13 de fevereiro de 2019

ROMPEU-SE O ELO ENTRE GOVERNANTES E GOVERNADOS!

(The WorldPost, uma parceria entre o Instituto Berggruen e o Washington Post, 9 de fevereiro, 2019, por Nathan Gardels, Editor-Chefe)

Na semana passada o Instituto Berggruen recebeu o sociólogo espanhol Manuel Castells para um debate sobre o seu novo livro Ruptura: A Crise da Democracia Liberal. Castells argumenta que aquilo que testemunhamos hoje no mundo ocidental não é uma mudança normal de ciclos políticos, mas uma ruptura histórica da relação institucional entre governantes e governados. Por ora ele não consegue vislumbrar no horizonte nenhuma relação que possa substituir as antigas formas de representação, apenas fragmentos dos antigos partidos convencionais e populistas emergentes que lutam para colocar seu time no poder através do exaurido mecanismo de disputas eleitorais, cada vez mais desacreditado.

“Onde estão as novas instituições merecedoras de nossa confiança?”, perguntou o famoso acadêmico da sociedade em rede. Em vez disso, ele constata que os cidadãos estão agindo de maneira autônoma por meio das novas tecnologias. “Eles estão usando a capacidade de comunicação entre si, de deliberação e tomada de decisão em conjunto que hoje está à nossa disposição graças à ‘Galáxia da Internet’ e colocando a enorme riqueza de informações e conhecimento em práticas que auxiliam a gerir os nossos problemas”.

No entanto, como o neurocientista Antonio Damásio mencionou em uma pergunta, essas mesmas redes de participação social que desempenharam um papel fundamental na superação da antiga ordem e são agora a plataforma-padrão de autogovernança não são conduzidas primariamente pelo discurso racional, mas pelos mesmos impulsos emocionais que atuam nas redes neurais da mente, às quais elas estão agora conectadas. Elas são, de fato, extensões protéticas e amplificadoras da natureza humana. Onde reinam as emoções sem a mediação da razão, proliferam o medo, o preconceito, o ódio, a desinformação e o pensamento mágico.

Essa observação levou, por sua vez, a perguntas sobre bots e sobre se a interferência russa por meio das redes sociais teve realmente impacto nas eleições americanas de 2016. Castells considera que não. Se a antenna do receptor já estivesse aberta e fosse simpática à mensagem que se transmitia – quer fosse verdadeira, quer falsa – essas intervenções teriam impacto. Mas, se não, elas não teriam efeito. Poucas cabeças teriam mudado de ideia de um jeito ou de outro.

A influência sobre corações e mentes não vem tanto do conteúdo da informação, mas daquilo em que as pessoas estão dispostas a acreditar com base em seu aspecto meta-informacional. Sem o ressentimento acumulado contra as elites, as quais percebiam como afrontosas à sua dignidade, aqueles a quem Hillary Clinton chamou de “deploráveis” não teriam sido, logo de início, receptivos às mensagens negativas.

Por essa razão, Castells vê a histeria quanto à intromissão russa como distração em relação ao âmago da questão, como pode ser o caso com as próprias fake news. Nenhuma quantidade de policiamento da internet pode reparar o problema fundamental. Não são os fatos, mas a imagem que as pessoas têm do mundo e do lugar que nele ocupam que determina aquilo em que estão dispostas a acreditar. Não são ideias superiores ou informações melhores que irão sobrepujar os trolls. A disputa que interessa se dá em torno do poder das metáforas e das imagens, que são fortes o suficiente para manter as comunidades unidas – ou dilacerá-las.

Muitas pessoas tendem a apreender a realidade pelo que nos afeta metaforicamente. Compramos uma narrativa não tanto por contrabalançar argumentos, mas pela conexão emocional à imagem com a qual queremos ser associados, que confere prestígio, dignidade e identidade às nossas vidas e faz reluzir algum prestígio em nossa história. Como escreveu o filósofo Régis Debray: “É o simbólico que cria o vínculo social, não o inverso”.

