Jangada de pedra

Folha de São Paulo, 28.05.11

A reação política europeia à crise econômica de 2008-2009 foi virar o leme à direita. Os casos residuais, atentos a essa tendência, terminaram caindo numa armadilha: adotar as mesmas políticas à direita, buscando legitimar-se pela esquerda. Não podia dar certo.

Os dois casos residuais mais importantes são os de Portugal e da Espanha. Ambos caminham para se incorporar aos demais, com a provável vitória de seus partidos conservadores, o PSD em Portugal, na próxima semana, e o PP na Espanha, no início de 2012.

As eleições regionais e locais na Espanha, na semana passada, com vitória histórica do PP, já apontaram nessa direção, incluindo a tomada de redutos tradicionais sob controle dos socialistas do PSOE.

Com isso, o georreferenciamento da política europeia em 2012 deverá mostrar uma enorme mancha azul, desde a Alemanha, a França, a Itália e o Reino Unido, chegando agora à península Ibérica.

O escritor José Saramago fez a figuração do retorno ibérico à Europa desde as Américas, onde a “jangada” aportou no final do século 15. Esta “jangada de pedra”, com a democratização dos anos 1970, voltou a colar no continente. Agora, ela aporta politicamente na Europa pós-crise.

Portugal e Espanha têm um sistema parlamentar de poder binário. No caso da Espanha, de forma mais pronunciada: PSOE e PP têm em torno de 90% dos 350 deputados.

Em Portugal, o PS e o PSD têm um pouco menos, em torno de 85% dos 230 deputados.

Na eleição de 2009, tal soma caiu para 77%, com o PS perdendo 20% de seus deputados e tendo que coligar-se para formar o gabinete ministerial.

A vitória do PS em 2009 só ocorreu devido a uma escolha equivocada do PSD: a sua candidata a primeira-ministra.

Hoje em dia, a performance numa campanha sempre agrega ou desagrega algo. Se a eleição for equilibrada, isso passa a ser decisivo.

A crise obrigou o primeiro-ministro português a entregar o cargo ao presidente e este a antecipar as eleições parlamentares para 5 de junho. Portugal receberá, via UE, 40% de seu PIB em empréstimos, para enfrentar a crise.

Na Espanha, em meio à crise, numa última tentativa do PSOE, o primeiro-ministro anunciou que retira seu nome da eleição de 2012 e que não continuará como tal.

Nas últimas semanas, um movimento multitudinário via redes sociais, de jovens espanhóis, ocupou a praça central de dez grandes cidades do país, a começar por Madri. O foco dos protestos é a contrapolítica, a rejeição aos políticos, jovens antes de esquerda.

Mesmo sendo a eleição em Portugal de resultado mais estreito, o fato é que, politicamente, a “jangada de pedra” -agora de cor azul- colou na política europeia pós-crise.

Folha de São Paulo, 28.05.11

Comissão da Verdade

Folha de São Paulo 14/4/11
O Informe da Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru cobre 20 anos, de 1980 a 2000. Em agosto de 2003, foi entregue ao presidente Alejandro Toledo. O relatório foi transformado no documentário “Para que Não se Repita”, dividido em 12 blocos, com seis horas de duração.

O escopo do informe e o período que cobre foram amplos: “Esclarecer as violações contra os direitos humanos cometidas pelo Estado e por grupos terroristas entre maio de 1980 e novembro de 2000”. Cada “comissão” criada na América Latina tem um escopo e um período de análise diferentes.

O relatório mostra a complexidade de uma comissão desse tipo. Foram 69 mil vítimas no período: 90% de mortos e 10% de desaparecidos.

O informe destaca o Sendero Luminoso/Partido Comunista Peruano, apresentando-o como um grupo terrorista. Também trata das causas históricas da violência no Peru, a discriminação de índios e negros e as diferenças sociais.

Após sublinhar as características democráticas dos ex-presidentes Fernando Belaúnde e Alan García, relata ações repressivas do Exército e da polícia tidas como terroristas.

Em Ayacucho, base do Sendero onde lecionava seu líder, Abimael Guzmán ou “presidente Gonzalo” (preso desde 1992), concentrou-se a violência, passando depois a Lima.

O governo de Alberto Fujimori, que liquidou o Sendero, tem seus méritos minimizados e, nesse caso, associa-se a ele a repressão e o terrorismo da polícia e do Exército.

Destaca-se ainda o papel das milícias locais (rondas), armadas pelo próprio Exército e atuando em cada região com independência. Mesmo informando casos de terror praticados pelos “ronderos”, o relatório tenta realçá-los como autodefesas das comunidades, e que teriam tido papel básico.

Para concluir, o informe condena a passividade da Justiça e do Ministério Público, que deveriam ter tido papéis ativos, mas seriam responsáveis, por omissão, por crimes contra os direitos humanos.

O documento “esquece” o MRTA (Movimento Revolucionário Tupac Amaru), ostensivamente financiado pelo tráfico de drogas e responsável pelo sequestro múltiplo na Embaixada do Japão, desintegrado pela inteligência policial em operação cinematográfica e ao vivo, no período Fujimori.

De tudo o que mostra o relatório/documentário, o mais importante é o risco do trabalho de comissão similar passar a cumprir um papel político, ter uma abrangência sem limites e igualar ou encobrir excessos de forças heterogêneas.

Uma comissão de tal tipo pode terminar servindo para atirar em qualquer direção e, assim, incorporar riscos de excitar e deformar a memória.

