14 de maio de 2020

QUEBRA-CABEÇAS ‘COVID’!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 09) Auric Goldfinger, vilão do romance batizado em seu nome, cita a James Bond um vívido aforismo de Chicago: “Se acontece uma vez, é o acaso; duas, coincidência; se acontece três vezes, trata-se de atividade inimiga”.

Até 2002, a ciência médica conhecia um punhado de formas de coronavírus que infectavam os humanos e nenhuma delas provocava doença grave. Então, em 2002, um vírus hoje conhecido como SarsCoV surgiu na província chinesa de Guangdong. A subsequente epidemia de síndrome respiratória aguda grave (Sars, em inglês) matou 774 pessoas em todo o mundo, antes de ser controlada. Em 2012, outra doença nova, a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers), anunciou a chegada do Mers-CoV, que ainda não foi eliminada, mesmo sem se disseminar com o mesmo alcance da Sars (com exceção de uma excursão à Coreia do Sul). Já são mais de 858 mortos até o momento, o mais recente óbito ocorrendo em 4 de fevereiro.

Na terceira vez, foi o Sars-CoV-2, agora responsável por 225 mil mortes decorrentes da covid-19. Tanto o Sars-CoV quanto o Mers-CoV são próximos dos tipos de coronavírus encontrados em morcegos. No caso do Sars-CoV, a narrativa aceita diz que o vírus se espalhou de morcegos em uma caverna na província de Yunnan para as civetas, que são vendidas nos mercados de Guangdong. No caso do Mers-CoV, o vírus se espalhou dos morcegos para os camelos. Agora, é transmitido habitualmente dos camelos para os humanos, o que o torna difícil de eliminar, mas só é contraído por pessoas em condição de extrema proximidade, o que o torna administrável.

A hipótese de uma origem entre os morcegos parece a mais provável também para o Sars-CoV-2. Mas ainda não identificamos a trajetória do vírus do morcego até o ser humano. Se, como no caso do Mers-CoV, o vírus ainda circula em algum tipo de reservatório animal, pode haver novas epidemias no futuro. Caso contrário, outros vírus certamente tentarão algo parecido. Peter Ben Embarek, especialista em zoonoses – doenças transmitidas dos animais para as pessoas – da Organização Mundial da Saúde (OMS), diz que esse tipo de contágio está se tornando mais comum conforme os humanos e os animais da pecuária invadem novas áreas onde ficam em contato mais frequente com animais silvestres. É importante compreender como ocorrem esses contágios para que possamos aprender a impedi-los.

Mas, para alguns, fica na consciência a possibilidade de atividade inimiga envolvendo algo menos impessoal do que um vírus. Com o advento da engenharia genética nos anos 1970, os teóricos das mais variadas conspirações apontaram para praticamente todas as novas doenças infecciosas (aids, ebola, Mers, doença de Lyme, Sars, zika…) como resultado da interferência humana, possivelmente maligna. As dinâmicas políticas da pandemia da covid-19 significam que, dessa vez, esse tipo de teoria parece ainda mais sedutor do que o habitual. A pandemia teve início na China, onde o governo se dedicou a acobertar o problema antes de adotar medidas que poderiam ter limitado sua disseminação. O maior estrago foi causado nos Estados Unidos, onde o número de mortos pela covid-19 já ultrapassa a quantidade de nomes no Memorial da Guerra do Vietnã, em Washington.

Esses fatos teriam levado a acusações de um lado ao outro do Pacífico independentemente de qualquer outro detalhe. O que piora a situação é a suspeita de alguns segundo a qual o Sars-CoV-2 poderia de alguma forma estar ligado à pesquisa viral chinesa, e o fato de dizê-lo alterar a distribuição das responsabilidades. Não há nada que corrobore essa acusação. Especialistas ocidentais dizem categoricamente que o sequenciamento do genoma do novo vírus – logo publicado de maneira precisa pelos cientistas chineses, com total abertura – não apresentava nenhum dos habituais indícios de manipulação genética. Mas o fato é que, em Wuhan, onde o surto da covid-19 foi descoberto, há um laboratório onde, no passado, cientistas fizeram tentativas deliberadas de tornar o coronavírus mais patogênico.

