15 de junho de 2022

QUEM FOI BÁRBARA PEREIRA DE ALENCAR, REVOLUCIONÁRIA E PRIMEIRA PRESA POLÍTICA DO BRASIL!

(Fernanda Mena – Folha de SP, 11) Inimiga do rei, agitadora, revoltosa, conspiradora, liberal, sanguínea, nervosa, mulher-macho.

Uma rica sinhá sertaneja desafiou os costumes e os tabus de seu tempo e também o poder da Coroa portuguesa ao participar da articulação política que proclamou uma república no Vale do Cariri, onde o Ceará encontra Pernambuco.

Tamanha ousadia lhe rendeu a série de alcunhas que abrem este texto, mas também a denominação de patriota, e fez dela a primeira presa política do Brasil –ainda que pouca gente tenha aprendido sobre ela nas aulas de história.

Bárbara Pereira de Alencar era viúva, tinha 57 anos e cinco filhos criados quando tomou parte ativa do movimento que incendiou o Nordeste brasileiro, no rastilho das ideias iluministas de liberdade, igualdade e participação política que desembarcavam no porto do Recife.

Única mulher branca e rica proprietária de terras a participar da Revolução Pernambucana de 1817, dona Bárbara, como era conhecida, integrou a articulação precursora da Independência e da República no Brasil, uma luta que marcou sua trajetória de vitórias, derrotas e sacrifícios, antes de relegá-la ao esquecimento.

A Revolução Pernambucana foi um movimento que se opôs, de uma só vez, ao domínio português e ao regime monarquista e elaborou uma ideia de pátria para além do antigo regime e do sistema colonial, ainda que paradoxalmente mantivesse intacto o estatuto da escravidão.

Os insurgentes declararam independência da então província de Pernambuco cinco anos antes do suposto grito de dom Pedro 1º às margens do rio Ipiranga, em 1822. Derrubada a monarquia, instauraram ali uma república mais de 70 anos antes de Deodoro da Fonseca, o marechal, expulsar o imperador e a família real do Brasil em 1889.

O chamado revolucionário bateu à porta de dona Bárbara na noite de 29 de abril de 1817, quando seu filho mais novo, o então seminarista José Martiniano de Alencar, apareceu inesperadamente no Crato.

Ele havia viajado mais de 600 quilômetros desde o Seminário de Olinda, que havia se tornado uma espécie de centro irradiador das ideias iluministas derivadas da Guerra de Independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789-1799).

O seminário era reduto de freis próximos da família Alencar e, particularmente, de Bárbara. Sua pregação liberal era recebida com entusiasmo pela aristocracia agrária brasileira da região, incomodada com a alta de impostos da Coroa e com o deslocamento do eixo econômico e político da colônia para o Rio de Janeiro, onde aportara a família real portuguesa em 1808, fugida das invasões de Napoleão Bonaparte na Europa.

Naquela noite de abril, o então subdiácono José Martiniano de Alencar chegou à casa da mãe, no sítio do Pau-Seco, não só como filho, mas também como emissário do novo governo revolucionário instaurado no Recife.

Sua missão era levar a conspiração ao Ceará e libertar a província do domínio português a partir do Vale do Cariri. Há registros de que sua mãe, Bárbara, teria atuado na costura de apoio entre os poderosos da região.

A articulação partia do princípio de que a vanguarda política tinha como limite a manutenção da escravatura –uma condição para colher apoio no mando local, todo escravocrata, assim como os Alencar.

Dias depois, José Martiniano deu início à insurreição política durante a missa na igreja matriz do Crato, quando subiu ao púlpito e leu o manifesto dos rebeldes patriotas.

Aplaudido, hasteou ali a bandeira branca da independência e seguiu com o público da missa para a frente da Câmara, onde o grupo deu vivas à República e “morras ao rei”, para escândalo dos apoiadores da Coroa.

José Martiniano seria depois sacralizado não pela proclamação desta República do Crato, mas como senador do Império, presidente da província do Ceará e pai do escritor romântico José de Alencar, autor de obras clássicas da literatura brasileira como “O Guarani” e “Senhora”.

A reação foi rápida, e seu foco era prender os líderes da revolução. Três deles eram filhos de Bárbara. Ela mesma, a única mulher da lista de insurgentes, foi classificada pelo juiz como “muito culpada”.

“Bárbara foi acusada de queimar papéis”, conta a historiadora Danielly Teles, pesquisadora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). “Sabemos muito pouco sobre o papel dela na revolução. Bárbara é uma personagem construída e fica difícil ter noção do que ela realmente fez”, aponta.

“A participação política feminina nesse período, em que a mulher se movimenta de acordo com o que é possível, não se resume apenas a pegar em armas”, explica Teles, autora de artigo sobre Bárbara que integra o quinto dos seis volumes da coletânea “Brasil: Independências”.

Para a historiadora, Bárbara de Alencar pode ser considerada uma mulher revolucionária da época, ainda que não tenha sido a única a se engajar em lutas políticas. “Ela representou a imagem de uma mulher forte, do sertão, que fugia dos padrões estabelecidos. Uma matriarca”, diz.

O movimento republicano pernambucano foi chamado pelo historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) de a mais “linda, inesquecível, arrebatadora e inútil das revoluções brasileiras” e resistiu por 75 dias à repressão das armas da Coroa Portuguesa antes de sucumbir.

Já sua versão cearense, conspirada e celebrada em serões, jantares e encontros no salão da casa de dona Bárbara, teve vida bem mais curta: a República do Crato durou apenas oito dias até que as ordens da Coroa levassem ao hasteamento de sua bandeira onde antes se via a flâmula dos revolucionários.

