14 de março de 2019

COMO A RELAÇÃO RUSSO-AMERICANA AFUNDOU!

Artigo  adaptado do livro “The Back Channel: Uma Memória da Diplomacia Americana e a Razão para Sua Renovação” de William J. Burns, que trabalhou nos governos George H. W. Bush, Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama em cargos como secretário adjunto de Estado e embaixador na Rússia.

Depois de um último telefonema como líder dos EUA com o presidente George H. W. Bush, Mikhail Gorbachev renunciou em 25 de dezembro e seu país deixou de existir. Apenas algumas semanas depois, em janeiro de 1992, fui com o secretário de Estado James Baker a Moscou. Nós nos encontramos com Boris Yeltsin no Kremlin, onde a bandeira tricolor russa tremulava. Foi surreal.

O poder e a diplomacia americanos estavam no auge naquele momento. As esperanças russas se agitaram com a incerteza e a persistente humilhação. Este foi o prólogo da história emaranhada e repetitiva das relações pós-Guerra Fria entre os dois países, em que os problemas nunca foram exatamente preordenados, mas reapareceram com uma regularidade deprimente. E foi, nesse sentido, que a história da interferência russa na eleição presidencial dos EUA em 2016 começou. Eu desempenhei uma variedade de papéis neste relacionamento turbulento, na embaixada americana em Moscou e em cargos seniores em Washington.

Cheguei a Moscou como diretor-executivo da embaixada dos EUA em 1994, cerca de dois anos e meio depois do colapso da União Soviética. O senso de possibilidade já estava desaparecendo, e as dificuldades de construir algo novo para substituir o antigo sistema soviético estavam se tornando aparentes.

A mudança para uma economia de mercado não apagou os profundos problemas econômicos e sociais do país. A produção industrial havia caído pela metade desde 1991. A produção agrícola também estava caindo. Pelo menos 30% da população vivia abaixo da linha da pobreza, e a inflação eliminou as poucas economias dos aposentados. O sistema de saúde pública entrou em colapso e doenças contagiosas, como a tuberculose e a difteria, ressurgiram.

O presidente Bill Clinton se esforçou para administrar o transtorno de estresse pós-traumático da Rússia, mas seu esforço para a expansão da OTAN ao leste reforçou os ressentimentos russos. Quando saí de Moscou depois da minha primeira passagem, no início de 1996, fiquei preocupado com o eventual ressurgimento de uma Rússia fervilhando em suas próprias queixas e inseguranças. Eu não tinha ideia de que isso aconteceria tão rapidamente, ou que Vladimir Putin – então um burocrata obscuro – emergiria como a personificação daquela peculiar combinação russa de qualidades.

No início de seu mandato no Kremlin, Putin testara, com o presidente George W. Bush, uma forma de parceria adequada à sua visão dos interesses e prerrogativas russos. Ele imaginou uma frente comum na Guerra do Terror pós 11 de setembro, em troca da aceitação da influência especial da Rússia na antiga União Soviética, sem influência da OTAN além do Báltico e sem interferência na política interna da Rússia. Putin fundamentalmente interpretou mal os interesses e a política dos EUA. O governo Bush não desejava – e não via motivo – para trocar qualquer coisa por uma parceria russa contra a al-Qaeda. Tinha pouca inclinação a conceder muito a um poder em declínio.

Em pouco tempo, os excessos do Putinismo começaram a consumir seus sucessos. A corrupção se aprofundou, à medida que Putin procurava lubrificar o controle político e monopolizar constantemente a riqueza dentro de seu círculo. Suas suspeitas sobre os motivos da América também se aprofundaram. A promoção da democracia era, para ele, um cavalo de Troia projetado para promover os interesses geopolíticos americanos às custas da Rússia e erodir a esfera de influência que ele via como um direito de grande poder. Quando a Revolução Laranja na Ucrânia e a Revolução das Rosas na Geórgia derrubaram líderes pró-russos, a neuralgia de Putin se intensificou.

Com Medvedev no Kremlin, Obama teve dificuldades de manter contato com Putin, cujas suspeitas nunca diminuíram, e que ainda estava inclinado a pintar os EUA como uma ameaça para legitimar sua tendência repressiva em seu país. Nós chegamos a uma série de realizações tangíveis: um novo tratado de redução de armas nucleares; um acordo de trânsito militar para o Afeganistão; uma parceria sobre a questão nuclear iraniana. Mas as revoltas da Primavera Árabe enervaram Putin; há relatos de que ele assistiu ao vídeo horripilante da morte do líder líbio Muammar Kadafi – apanhado escondido em uma tubulação de esgoto e morto por rebeldes apoiados pelo Ocidente – repetidas vezes. Internamente, à medida que os preços do petróleo caíam e sua frágil economia dependente de commodities diminuía, ele temia que fosse difícil sustentar seu antigo contrato social, pelo qual exercia controle total sobre a política em troca de garantir padrões de vida crescentes e certa prosperidade.

