26 de novembro de 2018

ILUSTRÍSSIMA (FOLHA DE S.PAULO, 25) ENTREVISTA LUÍS CLÁUDIO VILLAFAÑE G. SANTOS, HISTORIADOR E BIÓGRAFO DO BARÃO DO RIO BRANCO!

Rio Branco era monarquista, filho de um político importante do Império e ainda reteve o título no nome durante a República. O que a sua trajetória revela sobre a transição de regime e o comportamento da elite política da época?

R- Rio Branco foi um dos protagonistas da consolidação da “República dos Conselheiros”. No plano intelectual, houve uma recuperação de parte dos valores e hábitos do período monárquico. Nos primeiros anos da República, tinha havido um grande empenho em se diferenciar da monarquia e apresentar o 15 de Novembro como uma grande ruptura. Quando o barão virou chanceler, em 1902, isso já tinha esfriado e, pouco a pouco, essa ideia de ruptura radical foi sendo matizada e a colonização portuguesa e o Império passaram a ser revalorizados. Rio Branco pode ser visto como um símbolo dessa reacomodação, inclusive porque —como eu mostro no livro— ele trabalhou ativamente na construção dessa narrativa de continuidade de políticas e valores.

Depois de obter um cargo no exterior por prestígio do pai, a sua ascensão na diplomacia se deu principalmente pelo excelente desempenho na negociação das fronteiras. Por que ele foi tão exitoso?

R- Desde menino, ele se interessou pela história e pela geografia do Brasil e na maturidade se tornou um grande erudito.  Com as duas arbitragens em que atuou como advogado aproveitou esse cabedal, mas também soube agir nas demais dimensões da questão: com argumentos jurídicos sólidos e com uma extraordinária capacidade para promover a causa brasileira em todos os contextos. Na arbitragem sobre o Amapá, por exemplo, ele usou o naturalista Emilio Goeldi como espião para descobrir como os técnicos suíços estavam analisando a questão. Sem que eles soubessem que Goeldi estava sob ordens de Rio Branco, Goeldi forneceu informações que favoreciam o Brasil a seus compatriotas.  No caso das negociações com a Bolívia e o Peru, mais do que conhecer os antecedentes históricos e geográficos da questão, Rio Branco mostrou grande capacidade política, e não só no plano diplomático. A questão do Acre também foi um intricado problema de política interna.

Há muita especulação sobre a compra do Acre, envolvendo desde o suborno ao presidente da Bolívia com um cavalo, versão já mencionada por Evo Morales, até a suposta existência de documentos secretos. Há algo de verídico nesses rumores? Falta esclarecer algo dessa negociação?

R- Seriam dois cavalos, dados de presente ao general Pando, então presidente da Bolívia, depois de assinado o tratado. É possível —até provável— que em alguma circunstância tenha havido esse gesto. Trocas de presentes são comuns na diplomacia até hoje, mas isso, se ocorreu, não tem nada a ver com o resultado da negociação. O Arquivo Histórico do Itamaraty está aberto para os pesquisadores há muitos anos e não há documento que indique uma negociação escusa. O resultado se explica por uma trama intricada de interesses, inclusive das elites bolivianas, que tinham como objetivo crucial exportar os minérios bolivianos. E, naquele momento, as exportações estavam muito prejudicadas com as disputas com o Brasil e o com o Chile, o que dificultava a saída das exportações; daí a ferrovia Madeira-Mamoré e a livre circulação pelos rios brasileiros como moeda de troca.

O seu livro também aborda a tensa e menos conhecida negociação com o Peru. O que estava em jogo?

R- Esse é um ponto importantíssimo. Rio Branco, que se assustou com a possibilidade da não aprovação do Tratado de Petrópolis no Congresso, garantiu publicamente que a questão com o Peru não seria um problema. Mas o Peru queria não só todo o Acre como também grande parte do sul do estado do Amazonas.  A disputa entre a Bolívia e o Peru sobre quem teria a posse do Acre (entre outros territórios) só acabou em 1909. Com o Tratado de Petrópolis, de 1903, o Brasil poderia ter comprado o Acre de quem não era seu verdadeiro dono e ver-se obrigado a negociar tudo de novo, depois de ter dado 2 milhões de libras e partes do Mato Grosso à Bolívia. De fato, o resultado da arbitragem que resolveu a questão entre a Bolívia e o Peru determinou que parte do Acre, que tínhamos adquirido da Bolívia, era peruana. A situação da negociação com o Peru era muito difícil também porque como Rio Branco havia anunciado publicamente que na disputa com o Peru nosso direito era indisputável, qualquer concessão seria uma derrota política terrível. Assim, a negociação durou cinco anos e quase houve uma guerra. O barão chegou a assinar um tratado secreto de aliança militar com o Equador para juntos enfrentarem o Peru, algo que nenhum biógrafo jamais mencionou. Como disse, no limite, se o laudo arbitral que decidiu a questão entre a Bolívia e o Peru e sobre o qual não tínhamos nenhum controle, tivesse dado todo o território do Acre ao Peru o Tratado de Petrópolis teria sido pior do que inútil; teria dado à Bolívia, a troco de nada, 2 milhões de libras, territórios brasileiros e outras concessões… Imagina o desastre.  Para ocultar essa complicação que, de certa forma, ele mesmo, se não criou, agudizou, o próprio Rio Branco inaugurou uma linha de interpretação historiográfica que trata a negociação com o Peru como algo menor, quase burocrático, e desvinculado da questão com a Bolívia.