Por isso, nunca poderá ser governamental nem ter cor ideológica. Deve ter foco específico e detalhado em um período.

“Bolha” latino-americana

Folha de São Paulo 07/05/2011

A teoria da catástrofe, de René Thom, aplicada à política, diz que descontinuidades que se passam por surpreendentes são, na verdade, explicadas como uma corrente submarina, não percebida por quem só vê a superfície.

Nas últimas duas semanas, o FMI, em relatório sobre a América Latina, e a revista “The Economist” apontaram no mesmo sentido: forma-se uma “bolha” na região capaz de estourar em alguns meses.

O Brasil é citado como um dos casos mais delicados.

Lembram que não se pode tratar, simultaneamente, de controlar a inflação e desvalorizar o cambio. A presidenta Dilma Rousseff disse que está dando uma “guerra contra a inflação”, expressão que denota insegurança -e mais coisas não ditas.

A crise de 2008-09, ao contrário da de 1997-98, não tirou capitais dos países emergentes. Ao contrário: com taxas generosas de juros e estando fora do epicentro dos países desenvolvidos, continuaram a atrair capitais, produzindo uma valorização quase generalizada do câmbio.

Hoje, para cada 10% de crescimento da China, o impacto na América Latina, via commodities, é de uns 4%. Viramos uma periferia da China.

Mas as autoridades chinesas falam em reduzir esse ritmo.

Sendo assim, o impacto continental seria significativo.

E a isso se agrega a crise europeia e a necessidade dos EUA enfrentarem seu deficit fiscal.

O paraíso das commodities não será o mesmo. Em mais um tempo, garantem, a taxa de juros nos EUA vai ter que subir, atraindo capitais que migraram para os emergentes.

As razões da “bolha” brasileira estar crescendo na frente das demais (com exceção da Argentina) estão nos próprios dados oficiais divulgados, com parcimônia, para não assustar os investidores.

A inflação já sinaliza para mais de 7%. O PIB, neste ano, deve crescer 3,5%. A expansão do crédito embute uma inadimplência potencial crescente. O deficit em conta-corrente vai para US$ 60 bilhões.

A balança comercial da indústria foi de um superavit de US$ 18 bilhões para um deficit de US$ 22 bilhões em cinco anos. O deficit comercial nos derivados do petróleo (um país autossuficiente!) passou de US$ 3 bilhões para US$ 18 bilhões em dez anos.

Como dizia Simonsen, “a inflação fere, mas o balanço de pagamentos mata”. Ao que tudo indica, o terremoto de 2008-09 entrou com grau 8 nas economias desenvolvidas e vai chegando nas emergentes com graus um pouco menores. E, no Brasil, com mais um efeito: o político.

O “desconforto” de 2011 vai levar a base da sociedade a fazer comparações. Injustas, mas que vão afetar a popularidade da presidenta até o final do ano. E não se pode afrouxar em 2011 para 2012, pois a eleição que importa para ela e para eles será em 2014

Fusão ou confusão?

Folha de São Paulo, 30/04/2011

Quando dois sistemas se integram, tal fusão pode ser sinérgica (maior que a soma das partes), neutra ou disfuncional (menor que a soma das partes). A fusão de dois partidos políticos só é um processo simples quando o tamanho de um deles é insignificante perto do outro. A isto melhor seria chamar de assimilação.

Mas quando dois partidos se equivalem, a fusão é um processo complexo, ainda mais num país continental. No Brasil, alguns partidos substantivos surgiram por processos de desagregação, como o Republicano (no Império), o PSDB (saído do PMDB) e o DEM (saído do PDS).

Este é também um processo simples, porque as partes homogêneas de um partido se separam para formar outra legenda. Não é sem razão que no Brasil, durante o Império ou a República, nunca ocorreu fusões entre partidos políticos substantivos. A complexidade ocorre pelo tectonismo das partes (das placas).

No que se refere às direções nacionais, sempre haverá como compor. Mas quando os espaços de cada dirigente começam a ser definidos, termina a simplicidade. Isso sem falar nas estruturas administrativas de cada um.

Ao se desdobrar isso em níveis estadual e municipal, há muito mais. Além disso, existem as listas de vereadores por município, deputados federais e estaduais por Estado, cuja agregação produzirá riscos maiores ou menores para centenas de parlamentares.

Há ainda os espaços de liderança a serem definidos. E também, em todos os níveis, os órgãos de representação especial, como imprensa, institutos e fundações.

Tal decisão produziria uma redução pela metade das lideranças no Congresso, nas Assembleias e nas Câmaras Municipais, assim como nas estruturas respectivas. E também no uso dos microfones.

A nova legenda, independente da denominação que mantenha, terá que incorporar os programas de ambos. As diferenças desses programas abrirão uma luta ideológica, de saída, no novo partido.

Finalmente, a legislação eleitoral permite, havendo fusão de partidos, que os legisladores (vereadores, deputados, senadores) e os executivos (prefeitos e governadores) que se digam prejudicados mudem de legenda.

Não é preciso analisar no detalhe para saber que alguns deputados federais e vários deputados estaduais e vereadores usarão essa circunstância para mudar de partido, sem os enormes riscos de uma nova legenda. O partido fundido ficará parlamentarmente menor que a junção das partes. Só soma tempo de TV e Fundo Partidário, o que também vai gerar atritos pelo uso.

Isso tudo leva a uma enorme disfunção ou tectonismo. Repetindo: no Brasil -no Império e na República- nunca houve fusão de dois grandes partidos. Haverá a primeira.