Pesquisas desse tipo são realizadas em laboratórios de todo o mundo. Para os defensores desses projetos, trata-se de uma maneira vital de estudar uma questão que a covid-19 trouxe cruelmente para o centro das atenções: como um vírus se transforma no tipo de coisa que dá início a uma pandemia? Parece quase certo que o fato de parte dessa pesquisa ter ocorrido no Instituto de Virologia de Wuhan (WIV) é apenas uma coincidência. Mas, na ausência de uma narrativa convincente e completa explicando a origem da doença, resta espaço para dúvidas.

A origem do vírus por trás da epidemia de Sars de 2003 – “Sars clássica”, como alguns virólogos passaram a chamá-la – foi revelada em grande parte pela pesquisadora Shi Zhengli, do WIV, a quem às vezes a mídia chinesa chama de “Tia dos Morcegos”. Ao longo dos anos, ela e sua equipe visitaram sítios remotos em todo o país na busca por um parente próximo do Sars-CoV nos morcegos ou no seu guano (um substrato natural vindo das fezes do morcego). Encontraram um em uma caverna cheia de morcegos-de-ferradura em Yunnan.

É na coleta de genomas virais reunidos durante esses estudos que os cientistas identificaram agora o vírus de morcego mais semelhante ao SarsCoV-2. Uma cepa chamada RaTG13 coletada na mesma caverna de Yunnan compartilha 96% de sua sequência genética com o novo vírus. O RaTG13 não é o ancestral do nosso vírus, e sim algo mais parecido com um primo. O virólogo Edward Holmes, da Universidade de Sydney, estima que os 4% de diferença entre os dois representem pelo menos 20 anos (provavelmente algo mais perto de 50 anos) de divergência evolutiva, a partir de um ancestral em comum.

Ainda que, em teoria, os morcegos possam ter transmitido um vírus descendente desse ancestral diretamente para os humanos, os especialistas consideram essa hipótese pouco provável. O vírus dos morcegos tem uma diferença específica em relação ao SarsCoV-2. No caso do Sars-CoV-2, a proteína
protuberante na superfície da partícula viral apresenta um domínio de ligação ao receptor (RBD) particularmente capaz de se ligar a uma molécula na superfície da célula humana infectada pelo vírus. O RBD no coronavírus dos morcegos não é o mesmo.

Um estudo recente indica que o Sars-CoV-2 seria produto de uma recombinação genômica natural. Diferentes tipos de coronavírus infectando o mesmo hospedeiro se mostram dispostos a trocar partes do seu genoma entre si. Se um vírus de morcego semelhante ao RaTG13 chegasse a um animal já infectado com um coronavírus equipado com um RBD mais adequado para infectar humanos, é possível pensar no surgimento de um vírus de morcego com RBD melhor sintonizado aos humanos. É isso que o Sars-CoV-2 aparenta ser.

Futuro. Muitos cientistas acreditam que, com tantos biólogos caçando ativamente os vírus de morcegos, e as pesquisas de ganho de função se tornando mais comuns, o mundo está diante de um risco cada vez maior de uma pandemia nascida de um laboratório. Atualmente há cerca de 70 instalações de biossegurança do tipo BSL-4 em 30 países. Planeja-se a construção de mais instalações dessa categoria. Mas, novamente, é necessário pensar no desconhecido. Todos os anos há milhares de casos fatais de doenças respiratórias em todo o mundo cuja causa é misteriosa. Algumas podem ser resultado de zoonoses não identificadas. É necessário dar atenção à questão desse possível elo e do número dessas mortes. Para tanto, são necessários laboratórios. É necessário também um grau de cooperação aberta que os EUA estão agora enfraquecendo com suas acusações e recusa em oferecer financiamento, e que a China tentou suprimir nas origens. Essa supressão em nada ajudou o país. Ao contrário: ao fomentar a especulação, seu resultado pode ter sido negativo.