29 de novembro de 2019

CONHEÇA A ECONOMISTA DE ESQUERDA QUE PROPÕE UMA NOVA HISTÓRIA SOBRE O CAPITALISMO!

(Katy Lederer – The New York Times/Folha de S.Paulo, 28) Mariana Mazzucato estava com muito frio. Do lado de fora, era um dia úmido de final de setembro em Manhattan, mas do lado de dentro –em um espaço para conferências da Universidade Columbia, repleto de cientistas, acadêmicos e empresários que assessoram a ONU sobre sustentabilidade—, o ar condicionado estava funcionando a toda força.

Para uma sala lotada de especialistas que discutiam os problemas sociais e ambientais mais urgentes do planeta, isso não só era desconfortável como contrariava a mensagem pretendida. Não importa como estivessem vestidas –ternos, saris, lenços de cabeça–, as pessoas pareciam encolhidas, resguardadas.

Durante uma pausa, Mazzucato enviou um assistente para pedir que o ar condicionado fosse desligado. Como é que mudaremos alguma coisa, ela indagou em voz alta, “se não nos rebelarmos já no primeiro dia?”

Mazzucato, que tem um doutorado em economia e leciona no University College de Londres, está tentando mudar algo de fundamental na maneira pela qual a sociedade pensa sobre valor econômico.

Embora muitos de seus colegas venham expressando desdém pelo capitalismo, recentemente, ela prefere reimaginar suas premissas básicas. De onde vem o crescimento? Qual é a fonte da inovação? Como o Estado e o setor privado podem trabalhar juntos a fim de criar as economias dinâmicas que desejamos?

Ela faz perguntas sobre o capitalismo que deixamos de fazer muito tempo atrás. As respostas que vem propondo podem permitir que superemos os desafios mais difíceis de nossa era.

Em dois livros sobre teoria política e econômica moderna – “The Entrepreneurial State” [O Estado Empreendedor] (2013) e “The Value of Everything” [O Valor de Tudo] (2018) –Mazzucato argumenta contra a visão binária aceita há muito tempo sobre um setor privado ágil e um Estado lento e ineficiente.

Mencionando mercados e tecnologias como a internet, o iPhone e a energia limpa –todas as quais foram bancadas por dinheiro público, em estágios cruciais de seu desenvolvimento–, ela diz que o Estado vem sendo um propulsor de crescimento e inovação sem receber o devido reconhecimento.

“Pessoalmente, acredito que a esquerda está perdendo em todo o mundo”, ela disse em entrevista, “porque se concentra demais em redistribuição e não o suficiente na criação de riqueza”.

A mensagem dela atraiu diversos políticos americanos. A senadora Elizabeth Warren, de Massachusetts, candidata à indicação presidencial pelo Partido Democrata, incorporou o pensamento de Mazzucato em diversos dos anúncios de sua plataforma de campanha, incluindo o de que ela promoveria o uso de “verbas federais de pesquisa e desenvolvimento para criar empregos no país e promover o investimento sustentável no futuro”, e em outra proposta que autorizaria o governo a receber retorno sobre seus investimentos no setor farmacêutico.

Mazzucato também vem trabalhando como consultora da deputada federal Alexandria Ocasio-Cortez, democrata de Nova York, e de sua equipe sobre maneiras de implementar uma política industrial mais ativa que possa servir como catalisador para um “Green New Deal”.

Mesmo os republicanos encontraram ideias que os agradam no trabalho da economista. Em maio, o senador Marco Rubio, republicano da Flórida, creditou o trabalho de Mazzucato diversas vezes em “Investimento Americano no Século 21”, sua proposta para impulsionar o crescimento econômico.

“Precisamos construir uma economia que possa ver além da pressão por compreender a criação de valor em termos financeiros estreitos e de curto prazo”, ele escreveu na introdução da proposta, “e em lugar disso visualizar um futuro que mereça investimento em longo prazo”.

Formalmente, o evento da ONU em setembro era uma reunião do conselho de liderança da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN, na sigla em inglês). Trata-se de um órgão de cerca de 90 especialistas que assessoram a organização sobre tópicos como igualdade de gêneros, pobreza e aquecimento global. A maior parte dos participantes tem conhecimentos técnicos específicos –Mazzucato cumprimentou um colega, em dado momento, dizendo “você é o cara do oceano”–, mas ela oferece alguma coisa tanto ampla quanto escassa: uma história nova e interessante sobre como criar um futuro desejável.

Nascida na Itália –sua família deixou o país quando ela tinha cinco anos–, Mazzucato é filha de um físico nuclear da Universidade de Princeton e de uma mãe dona de casa, que não falava inglês quando se mudou para os Estados Unidos.

Ela conseguiu seu doutorado em 1999 na New School for Social Research, e começou a trabalhar em “The Entrepreneurial State” depois da crise financeira de 2008. Governos de toda a Europa começaram a instituir políticas de austeridade em nome de fomentar a inovação –um arrazoado que ela considerava não só dúbio mas economicamente destrutivo.

“Há toda uma agenda neoliberal”, ela disse, se referindo aos preceitos recebidos quanto ao livre mercado, no sentido de que cortar orçamentos estimula o crescimento econômico. “E a maneira pela qual a teoria tradicional fomentou isso, ou ao menos não contestou isso, gerou uma espécie de estranha simbiose entre o pensamento econômico dominante e políticas públicas estúpidas”.

Mazzucato questiona muitos dos preceitos da teoria econômica neoclássica lecionada na maioria dos departamentos acadêmicos de economia: sua suposição de que as forças da oferta e procura resultam em um equilíbrio de mercado, a equiparação de preço a valor, e – talvez acima de tudo -, a relegação do Estado ao posto de investidor de último recurso, encarregado apenas de corrigir os fracassos do mercado.

