12 de dezembro de 2022

MARROCOS E PORTUGAL, RIVAIS NA COPA, TRAVARAM BATALHA QUE ORIGINOU LENDA DO SEBASTIANISMO!

Folha de SP, 09) Com encontro marcado para este sábado (10), às 12h, nas quartas de final da Copa do Qatar, Portugal e Marrocos já foram rivais, mas nos campos de batalha.

O reino árabe foi responsável pelo fim de uma dinastia e o nascimento do maior dos mitos portugueses, o sebastianismo, que também desembarcou no Brasil.

Tudo começou em 1574. Portugal, um império católico expansionista comandado pelo jovem dom Sebastião (1557-1578), que assumira o trono aos 14 anos, buscava recuperar seu prestígio perdido no mundo árabe.

Anos antes, em 1541, os lusitanos haviam sido enxotados do Marrocos por um vultoso exército comandado por Mohamed Ech-Cheikh, que se tornaria sultão daquele reino.

Morto em 1552, Ech-Cheik foi sucedido por Mulai Abdallah El-Ghalib. Este, morto em 1574.

O reino, então, é assumido por seu filho mais velho, Mohammed El-Moutaouakil, mas a tradição sucessória da coroa marroquina dizia que o trono devia ser ocupado pelos irmãos do comandante defunto antes de caber a qualquer filho.

Amparado por isso, Mulai Abdelmalek, irmão mais velho do chefe supremo morto, entrou em ação. Em 1576, apoiado pelos otomanos, moveu exércitos para Marrakech, capital do reino, para depor seu sobrinho, que fugiu.

Portugal viu ali uma oportunidade. Uma crise na família real marroquina era um convite para o país ibérico voltar ao norte da África e se vingar da derrota sofrida há quase três décadas.

Deposto, Mohammed buscou ajuda na Espanha, mas por receio, o rei Felipe 2º preferiu não agir diretamente.

“Foi então que o ex-comandante marroquino foi pedir ajuda a Portugal, que, em troca de poder no território do país africano, logo aceitou”, diz Ana Paula Megiani, vice-diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo).

Autora do livro “1580: Portugal, uma Retrospectiva” (ed. Tinta da China, 2019), em que faz uma retrospectiva da última excursão portuguesa em solo árabe, a professora de história ibérica afirma que dom Sebastião foi deslumbrado pelas promessas de Mohammed.

Em troca do auxílio bélico, o marroquino teria prometido terras, que deixaria a coroa portuguesa pregar a fé cristã em toda região e, finalmente, a coroação de Sebastião como imperador do Marrocos.

Logo, Portugal se preparou para a batalha. “Era uma cruzada da fé. Portugal queria levar o cristianismo ao mundo árabe a todo custo, retomando sua influência na região”, diz Leonardo Trevisan, historiador e professor do curso de relações internacionais da ESPM.

Em julho de 1578, os navios lusitanos partiram para o Marrocos. Eram 500, que carregavam, ao menos, 15 mil homens.

No país declarado inimigo, os portugueses marcharam a pé rumo à capital. Depois de dois dias caminhando, a cúpula militar, liderada por dom Sebastião, resolveu voltar aos navios, mas era tarde. Os homens passaram dias no deserto. Fome e desidratação os esgotavam.

Em 4 de agosto, chegaram a Alcácer-Quibir, primeira e última resistência marroquina. Mais numeroso, com ao menos 50 mil homens, o exército local logo atacou.

Os portugueses não tiveram chances e em poucas horas estavam quase todos mortos, incluindo Dom Sebastião. Os outros dois reis marroquinos, o deposto e o conquistador, também foram mortos. O episódio ficou conhecido como a batalha dos Três Reis ou batalha de Alcácer-Quibir.

NASCE O SEBASTIANISMO
A derrota portuguesa precisava de uma explicação. Seu exército havia sido humilhado, seu imperador morto e muitos de seus nobres sequestrados pelas forças marroquinas, que exigiam uma quantia considerável em ouro e prata para os libertar.

“Foi então que surgiu a lenda de que, ao pagar pelos nobres sequestrados, Portugal também receberia dom Sebastião de volta. Como seu corpo nunca fora encontrado, muitos acreditaram”, diz Trevisan, da ESPM.

O mito do sebastianismo, a volta messiânica do imperador que nem todos acreditavam estar morto, se espalhou e ganhou força com período complicado adentrado pelo reino português com sua partida.

Sebastião não teve filhos, com isso a coroa passou a seu tio, o cardeal dom Henrique, o último membro da dinastia de Avis. Muito idoso, o breve rei morreu em dois anos.

Assim, em 1580, Portugal, sem sucessores ao trono, foi anexado à Espanha, tendo Felipe 2º como seu soberano. O rei espanhol afirmava ser parente de dom Sebastião.

O sebastianismo ganhou muita força neste período, chamado de União Ibérica. Cidadãos portugueses não aceitavam a submissão do império, que sempre fora uma grande potência.

Passaram-se 60 anos até que a independência do reino fosse restaurada por dom João, duque de Bragança, aclamado dom João 4º, rei de Portugal.

“À época, o sebastianismo já estava na mentalidade portuguesa. Não se tratava somente da volta de seu antigo imperador, mas de um desejo permanente de salvação. Sempre que Portugal esteve em apuros, era por dom Sebastião que chamavam”, conta Megiani, da USP.

Junto à corte portuguesa, a crença desembarcou no Brasil. Virou tradição oral no Nordeste e embalou muitas guerrilhas separatistas em terras tupiniquins.

Hoje, a crença é mais forte no estado do Maranhão. Lá, acredita-se que dom Sebastião monta um boi e aparece para proteger os moradores dos perigos.

“A verdade é que o sebastianismo é o retrato de sociedades latino-americanas. Sempre estamos esperando por um salvador”, afirma Trevisan. “Vivemos das glórias do passado e queremos repetir, de qualquer maneira, aquele ciclo. E isso tem muito a ver com esporte.”

“Após a derrota portuguesa no Marrocos, a Espanha passa a exercer grande influência na região. Interessante que os árabes tenham derrotado os espanhóis nas oitavas e enfrentem os portugueses agora. É tudo história”, completa.