10 de maio de 2019

A QUESTÃO DEMOCRÁTICA NA TURQUIA!

(Yascha Mounk, professor da Universidade John Hopkins, autor do livro “O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la”)

Quando Recep Erdoğan foi eleito primeiro-ministro da Turquia, em 2003, ele prometeu respeitar as instituições democráticas do país e desocupar o cargo caso perdesse a confiança do povo. A realidade do governo de Erdoğan tem sido bem mais sombria. Embora os jornais e revistas internacionais inicialmente o retratassem como um reformador democrático, ele sistematicamente expandiu seus poderes e expurgou os oponentes das principais posições no exército, no serviço civil e nas instituições educacionais do país. Quando ex-aliados tentaram derrubá-lo em um golpe no verão de 2016, ele aproveitou a ocasião para consolidar seu domínio sobre o país.

Mas mesmo quando a natureza ditatorial do regime de Erdoğan se tornou aparente, e a liberdade de criticá-lo mais restrita, a Turquia continuou a realizar eleições multipartidárias, o que deu à oposição alguma capacidade de competir nas urnas. Em junho de 2018, Erdoğan obteve 53% dos votos em uma eleição que muitos observadores afirmaram ter sido contaminada por ataques violentos contra a oposição.

Essa eleição pareceu permitir que Erdoğan tivesse tudo: por um lado, o controle que exerce sobre instituições-chave, como a comissão eleitoral do país, havia limitado o risco que a eleição representava para seu governo. Por outro lado, a eleição ajudou a reforçar sua legitimidade no país e no exterior. Apesar de observadores internacionais terem enfatizado que a eleição não foi livre e justa, líderes internacionais incluindo Angela Merkel e Donald Trump parabenizaram publicamente Erdoğan por sua “vitória” nas urnas. Como disse Timur Kuran, um especialista turco em regimes autoritários, Erdoğan procurou combinar “a ilusão de uma eleição concorrida” com “um resultado predeterminado”.

O tremendo poder que Erdoğan detém agora torna ainda mais notável que uma oposição unida tenha conseguido, no mês passado, um inesperado conjunto de vitórias nas eleições municipais do país: ao explorar a raiva com a crescente crise econômica da Turquia e colocar em campo uma nova safra de candidatos carismáticos e conciliatórios, a oposição conseguiu duas vitórias altamente improváveis e simbólicas, conquistando o controle da capital do país, Ancara, bem como de sua maior cidade, Istambul.

Como resultado, Erdoğan, pela primeira vez desde o fracassado golpe de Estado há três anos, enfrentou um verdadeiro trade-off: ele permitiria que os resultados das eleições se mantivessem, reconhecendo assim o descontentamento crescente do povo com seu governo? Ou exploraria seu poder sobre as instituições da Turquia para que a eleição fosse anulada, deixando claro que a Turquia não é mais uma democracia?

Durante grande parte do século XX, a ameaça mais aguda à democracia veio do cano de uma arma. Os sistemas democráticos entravam em colapso, geralmente, quando tanques comandados pelo líder de um movimento abertamente antidemocrático se colocavam em frente ao parlamento do país ou ao palácio presidencial.

Mas no século 21, os golpes se tornaram mais raros. Da Rússia à Venezuela, os ditadores que destruíram instituições democráticas conquistaram o executivo nas urnas. Longe de atacar abertamente a democracia, eles tenderam a argumentar que eles, e somente eles, verdadeiramente representam o povo.

A nova safra de líderes autoritários investiu muito mais na manutenção da aparência de um genuíno mandato democrático. Como resultado, eles têm que se engajar em um cálculo político mais complexo: eles têm que dar à oposição uma chance suficiente de competir nas eleições para ter credibilidade com um segmento significativo da população. Mas eles também precisam capturar instituições políticas, como as comissões eleitorais, para garantir que o povo, de fato, não consiga arrancá-los do cargo.

Como os desenvolvimentos recentes na Turquia mostram, no entanto, pode não ser possível sustentar esse equilíbrio para sempre. Eventualmente, mesmo os governos que efetivamente aboliram a liberdade de imprensa se arriscam a crescer de maneira tão impopular que precisam recorrer a formas mais flagrantes de manipular o voto.

Depois de usar seu controle sobre a maior parte da mídia do país para espalhar a teoria da conspiração insana de que uma oposição impotente conseguiu falsificar o resultado da eleição, Erdoğan usou seu controle sobre o Judiciário para cancelar o resultado. Citando supostas irregularidades, a comissão eleitoral anunciou na segunda-feira que Istambul realizará novas eleições em junho.

O anúncio marca um ponto de virada fundamental na história política da Turquia: agora é impossível para qualquer observador razoável continuar negando a realidade. Um país cujo presidente tem o poder de anular as eleições quando não gosta do seu resultado tornou-se claramente uma ditadura.

Enquanto o anúncio elimina qualquer dúvida remanescente sobre o status atual da democracia na Turquia, também levanta grandes questões sobre seu futuro. Nos próximos dias, İmamoğlu, prefeito eleito de Istambul, terá que decidir se vai boicotar a nova eleição em junho. Se fizer isso, entregará a Erdoğan o poder que este deseja. Se não o fizer, dará legitimidade a uma eleição que provavelmente não conseguirá ganhar. Cara, Erdoğan vence. Coroa, İmamoğlu perde.

Mas, embora Erdoğan provavelmente mantenha o controle de Istambul no curto prazo, ele também enfrenta um futuro muito mais difícil. Até agora, grandes segmentos da população turca acreditavam em seu discurso de que deixaria o cargo por conta própria se perdesse a confiança do povo. Agora, a insistência de Erdoğan de que ele representa a verdadeira vontade do povo irá, mesmo nos ouvidos de seus mais antigos partidários, soar vazio.

A perda da legitimidade democrática de Erdoğan não implica que ele esteja prestes a perder poder. Como a longa história de ditaduras demonstra, muitas pessoas estão dispostas a apoiar um líder que se opõe abertamente às instituições democráticas – e muitos autocratas são capazes de permanecer no cargo por anos ou décadas mesmo depois de se tornarem profundamente impopulares. Mas sugere que seu governo será, a partir de agora, baseado em uma fundação muito mais precária. Com sua reinvindicação de um mandado popular perdendo credibilidade, Erdoğan provavelmente enfrentará uma oposição ainda mais determinada – e precisará recorrer a uma opressão cada vez mais visível para permanecer no poder.