Ela originou e popularizou a descrição do Estado como “investidor de primeiro recurso”, concebendo novo mercados e oferecendo capital de longo prazo, ou capital “paciente”, em estágios iniciais de desenvolvimento.

De modos importantes, o trabalho de Mazzucato se assemelha ao de um crítico literário ou retórico, tanto quanto ao de um economista. Ela escreveu sobre travar o que o historiador Tony Judt classifica como “uma batalha discursiva”, e esquadrinha termos descritivos – palavras como “conserto” e “gasto”, em oposição a “criação” e “investimento” – que foram usadas para solapar os atrativos do Estado como agente econômico dinâmico. “Se continuarmos a retratar o Estado apenas como facilitador e administrador, e lhe dissermos que pare de sonhar”, ela escreve, “no final é isso que teremos”.

Como uma figura carismática em um campo contencioso que não cria muitas estrelas – ela recentemente foi tema de um perfil na edição britânica da revista Wired–, Mazzucato tem seus críticos. Ela costuma ser convidada regularmente para os programas noturnos de entrevistas britânicos, onde se defronta com proponentes da saída britânica do Reino Unido ou céticos quanto à ideia de um Estado que funcione bem com o mercado.

Alberto Mingardi, acadêmico adjunto no Cato Institute, uma organização de pesquisa de inclinações libertárias, e diretor-geral do Istituto Bruno Leoni, um instituto de pesquisa sobre o livre mercado, criticou Mazzucato repetidamente por selecionar de modo capcioso os exemplos que promove, subestimar o balanço entre ganhos e perdas econômicos causados por suas propostas, e por definir política industrial de maneira excessivamente ampla. Em janeiro, em um trabalho acadêmico escrito com um de seus colegas no Cato, Terence Kealey, ele a definiu como “o maior expoente mundial, hoje, da prodigalidade pública”.

Mas as ideias de Mazzucato vêm encontrando audiências receptivas em todo o mundo. No Reino Unido, o trabalho dela influenciou Jeremy Corbyn, o líder do Partido Trabalhista, e a ex-primeira ministra conservadora Theresa May, e ela assessorou a líder nacionalista escocesa Nicola Sturgeon sobre como planejar e colocar em operação um banco nacional de investimento. Ela também assessora órgãos governamentais na Alemanha, África do Sul e outros países.

Durante uma pausa na reunião da ONU, Mazzucato escapou do ar condicionado para conversar com dois colegas em um pátio, falando italiano. Alta, com um físico musculoso, ela usava uma gargantilha de vidro de cores fortes que se tornou uma espécie de marca registrada no circuito da economia. Tendo viajado a cinco países em oito dias, ela estava combatendo uma tosse.

“Em teoria, sou a ‘musa da missão’”, ela brincou, retornando ao inglês. É uma referência à missão original que conduziu o homem à Lua –uma revolução tecnológica patrocinada pelo Estado, consistindo de centenas de projetos individuais, muitos dos quais colaborações entre o setor privado e o setor público. Alguns foram sucessos, alguns fracassos, mas a soma de todos eles contribuiu para o crescimento econômico e para uma explosão na inovação.

A plataforma de Mazzucato é mais complexa –e, para alguns, controversa– do que simplesmente encorajar o investimento governamental, no entanto. Ela escreveu que os governos e as entidades de investimento patrocinadas pelo Estado deveriam “socializar tanto os ricos quanto as recompensas”. Sugeriu que o Estado obtenha retorno sobre os investimentos públicos, por meio de royalties ou de participações acionárias, ou impondo condições para reinvestimento – por exemplo, uma cláusula de limitação da recompra de ações.

Ao enfatizar para as autoridades não só a importância do investimento mas também sua direção – “Em que estamos investindo?”, ela pergunta frequentemente–, Mazzucato influenciou a maneira pela qual os políticos americanos falam sobre o potencial do Estado como propulsor econômico. Em sua visão, os governos deveriam fazer aquilo que muitos economistas tradicionais há muito afirmam que deveriam evitar: criar e dar forma a novos mercados, abraçar a incerteza e assumir grandes riscos.

Dentro da conferência, as notícias eram uniformemente negativas. Pavel Kabat, cientista chefe da Organização Mundial de Meteorologia, lamentou os recordes de temperatura estabelecidos no planeta e disse que os países precisariam triplicar os compromissos assumidos sob o Acordo de Paris, até 2030, se desejam ter alguma esperança de manter o aquecimento global abaixo de um limiar crítico.

Um painel sobre o uso da terra e o desperdício de comida apontou que nove espécies respondem por dois terços das safras do planeta, uma falta perigosa de diversidade agrícola. Todos os especialistas pareciam deprimidos pelo que Jeffrey Sachs, o diretor da SDSN, descreveu como “nacionalismo cru” e “oposição agressiva à globalização que estão em alta em todo o mundo”.

“Precisamos absolutamente mudar tanto a narrativa quanto a teoria e a prática concreta”, disse Mazzucato aos presentes ao falar no último painel de especialistas do dia. “O que quer dizer, de fato, criar mercados nos quais você gera a demanda e começa a direcionar o investimento e a inovação de maneira que possam nos ajudar a atingir essas metas?”

Mais cedo no encontro, ela apontou para um anúncio, em seu laptop. Havia acabado de ser apontada para o primeiro Not the Nobel Prize, uma comenda cujo objetivo é promover “pensamento econômico original”. Mazzucato disse que “os governos despertaram para o fato de que a forma convencional de pensar não os está ajudando”, o que explica por que ela atrai os políticos e as autoridades. Poucos dias mais tarde, Mazzucato foi anunciada como ganhadora.