28 de novembro de 2019

COMO TORNAR O CENTRO FORTE!

(Eurípedes Alcântara – O Globo, 23) ‘O cara matou uma moça por nada e ‘vcs’ estão discutindo em quem ele vota? Esse país se tornou um antro de idiotas mesmo.” Comentário deixado no site do G1 sobre um crime em Sorriso, Mato Grosso, em que a agrônoma Julia Barbosa, de 28 anos, foi morta por tiro disparado por um motorista enfurecido no trânsito. Na caminhonete, emprestada, do assassino confesso havia um adesivo já gasto da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro. O adesivo pode ser ofensivo em si mesmo para quem detesta o presidente e incriminador para quem entende que sua visão sobre as armas incentiva a puxar o gatilho por qualquer coisa. O número absurdo de homicídios no Brasil, porém, precede o atual governo, embora as estatísticas mostrem que as vítimas vêm diminuindo um pouco desde o ano passado, tendência que se repete em 2019.

Pode-se e deve-se politizar a questão do acesso às armas e das regras gerais de engajamento dos policiais com os criminosos. Mas partidarizar cada caso em qualquer região do país não ajuda a solucionar nem diminuir a ocorrência de crimes. Se for possível amenizar sua conclusão figadal sobre o país, o autor do comentário no G1 tocou em um ponto sensível —e não apenas no Brasil. De um domínio negligenciado pela maioria das pessoas, a política partidária passou a ocupar ferozmente até os círculos mais íntimos da nossa interatividade. Saímos em tempo recorde da alienação quase absoluta para a militância cega, sem passar pelo aprofundamento do senso de comunidade.

As pessoas fazem planos para as festas natalinas e entre eles está o de aproveitar o clima de confraternização para se desculparem das ofensas desferidas sem dó durante o ano nos parentes e amigos que pensam diferente delas sobre questões políticas. Isso é intrigante. O mais comum sempre foi justamente o contrário, ou seja, armar-se de argumentos e aproveitar as festas para acertar os ponteiros com aquele tio bacana, generoso, mas reacionário, ou com o sobrinho que se proclama comunista, mas vive de mesada. Vinha janeiro e o tio continuava tão querido quanto reacionário, o sobrinho mantinha sua utopia financiada pelos pais, deixando leve esperança de que estudaria com mais afinco para o Enem no ano que começava. E a vida seguia. Agora, esses encontros tendem a deixar uma certa amargura e a sensação incômoda de que, sem agressões políticas, vivemos uma vida vicária, uma vida substituta —uma vida no lugar da vida de verdade, essa, sim, cheia de sopapos.

Quem tem gato ou adolescente em casa sabe que com eles basta conversar racionalmente e com calma para que nada se resolva. Pessoas dominadas pela fúria da política reagem da mesma forma. Tornam-se impermeáveis a argumentos. Ouvir torna-se uma falsa cortesia, apenas um intervalo para voltar a falar. Isso não é bom. A conversação é o maior patrimônio da humanidade. Todas as demais riquezas acumuladas na caminhada histórica das sociedades são fruto dessa capacidade. Sem a conversação arrisca-se perder, sobretudo, a moderação, virtude essencial da civilidade. É ela que permite a convivência no espaço da proteção mútua dentro das muralhas metafóricas das cidades —em contraste com o “lado de fora” hobbesiano, onde a vida é “atroz, brutal e curta.”

Sem política não teríamos saído das cavernas. Com o extremismo político dominando tudo arriscamos a voltar a elas. Muitos analistas trabalham simplesmente com a noção de que o centro cedeu sob o peso de “ilhas de insatisfação” desconexas e que só existe vida política nos extremos. Os sinais disso, infelizmente, estão por toda parte. Em quase todos os fóruns, como disse o poeta irlandês W.B Yeats há exatos cem anos, “aos melhores falta toda a convicção, enquanto os piores estão tomados pela paixão intensa”. Talvez ajude a desinflar os extremos reconhecer que a democracia e seu corolário material, a economia de mercado, têm seus limites e não podem trazer felicidade pessoal nem nos excitar permanentemente. Ainda bem. Sabemos como acabaram os sistemas político-econômicos arrebatadores que prometeram criar o “novo homem” ou o “homem ariano”. Talvez esperando menos da política, as frustrações sejam menores e maiores as chances de tornar o centro mais robusto.