A negociação do Tratado de Petrópolis ocorreu sob grande polêmica, principalmente pelo Brasil optar pela negociação direta, em vez da arbitragem. Por que o barão preferiu não seguir o caminho do qual havia saído vitorioso duas vezes?

R- Havia um tratado anterior, de 1867, entre o Brasil e a Bolívia. Rio Branco preferiu não tentar a sorte em uma arbitragem, basicamente, porque tinha a convicção de que certamente perderíamos a parte sul do Acre, área sobre a qual não haveria nenhuma maneira de interpretar favoravelmente ao Brasil as disposições do tratado de 1867. Mesmo para o restante do território era muito duvidoso que tivéssemos êxito. A questão está bem desenvolvida no livro. Foi difícil convencer a opinião pública e setores da imprensa e da classe política de que, depois de vencer disputas contra a Argentina pelo território de Palmas, contra a França pelo Amapá, e contra a Inglaterra pela ilha da Trindade, poderíamos perder contra a Bolívia. Como se vê, havia falta de bom senso e mesmo um certo preconceito e pouco caso pela Bolívia.

O período do Barão no comando da diplomacia ocorreu durante a chamada Era dos Impérios e a ascensão norte-americana. Qual era a visão dele sobre o lugar do Brasil no mundo?

R- Rio Branco era um conservador e passou um par de décadas na Europa e um par de anos nos Estados Unidos. Em termos gerais, ele compartia a visão de mundo das elites europeias e estadunidenses. Ele entendia o funcionamento do sistema internacional a partir do domínio das grandes potências que estabelecia uma hierarquia entre as nações —ainda que sujeita a alterações no tempo. A posição de cada país nessa hierarquia determinava o conjunto de regras que seriam aplicados a cada caso.  Assim, a África, por exemplo, foi considerada “terra de ninguém” e foi repartida entre as potências. Os países que não atendiam aos critérios de “civilização” —instáveis politicamente ou que deixavam de pagar suas dívidas— estavam sujeitos a intervenções consideradas legítimas. Os países considerados “civilizados”, ainda que relativamente menos poderosos, estavam a salvo das expressões duras do imperialismo. Nesse contexto, a preocupação extremada com a imagem do Brasil não era somente uma expressão da vaidade de Rio Branco, pois se constituía em um elemento importante nas relações com as potências.

O livro revela que Rio Branco fez rápida fortuna no consulado de Liverpool, de US$ 160 mil a US$ 1,2 milhão em seis anos, em valores corrigidos. Qual é a origem desse dinheiro?

R- O Estado brasileiro era tremendamente patrimonial. Durante o Império, o grosso da renda arrecadada pelos consulados ia para o bolso dos cônsules. O consulado em Liverpool era um dos empregos mais rendosos do Brasil, pois por aquele porto passava a maior parte dos navios que iam ou vinham do Brasil e ele chefiou o consulado por 19 anos.  Mais rendoso do que isso, só a função de ministro em Londres, ocupada por décadas pelo barão de Penedo: ele embolsava —legalmente— uma porcentagem dos empréstimos internacionais tomados pelo Brasil. Quanto mais o país se endividava, mais Penedo enriquecia.

O senhor faz parte do corpo diplomático que o Barão tratou de profissionalizar. Qual é o legado dele para o Itamaraty de hoje?

R- Em termos objetivos, ter concluído com êxito todas as questões de limites (terrestres) foi um aporte inestimável. Esse tema segue central e inconcluso em muitos países e, em alguns casos, absorve uma parcela considerável das energias da diplomacia. Em termos mais amplos, as vitórias do barão e seu carisma se tornaram fonte extraordinária de legitimidade para o Itamaraty perante a sociedade. A ideia de excelência do Itamaraty começou com ele. Até então não havia uma percepção especialmente positiva dos diplomatas ou da diplomacia brasileira.

Rio Branco não conseguiu evitar uma corrida armamentista com a Argentina e teve de lidar com várias situações de tensão entre os dois países. O que explica o recrudescimento da rivalidade naquele período?

R- Não se pode dizer que Rio Branco tenha provocado a corrida armamentista entre o Brasil e a Argentina no início do século 20, mas ele era, sim, partidário de que o Brasil recuperasse a preponderância militar na América do Sul que o país tinha desfrutado no Império. Houve momentos de imensa tensão entre os dois países e chegou a haver um plano na Argentina de fazer uma invasão militar relâmpago do Rio de Janeiro. Uma das poucas críticas que se faz a Rio Branco é que ele poderia ter manejado melhor as relações com Buenos Aires. Eu não só acho que essa crítica procede, como dedico muitas páginas para discutir isso a fundo.

O senhor dedica parte do livro para detalhar a relação do barão com a imprensa. Como ela funcionava na época e de que forma ele usou a seu favor?

R- A trajetória de Rio Branco no jornalismo foi longa. Ainda como estudante, ele atuou como correspondente de um jornal estrangeiro, isso em 1865. Depois, foi sucessivamente um combativo jornalista “de oposição”, cronista social, jornalista “governista”, editor e, na década de 1890, uma das cabeças na fundação do Jornal do Brasil. Ele também cultivou uma relação íntima com o Jornal do Comércio que foi do Império à República. Como chanceler, ele travou uma verdadeira guerra contra o Correio da Manhã e o seu célebre editor Edmundo Bittencourt; e movimentou —contra ou a favor— a imprensa carioca e brasileira no início do século 20, usando de todos os meios: desde seu carisma a pressões sobre jornalistas e editores, favores pessoais e mesmo pagamentos a jornais e jornalistas com recursos públicos. De forma indireta, um dos grandes temas do livro é justamente a relação entre imprensa e poder no jornalismo brasileiro do fim do Império e do início da República.