O DISCURSO E A PRÁTICA!
(Editorial O Estado de S. Paulo, 25) O TechCrunch, site americano especializado em tecnologia, revelou que o Facebook paga US$ 20 por mês a pessoas de 13 anos a 35 anos pelo uso do aplicativo Research, que dá à empresa de Mark Zuckerberg acesso a todo o histórico de telefone e web dos usuários, incluindo atividade criptografada, mensagens e e-mails privados. O aplicativo permite também que o Facebook veja como os amigos dessas pessoas, que não consentiram em coletar seus dados, interagiram com esses usuários. Houve casos, inclusive, em que o programa pediu que os usuários compartilhassem capturas de tela de suas compras na concorrente Amazon. A descoberta do TechCrunch mostrou que o compromisso repetido nos últimos tempos pelo Facebook, de que está tentando melhorar o seu relacionamento com os usuários, dentro de um marco de maior respeito à intimidade e à privacidade, é ainda mero discurso, muito distante da realidade.
Em primeiro lugar, está o problema do frágil consentimento. Na prática, os usuários não sabem o que estão autorizando. O aplicativo Research dá acesso total às ações e informações do usuário em seu smartphone. No entanto, o contrato diz apenas que o usuário, ao aceitar as condições, está “permitindo que nossos clientes coletem informações sobre quais aplicativos você tem no seu celular, como e quando você os utiliza, atividade de navegação e até mesmo quando o aplicativo utiliza criptografia”.
“Trata-se de um programa que dá ao Facebook acesso contínuo dos dados mais sensíveis do usuário. Muitos não serão nem capazes de dar seu consentimento a esse acordo, porque não há nem como explicar toda a dimensão do poder que é entregue ao Facebook quando um contrato desses é assinado”, disse Will Strafach, especialista em segurança de dados, ao TechCrunch.
Além disso, o usuário não tem consciência de que, com o uso do aplicativo, é ao Facebook que está dando o acesso de seus dados. O programa é administrado por outras empresas, Applause, BetaBound e uTest, que prestam serviços de testes de aplicativos. Com isso, a participação da rede social no projeto de pesquisa fica oculta.
Aspecto especialmente negativo para o Facebook foi a revelação de que a empresa, ao criar o Research, praticamente replicou a infraestrutura e o código do Onavo, um aplicativo espião que já havia sido banido pela Apple, por violar suas regras. Ou seja, o Facebook deu continuidade a práticas que reconhecidamente iam muito além do razoável. Em 2017, o Wall Street Journal mostrou que o aplicativo Onavo foi essencial para o Facebook espionar a empresa Snapchat, antes de lançar ferramentas de mensagens semelhantes à da rival, como o Instagram Stories e o WhatsApp Status. A startup que criou o Onavo foi comprada, em 2013, pelo Facebook por US$ 120 milhões.
Diante da descoberta sobre o funcionamento do Research, o Facebook alegou que o aplicativo nada mais era do que um serviço de pesquisa de mercado, permitindo que a empresa detectasse ameaças competitivas. Isso não serve de desculpa, pois toda pesquisa deve respeitar a privacidade e contar com a plena anuência dos usuários. Logo após o
TechCrunch ter noticiado sobre o aplicativo, o Facebook tirou do ar a versão iOS.
Também foi revelado recentemente que o Google manteve um aplicativo de monitoramento similar ao Research, chamado Screenwise Meter. Os usuários ganhavam valecompras em troca de informações sobre o modo como usam a internet e o smartphone. O aplicativo do Google, no entanto, não tinha acesso a dados criptografados.
A tecnologia oferece muitas possibilidades para as empresas conhecerem seus clientes e concorrentes. Ponto fundamental em todo esse processo é a transparência. Só assim o usuário poderá ter a segurança de não ser transformado em peça manipulável. Sua privacidade e sua liberdade são – devem ser – fundamentais.