19 de março de 2021

HISTORIADOR NARRA ALIANÇA NAZI-SOVIÉTICA!

(Paulo Nogueira – O Estado de S. Paulo, 14) Numa era de tal polarização que cada lado só vê o que quer ver (geralmente, miragens), de cancelamentos e fake news, uma vacina com eficácia de 100 por cento é ler historiografia. Pois, por incrível que pareça, a história não começou ontem, e nem mesmo com o WhatsApp.

O Pacto do Diabo, de Roger Moorhouse, passa a pente fino o tratado de não agressão de 23 de agosto de 1939 entre a URSS e a Alemanha nazista. Foi assinado em Moscou, com a presença de Stalin e dos ministros das Relações Exteriores dos respectivos países, Molotov e Ribbentrop. O pacto embasbacou tanto a direita quanto a esquerda, já que fascismo e comunismo eram teoricamente antípodas ideológicas, e não farinha do mesmo saco totalitário. Como Stalin rosnou, ao brindar à saúde de Hitler: “Temos jogado baldes de m* na cabeça uns dos outros, e nossos publicitários precisam convencer o povo que tudo foi esquecido e perdoado”. Nove dias depois a Wehrmacht invadiu a metade oeste da Polônia, iniciando a 2ª Guerra Mundial, e o Exército Vermelho anexou irmãmente a outra metade.

Inúmeros comunistas ocidentais, enojados com o mico, deixaram os PCs, no maior êxodo partidário antes da invasão soviética Hungria, em 1956, e do esmagamento da Primavera de Praga, em 1968. Houve, claro, muitos que só deram um sorriso amarelo, como o historiador Eric Hobsbawn. George Bernard Shaw derreteu-se: “Hitler está agora sob a poderosa influência de Stalin, que ama a paz”. Já George Orwell chutou o balde: “Esse pacto minou não só o básico apelo ‘antifascista’ do comunismo, mas também sua queixa contra o status quo. E os comunistas, que no passado amaldiçoaram seus governos burgueses por apaziguarem Hitler”. Em 1984, um mudança oportunista de alianças obriga o herói Winston Smith a fazer horas extras para reescrever os jornais e fingir que aquela amizade sempre existiu. Enquanto isso, em Munique, o jardim da sede do Partido Nacional-Socialista ficou juncado de distintivos jogados por nazistas não menos nauseados.

Para Hitler, o acordo permitia atacar tranquilamente a Europa Ocidental, sem se preocupar com ameaças do leste – e recebendo “commodities” russas (cereais, metais, petróleo) a preços de Black Friday. Para Stalin, as vantagens eram a expansão de influência, a transmissão da tecnologia bélica alemã e a regeneração do Exército Vermelho, mutilado pelos expurgos promovidos pelo próprio ditador. Alguns presos durante expurgos stalinistas, foram direto do Gulag para os campos de concentração hitlerianos – caso da escritora Margarete Buber-Neumann.

E havia o “protocolo secreto”, que Moscou não admitiu até 1989 (e que Putin considerou “imoral, mas compreensível”). Essas cláusulas ditavam não apenas a partilha da Polônia, mas também que os estados bálticos, então independentes (Finlândia, Letônia, Lituânia e Estônia), mais partes da Romênia, cairiam no colinho do Kremlin.

Alguns articulistas cornetaram que Moorhouse dá mais espaço às atrocidades comunistas que às nazistas. Bem, há no livro carnificinas suficientes – e soa plausível a alegação de que a barbárie hitleriana é muito mais conhecida que a stalinista. Quem nunca ouviu falar de Auschwitz, mas quantos sabem de Kolimá? E os retratos individuais de Pacto do Diabo são magistrais, como os de Ribbentrop e Molotov, dois bajuladores do quilométrico cordão de puxa-sacos dos autocratas de bigodão e bigodinho.

Entre as numerosas ignomínias mútuas avulta o massacre na floresta de Katyn, em maio de 1941, quando 22 mil poloneses (entre prisioneiros de guerra, professores, padres e intelectuais) foram fuzilados e lançados a uma mefistofélica vala comum. Alemães e soviéticos empurraram a batata quente de um para o outro. Hoje, a responsabilidade está estabelecida: a ordem foi de Lavrenti Beria, chefe da polícia secreta de Stalin.

O pacto legou outra consequência duradoura, de ordem conceitual: a ideia da correspondência essencial entre comunismo e fascismo. Sem falar na afinidade totalitária (já assinalada por Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo), há os sistemáticos crimes contra a humanidade (como definiu memoravelmente André Frossard, “quando se mata alguém sob o pretexto de que ele nasceu”).

Estima-se que houve 96 milhões de mortes na URSS, China, Camboja, Coreia do Norte, Vietnã e Europa Oriental. Os nazistas mataram menos (25 milhões), mas é verdade que os comunistas começaram mais cedo e duraram mais. A diferença está no anátema das vítimas dos dois regimes: um, baseado na “raça”; o outro, na “classe social”. Sem querer passar um pano infame na infâmia, talvez subsista um – quem sabe bizantino – contraste, como notou o saudoso Tony Judt. Ou seja, aquele entre um regime que exterminou pessoas na busca desumana de um objetivo arbitrário, e outro cujo objetivo foi o próprio extermínio.