12 de novembro de 2018

50 ANOS DEPOIS, LIVRO RECONTA INVASÃO DA POLÍCIA A CONGRESSO DA UNE EM 1968!

No auge das manifestações contra o regime militar, quase 800 jovens foram presos; leia trecho da obra.

Cesar Maia já tomara o seu café e aguardava o início da reunião dentro da tenda, sentado num dos degraus forrados com plástico. (…) O único na tenda que parecia sem nenhuma pressa era Cesar Maia. Sentado num degrau, sabia que não adiantaria tentar fugir, seria fatalmente preso, mais uma vez.

( Jason Tércio – Iliustrissima – Folha de S.Paulo, 11) Em outubro de 1968, o 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes acontecia num sítio em Ibiúna, a 74 km de São Paulo, quando foi descoberto pela polícia. Quase 800 jovens foram presos. A história é recontada em “Sitiados – A História do Congresso Estudantil de Ibiúna em 1968”, com lançamento previsto para este mês; leia trecho.

“Divalte Figueira saiu da tenda enrolado no cobertor, a caminho do córrego, onde um grupo lavava o rosto e escovava os dentes. Os que haviam dormido no primeiro turno já estavam na fila do café. Entre eles o cearense José Genoino, o paranaense Deslandi Torres, o paulista Luiz Merlino e o carioca Luiz Rodolfo, descalço, por não ter encontrado seus sapatos.  Vladimir bebia café com Travassos, conversando sobre a plenária na qual informariam que a polícia estava a caminho e discutiriam o que fazer.

César Maia já tomara o seu café e aguardava o início da reunião dentro da tenda, sentado num dos degraus forrados com plástico. A maioria do pessoal do segundo turno ainda dormia ou estava se levantando.

Sem vontade de enfrentar a fila, Divalte voltou para a tenda e se sentou num degrau, na expectativa da eleição. Pretendia votar em Dirceu, apesar da inevitável sensação de desencanto.

Viera com uma grande esperança no congresso como sendo o apogeu das lutas do movimento estudantil, mas o resultado até aquele momento o tinha decepcionado. Ele mal sabia que o pior estava prestes a acontecer. Merlino bebeu mais um gole de café. No alto do morro, o coronel Barsotti puxou seu revólver da cintura e deu um tiro para o ar. Era o sinal. Merlino ouviu o estampido repentino ecoando no ar e, antes que pudesse pensar qualquer coisa, ouviu outros tiros e viu surgirem os soldados e agentes que entravam porteira adentro disparando fuzis e metralhadoras e pistolas, gritando palavras que ninguém entendia.

Na fila, todos olharam surpresos para os incontáveis soldados correndo em todas as direções, atirando e jogando bombas de efeito moral. O segurança Gradel jogou fora seu revólver, correu para a cozinha.  Outro segurança saiu da sua barraca perto da porteira e, quando viu os soldados, disparou a carabina para o alto, avisando o pessoal. Os soldados responderam com rajadas de metralhadoras para o alto, um deles deu uma coronhada na cabeça do segurança e apreendeu a arma.

Roberto Menkes acordou na barraca dos seguranças pensando que estivesse sonhando. Saiu meio zonzo e viu os soldados correndo na sua direção. Na cozinha, as garotas largaram tudo o que estavam fazendo e correram, Gradel viu um outro segurança, ajoelhado atrás da mureta apontando uma Beretta na direção da tropa, e gritou “joga fora!”, para evitar a morte do colega. Confirmou-se na prática que as armas dos seguranças tinham efeito apenas simbólico e não significavam nenhum projeto de iniciação guerrilheira.

Merlino tentou saltar a cerca do sítio. Parou imediatamente ao ouvir um tiro e voltou com os braços para cima. Um agente do Dops apontou-lhe o revolver gritando: — Corre, seu vagabundo, se quer levar um tiro! O rapaz cruzou as mãos atrás da cabeça e se juntou aos demais. O coronel Divo Barsotti e o delegado Paulo Bonchristiano corriam de um lado para o outro, vociferando nos megafones. Teresa Sales voltava do banheiro para a casa com passos titubeantes, se desviando da lama.

Ao escutar os tiros, tentou se apressar, escorregou e caiu, pensando ter sido atingida por um tiro, mas se ergueu e continuou andando. Perto da fila do café, um grupo de garotas pensou em correr, mas a indecisão as impediu.  Vilma Amaro tinha nas mãos uns panfletos que pretendia guardar na sacola como material de pesquisa para escrever a reportagem sobre o congresso, e jogou os papéis no chão ao ser empurrada.

Dentro da tenda, os que estavam acordados se entreolharam intrigados e assustados. Gradel entrou correndo e bradou: — Pessoal, a polícia tá aí!  Houve sorrisos de dúvida: seria um trote? Uma brincadeira de mau gosto a esta hora da manhã? A maioria levou a sério e se levantou depressa com intenção de fugir. Como tinham dormido com a roupa do corpo, foram apanhar apenas os sapatos e a sacola. Difícil era encontrá-los. Gradel quis evitar pânico: — Calma, calma! A ordem é não resistir, não adianta.

Caterina Koltai dormia ao lado de sua grande amiga Leda Gitahy e por isso se sentiu segura. Ana Bursztyn estava acordando e demorou uns segundos para entender o que acontecia. Devancyr ficou paralisado, sem saber se saía correndo ou continuava deitado.

O único na tenda que parecia sem nenhuma pressa era César Maia. Sentado num degrau, sabia que não adiantaria tentar fugir, seria fatalmente preso, mais uma vez. Demonstrou tranquilidade escutando os ratatata tata pam, bang, ratatata pam bang pam! Bonchristiano entrou na tenda com megafone na mão esquerda e uma pistola na direita:  — Estão cercados! Todo mundo com as mãos na cabeça ou vamos atirar!

Com ele entraram soldados apontando fuzis e pistolas. Os estudantes ainda deitados se levantaram aturdidos, procuraram seus calçados, e foram saindo com bagagens, olhos arregalados, cabelos desgrenhados. Os soldados se movimentavam com rapidez, encurralando e empurrando os estudantes para o centro do terreno. O delegado Bonchristiano gritava sem parar: — Fiquem parados onde estão! Mãos na cabeça! Joguem tudo no chão!

Com braços levantados, Pedro de Albuquerque saiu da casa e, enquanto caminhava para se juntar aos outros, um colega perguntou o que iria acontecer. Naquele momento ninguém sabia. O coronel Barsotti mandou os soldados colocarem os estudantes em fila indiana, para serem revistados. O caseiro ficou junto deles. Bonchristiano, pistola em punho, continuava a gritar: — Não resistam! Temos ordem de atirar pra matar! Estão todos presos!