05 de maio de 2020

A PANDEMIA NA AMÉRICA LATINA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 04) Crise traz oportunidades para a democracia, mas também para a demagogia.

O coronavírus atingiu a região mais desigual do mundo em plena turbulência política e social. Em 2019, a estagnação econômica, a corrupção, o desemprego e a precariedade dos serviços públicos já haviam deflagrado protestos violentos no Chile, Equador, Bolívia e Peru. Mas “a crise não pode ser uma desculpa para enfraquecer nossas democracias”, alerta o manifesto Imperativos éticos e econômicos da luta contra a Covid-19, redigido para a reunião de primavera do FMI por diversas autoridades, entre as quais quatro ex-presidentes – Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Lagos (Chile), Juan Manuel Santos (Colômbia) e Ernesto Zedillo Ponce de León (México). “Em vez disso, é preciso aproveitar a oportunidade para fortalecer a democracia na América Latina e mostrar que ela pode produzir os resultados prometidos aos cidadãos.”

O manifesto adverte que a redução da mortalidade e a canalização de recursos para os sistemas de saúde devem ser a principal prioridade. Já as recomendações econômicas seguem o receituário que vem sendo proposto pelas principais organizações internacionais para sustentar a renda familiar, empregos e empresas.

Isso implica o fornecimento de transferências monetárias para os vulneráveis; subsídios para as empresas a fim de sustentar empregos e evitar falências que levariam à crise do sistema bancário; garantias de crédito pelos governos; recursos fiscais extraordinários com ajustes orçamentários em áreas de baixa prioridade; e um compromisso dos Poderes constitucionais de que as medidas serão temporárias e acompanhadas de um esforço para corrigir o déficit fiscal crônico. Em tudo isso, adverte o documento, a cooperação e o apoio internacional serão indispensáveis. De um modo geral, essas medidas estão sendo tomadas, “mas as respostas políticas em nossa região não foram uniformes”, diz o manifesto.

Muitos líderes aproveitaram a oportunidade para congregar a população atemorizada e promover uma espécie de redenção. No Peru, o presidente Martín Vizcarra – cujos dois anos no poder foram marcados por atritos que culminaram com o fechamento do Congresso e novas eleições legislativas – foi o primeiro a impor o confinamento. Os peruanos apoiaram a medida, e, segundo o instituto Ipsos, sua aprovação subiu de 52% para 87%.

Assim como ele, outros presidentes da centro-direita pragmática reagiram rapidamente e foram respaldados pela população. Foi assim na Colômbia, e mesmo no Chile o combalido Sebastian Piñera viu sua popularidade subir de 10% para 21%. Este tem sido o padrão na América Latina. Na Argentina, a popularidade do esquerdista Alberto Fernández saltou para mais de 80% após a imposição da quarentena.

Tal como nos ataques de 11 de Setembro e a crise financeira de 2008, a pandemia é a hora do Executivo. Mas é também o momento ideal para populistas e autoritários. Como apontou o articulista do Estado e ex-ministro venezuelano Moisés Naím, no campo político o coronavírus deve exacerbar três tendências latino-americanas: o populismo, a polarização e as narrativas pós-verdade.

Embora não sejam nomeados no manifesto, é a Jair Bolsonaro e Manuel López Obrador, do México, que os signatários do manifesto dirigem a reprovação por “minimizar os riscos da pandemia, desinformar os cidadãos e desconsiderar as evidências científicas”, adotando “políticas populistas e divisivas no meio desta tragédia”.

A conduta de ambos mostra que o vírus do populismo não faz distinções entre esquerda e direita, mas também que brasileiros e mexicanos têm algum grau de imunidade: os dois presidentes estão entre os poucos líderes mundiais que sofreram quedas de popularidade na pandemia. Numa situação excepcional, as instituições republicanas em ambos os países não têm como não autorizar medidas excepcionais – mas nunca ditatoriais. E precisam garantir que elas não se tornarão permanentes. Além disso, têm o dever de provar, como diz o manifesto, que “confiança mútua, transparência e razão – não populismo ou demagogia – continuam sendo as melhores diretrizes nestes tempos de incerteza”.