Quando Putin decidiu voltar à presidência após o término do mandato de Medvedev em 2012, ele foi surpreendido por grandes manifestações de rua, o produto do ressentimento da classe média pelo agravamento da corrupção e das eleições parlamentares fraudulentas. Em um discurso na Europa, a então secretária de Estado Hillary Clinton criticou duramente o governo russo. “O povo russo, como pessoas de todos os lugares”, disse ela, “merece o direito de ter suas vozes ouvidas e seus votos contados”. Putin levou isso para o pessoal e culpou Clinton publicamente por enviar “um sinal” que levou os manifestantes às ruas. Putin tem uma capacidade notável de guardar insultos e ofensas, e reuni-los para encaixar em sua narrativa de que o Ocidente tenta manter a Rússia por baixo. As críticas de Clinton ficaram no topo de sua litania – e ajudariam a gerar um animus que levou diretamente a intromissão de Putin contra sua candidatura na eleição presidencial dos EUA em 2016.

O arco do relacionamento entre os EUA e a Rússia já estava se dobrando em uma direção familiar, assim como, após momentos de esperança, durante o governo Bush e a administração de Bill Clinton antes disso. Em 2014, a crise na Ucrânia arrastou-o para novas profundidades. Depois que o presidente pró-russo da Ucrânia fugiu durante protestos generalizados, Putin anexou a Crimeia e invadiu o Donbass, no leste da Ucrânia. Se ele não podia ter um governo deferente em Kiev, ele queria arquitetar a próxima melhor coisa: uma Ucrânia disfuncional. Durante vários anos, Putin havia desafiado o Ocidente em lugares como a Geórgia e a Ucrânia, onde a Rússia tinha uma participação significativa e um alto apetite por risco. Em 2016, um ano depois de eu deixar o governo, ele viu uma oportunidade para um desafio mais direto ao Ocidente – um ataque à integridade de suas democracias.

Quem perdeu a Rússia? É uma discussão antiga que não entende o ponto. A Rússia nunca foi nossa para perdê-la. Os russos perderam a confiança em si mesmos após a Guerra Fria, e só eles poderiam refazer seu estado e sua economia. Na década de 1990, o país estava em meio a três transformações históricas simultâneas: o colapso do comunismo e a transição para uma economia de mercado e democracia; o colapso do bloco soviético e a segurança que proporcionara à historicamente insegura Rússia; e o colapso da própria União Soviética, e com ela um império construído ao longo de vários séculos. Nada disso poderia ser resolvido em uma única geração, muito menos em alguns anos. E nada disso poderia ser resolvido por pessoas de fora; um maior envolvimento americano não teria sido tolerado.

A sensação de perda e indignidade que veio com a derrota na Guerra Fria era inevitável, não importando quantas vezes nós e os russos tivéssemos dito que o resultado não tinha perdedores, apenas vencedores. Dessa humilhação e da desordem da Rússia de Yeltsin, cresceu a profunda desconfiança e a agressividade latente de Putin.

O padrão nas relações entre os EUA e a Rússia algumas vezes indicava a imutabilidade histórica, como se fossemos obrigados à uma rivalidade e à uma suspeita interminável. Essa visão pode conter um quê de verdade; a história é importante e é difícil de se escapar. Mas a verdade toda é mais complicada e mais prosaica. Cada um de nós teve suas ilusões. Os Estados Unidos pensavam que Moscou acabaria por se acostumar a ser nosso parceiro júnior e, relutantemente, acomodaria a expansão da OTAN até a fronteira com a Ucrânia. E a Rússia sempre assumiu o pior em relação aos motivos americanos e acreditava que sua própria ordem política corrupta e economia não reformada eram uma base sustentável para o poder geopolítico real. Nós tendíamos a alimentar as patologias do outro. Muitas vezes falávamos algo diferente pensando falar a mesma coisa.

Hoje, é claro, o relacionamento americano com Moscou é mais bizarro e mais problemático do que em qualquer outro momento desde o fim da Guerra Fria. Em Helsinque, no verão passado, o presidente Donald Trump esteve ao lado de Putin, absolveu-o da interferência eleitoral e duvidou publicamente das conclusões dos serviços de inteligência e policiais dos Estados Unidos.

O narcisismo de Trump, o desprezo desconcertante pela história, e o desarmamento diplomático unilateral são um triângulo trágico em um momento em que a Rússia representa ameaças inimagináveis há um quarto de século. Ele parece alheio à realidade de que “se dar bem” com rivais como Putin não é o objetivo da diplomacia, onde é tudo sobre a promoção de interesses tangíveis.

Gerenciar as relações com a Rússia será um longo jogo, conduzido dentro de uma faixa relativamente estreita de possibilidades. Navegar por uma rivalidade de grande poder exige diplomacia com tato – manobrando na área cinzenta entre a paz e a guerra; demonstrando uma compreensão dos limites do possível; construindo influências; explorando motivos em comum onde podemos encontrá-los; e pressionando com firmeza e persistência onde não podemos.

O caminho à frente com a Rússia ficará mais tortuoso antes de ficar mais fácil. Devemos percorrê-lo sem ilusões, atentos aos interesses e sensibilidades da Rússia, sem culpa de nossos valores e confiantes em nossas próprias forças duradouras. Não devemos ceder a Putin – ou desistir da Rússia além dele.