O poder da associação metafórica através dos símbolos é óbvio na vida cotidiana: da loucura por iPhones na China (até recentemente) aos modismos dos adolescentes e às tatuagens. É evidente na maneira como os automóveis são comercializados. O Subaru é para famílias amáveis e calorosas ou para casais em contato com a natureza. O Tesla é para o “double green” – o rico com consciência ambiental. Uma picape “robusta” da Ford é para pessoas austeras, que não pertencem à elite e têm de trabalhar com suas próprias mãos.

As guerras culturais pela custódia das percepções na América contemporânea estão sendo travadas no nível da metáfora.

Numa época anterior, a visão vaga de Barack Obama sobre a “esperança” capturou a imagem de uma América diversificada que finalmente reconciliava-se consigo mesma. Mas isso serviu para consolidar um eleitorado de oposição que se sentia excluído dessa repactuação e alienado de sua narrativa. Como símbolo, o “muro” de Donald Trump, erguendo-se acima do turbilhão dos fatos, aponta para uma série de associações, de racismo e xenofobia, passando por incertezas físicas e econômicas até uma profunda aversão à classe cosmopolita que cultiva sentimentos liberais. Essa é a razão por que grande parte da oposição ao “muro” que fala razoavelmente sobre túneis, drones e procedimentos de asilo, embora esteja substancialmente correta, não toca no ponto principal.

É claro que, ao fim e ao cabo, as associações simbólicas só podem continuar a unir as comunidades se sua promessa não se desviar excessivamente da realidade. Se a lacuna for muito grande, o elo se rompe. Para conseguir entregar algo do que prometeu, uma governança sólida deve estar por trás do vínculo simbólico. Essa é a razão por que os fatos fidedignos e as instituições imparciais exigidos pelo discurso público racional são, em última instância, essenciais para alcançar o consenso de governo e evitar o suicídio de repúblicas.

Castells duvida que possamos retornar a essa possibilidade de consenso, pois o elo institucional entre governante e governado está terminantemente rompido. Somente a vasta estrutura de transmissão emocional das redes sociais permanece como espaço público relevante.

Ao final do seu livro, Castells sugere que abandonemos a tentativa de construir uma nova ordem e, em vez disso, nos dediquemos a “configurar um caos criativo em que aprendemos a fluir conforme a corrente da vida em vez de forçá-la a se moldar às burocracias e programá-la em algoritmos”. Em sua última linha: “Talvez aprender a viver no caos seja menos prejudicial do que se conformar à disciplina de mais uma ordem”.

Ruptura: a crise da democracia liberal

Manuel Castells, professor e catedrático de Tecnologia e Sociedade da Informação da Universidade da Carolina do Sul, professor emérito de sociologia na Universidade da Califórnia, Berkeley, e membro do St. John’s College, Cambridge – novembro de 2018, Polity, 176 páginas.

Descrição

A maioria dos cidadãos no mundo de hoje não confia em seus representantes políticos, nos partidos políticos tradicionais, nas instituições políticas estabelecidas nem em seus governos. Essa crise generalizada de legitimidade está por trás de uma série de mudanças dramáticas que ocorreram nos últimos tempos no cenário político global, como a inesperada eleição de Donald Trump, o Brexit, a extinção de partidos políticos tradicionais e a eleição de um outsider político na França, a transformação do sistema político na Espanha (incluindo o movimento de secessão na Catalunha), a ascensão da extrema direita na Europa e os desafios nacionalistas que ameaçam a União Europeia.

Neste livro curto, mas abrangente, Manuel Castells analisa cada um desses processos e examina algumas das causas potenciais da insatisfação das pessoas em relação às instituições da democracia liberal, incluindo os efeitos da globalização, o impacto da política midiática e da internet, o aumento da corrupção de políticos, o isolamento da classe política profissional em relação à sociedade civil e a crítica da ordem existente por novos movimentos sociais.

Também examina o impacto do terrorismo global e da guerra sobre a xenofobia e o racismo, que estimulam a irrupção de extremismo numa proporção crescente da população. O fato de que muitas dessas tendências estão presentes em contextos muito diferentes sugere que estamos testemunhando uma crise profunda do modelo de democracia que foi a pedra fundamental de estabilidade e civilidade no último meio século.