pontos altos do livro. Você alimentava essa suspeita ou se surpreendeu com a descoberta?

Alguns autores, como Lira Neto e Fernando Morais, já haviam levantado a lebre. Mas eu me surpreendi, sim. Lendo a correspondência entre Getúlio e Alzira Vargas, durante os anos em que o ex-ditador estivera “exilado” em São Borja, eu me deparei com a sequência que derruba o mito do furo ao acaso. Então, a história do repórter que foi ao Sul fazer uma reportagem sobre o trigo e voltara com uma entrevista inédita não passava de “pós-verdade”, “fakenews”… Mas aí, analisando mais detidamente o caso, acho essa passagem muito reveladora da personalidade de Wainer. Nunca perdia cavalo celado. Ao sair do Rio no meio do carnaval, sem avisar ninguém, como escreveu Alzira Vargas numa das cartas ao pai, deu a volta. Pegou Getúlio Vargas de toalha, antes que este tivesse sido avisado pela filha da entrevista combinada. E fez uma entrevista espontânea, viva… foi um sucesso absoluto, repercutindo inclusive na imprensa internacional. A melhor parte vem depois, no entanto. Uma das frases mais famosas de Getúlio Vargas, “Eu voltarei, mas não como líder de partidos, e sim como líder das massas”, é de Samuel Wainer.

Até que ponto a alusão feita por Paulo Francis, comparando Wainer a Jay Gatsby, personagem de Scott Fitzgerald, é real?

Paulo Francis acertou na mosca, eu acho. Samuel Wainer é um “Gatsby” brasileiro, de certa forma. Assim como o personagem de F. Scott Fitzgerald, a pobreza extrema o tornou voraz por possibilidades, por se diferenciar, se destacar no meio. Viveu em constante, ininterrupto tumulto, seguindo o instinto em direção ao futuro glorioso. Desde cedo, acreditou que poderia se reinventar no mundo. Poderia ascender, se intrujar nas altas rodas. Acredito, inclusive, que o próprio Samuel Wainer tinha consciência do papel de invasor. Aliás, representava com maestria este papel, como um “Gatsby”: misterioso, sofisticado, charmoso, sedutor, boêmio. Baby Bocaiúva contava que os íntimos brincavam: “filho do trovão com o raio, sem pai nem mãe, capaz das coisas mais terríveis e das mais nobres”. Sobretudo, assim como o Gatsby de Fitzgerald, Samuel nunca comprou a moral burguesa, judaico-cristã, entendedor das sutilezas da moralidade endinheirada. Citando o Francis, viveu “O Deleite do Gatsby”.