A contrarrevolução foi ágil, violenta e cruel. Levou Bárbara e três de seus filhos para as masmorras do quartel-general da capital cearense, a fortaleza Nossa Senhora de Assunção, construção que batizou a cidade.

Bárbara, uma mulher descrita como alta e forte, foi tratada como troféu e exibida pedagogicamente a cada povoado ao longo dos 500 quilômetros que separam o Vale do Cariri de Fortaleza. A viúva rebelde percorreu o trajeto acorrentada e a galope, desmilinguida sob o sol de verão do sertão cearense. Esse era só o começo de seu calvário.

Nascida na cidade de Exú (Pernambuco) em 1760 em uma família rica, proprietária de terras e de negros escravizados, Bárbara de Alencar cresceu acostumada ao poder e se tornou uma mulher livre e emancipada para os padrões da época.

“Era uma mulher decidida, abastada, que aprendeu desde cedo a ser dona do próprio nariz”, diz a jornalista cearense Ariadne Araújo, autora de “Bárbara de Alencar”, para o qual, afirma, montou um quebra-cabeças sobre a heroína sertaneja diante do desafio de obter informações a seu respeito.

“Ela se casou muito cedo e com um homem 30 anos mais velho, a contragosto do pai, o que demonstrava sua personalidade obstinada”, afirma.

Casada, mudou-se para o sítio Pau Seco e passou a administrar o engenho de cachaça e rapadura e a produzir tachos contra a vontade do marido. Para o pensamento da época, essas eram atividades para homens, o que rendeu a Bárbara a imagem de mulher-macho.

“Nessa época, era o homem quem se colocava publicamente e nos negócios, mas Bárbara, ao contrário, não aceitava papel de bastidor”, diz Araújo. “Ainda assim, ela não era totalmente transgressora: estava na vanguarda de alguns comportamentos e na tradição de outros. Não era abolicionista, mas era tratada como madrinha dos seus escravos, por exemplo.”

O escritor cearense Gylmar Chaves, que pesquisa a vida de Bárbara de Alencar há mais de dez anos para uma biografia, conta que ela mantinha escravizados muito próximos.

Um deles, conhecido como Barnabé, teria sido pego e torturado pelos soldados da Coroa para revelar o paradeiro da sinhá, fugida de suas terras. “Para não traí-la, ele decepou com os dentes a própria língua e a cuspiu aos pés do torturador”, diz Chaves.

De rica e poderosa proprietária, Bárbara passou quase quatro anos em masmorras e calabouços fétidos de Fortaleza, Recife e Salvador, com o corpo machucado pelos grilhões de ferro que carregava, enfraquecida pela má alimentação e pelas crueldades de alguns carcereiros.

Todos os seus bens foram confiscados pela Coroa e leiloados. A principal propriedade da família foi arrendada pelo rival e delator dos revolucionários, padre Francisco Gonçalves Martins, segundo Araújo.

No final de 1820, Bárbara foi posta em liberdade. Também soltos, seus dois filhos mais velhos, Tristão e Carlos, retomaram a luta revolucionária. Queriam se libertar de Portugal e, portanto, derrubar dom Pedro 1º.

Outorgada em 1824, a primeira Constituição na nação recém-independente não foi aceita pelos pernambucanos, que criaram a Confederação do Equador, organizada por frei Joaquim do Amor Divino Rabelo (1779-1825), mais conhecido como frei Caneca.

A Confederação tinha em Tristão uma liderança importante e reunia outras províncias do atual Nordeste, como Piauí, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, em um regime federalista em que cada unidade manteria sua soberania e autonomia, a exemplo dos EUA.

Dom Pedro se organizou para reprimir os confederados e contratou mercenários ingleses, que promoveram um banho de sangue no Recife, executado por um exército de 3.500 homens. Segundo Araújo, os ingleses saquearam e incendiaram a capital pernambucana, último bastião da resistência, mas lideranças confederadas ainda não aceitaram a derrota.

Tristão, considerado presidente da Confederação no Ceará, foi morto dias depois pelas tropas imperialistas. Seu corpo mutilado ficou exposto por dias, postado de pé, com a mão direita decepada. Carlos, outro filho de Bárbara, também foi brutalmente assassinado, assim como outros 11 parentes do clã Alencar.

“As manifestações de poder da repressão da Coroa foram muito mais fortes e violentas em 1817 e em 1824 que durante a Inconfidência Mineira [1789]”, afirma Maria Eduarda Marques, doutora em história e curadora da exposição “Revolução de 1817”, organizada na Biblioteca Nacional por ocasião do bicentenário do levante iniciado em Pernambuco.

Exilada em uma fazenda entre o Ceará e o Piauí, Bárbara de Alencar morreu em 1832, aos 72 anos de idade. Seus restos foram sepultados na capela de Itaguá, local depois batizado de Poço das Pedras, em Campos Sales, no Ceará.

Para Marques, o Brasil vive um momento de resgate de nomes da história, e Bárbara emerge como uma figura de peso nessas descobertas. “Estamos desmistificando a história mainstream, o que abre possibilidades de uma visão mais diversificada da história brasileira e menos centrada no heroísmo clássico e nas figuras masculinas e brancas.”

Em um artigo ainda inédito, Danielly Teles lembra que, em 2014, a então presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou uma lei que ordenava que Bárbara Pereira de Alencar integrasse o Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília, fazendo dela uma das poucas mulheres a receber a homenagem.

Para a pesquisadora, Bárbara de Alencar é “uma mulher que buscou pensar e fazer política, se movimentando e articulando relações em uma sociedade construída sobre as bases de um sistema de relações desiguais”.