04 de agosto de 2020

O MITO É TUDO QUE É NADA!

(Luís Eduardo Assis – O Estado de S. Paulo, 03) Convém não incluir na lista de defeitos do ministro Paulo Guedes a modéstia excessiva, a fraqueza de ânimo e a falta de ambição. Em 2018, o ministro acenou com a possibilidade de levantar R$ 700 bilhões com a venda de imóveis da União. Também se prontificou a conseguir algo como R$ 1 trilhão com um avassalador programa de privatização. Hoje, o desempenho na venda de imóveis é, digamos, menos que espetacular. Em 2020, o Ministério da Economia deve arrecadar R$ 1,7 bilhão com a venda destes ativos. A privatização também se arrasta. Entre as 614 empresas estatais existentes, apenas 18 projetos estão no Plano Nacional de Desestatização – e a lista inclui três parques nacionais. Não há vestígio de que o governo tenha intenção de entrar no curral das vacas sagradas e privatizar a Petrobrás, o Banco do Brasil ou a Caixa. Avançar nas concessões deve ser ainda mais espinhoso.

O credo liberal fundamentalista abraçado pela equipe econômica assume que a iniciativa privada tomará para si a responsabilidade de prover o País dos investimentos em infraestrutura. A necessidade é premente. A edição de 2019 do World Economic Forum classifica a infraestrutura do Brasil em 71.º lugar numa lista de 141 países, atrás de Armênia, Vietnã e Peru. Estimativas da Consultoria Inter B apontam que este tipo de investimento caiu de 2,3% do PIB, em 2010, para 1,9%, no ano passado. O investimento público murchou de 1,3% para 0,6% do PIB nesse período, ao passo que o gasto privado em infraestrutura aumentou de 1% do PIB para 1,2%. É bom lembrar que a China investe 8% do PIB e mesmo países “prontos” com Austrália, Canadá e Japão gastam mais de 3% ao ano.

Realizar o sonho de preencher o hiato do investimento público com concessões esbarra em vários obstáculos. Ao contrário da venda de imóveis ou da privatização, conceder a exploração de uma atividade significa que o Estado deverá manter relacionamento com o concessionário por décadas. O sucesso dessa iniciativa exige um desenho institucional que garanta impessoalidade, estabilidade de regras, transparência e convergência de propósitos. É melindroso. O governo errou no ano passado quando, na nova Lei das Agências, vetou a proposta de que uma Comissão de Seleção ofereceria três nomes para a escolha dos diretores das agências pelo presidente da República. O propósito era dificultar o loteamento político. O governo também se atrapalhou na negociação da nova Lei de Concessões, que está encalhada na Câmara. Sem definir como será o marco legal, é ainda mais penoso avançar.

Um programa exitoso de concessões pressupõe agências reguladoras fortes, bem estruturadas e dotadas de notável capacidade técnica. Não é o que temos no momento. A Agência Nacional de Águas, por exemplo, não está preparada para exercer suas novas responsabilidades decorrentes da aprovação da Lei do Saneamento. A dificuldade em chamar o setor privado para substituir os investimentos públicos pode ser aferida pelos casos de concessão que fracassaram. Estudo de 2014 (Here to stay: Water Remunicipalisation as a Global Trend, de S. Kishimoto) identificou, só para saneamento, 180 casos em 35 países de retorno de concessões ao setor público, incluindo cidades com Paris, Berlim, Budapeste e Buenos Aires.

Não, conceder nunca é fácil. Mas é ainda mais difícil para um governo que subestima os obstáculos e cultiva mitos, crenças e fábulas. Ser otimista é uma das atribuições do cargo de ministro da Economia. Mas a megalomania e a soberba apenas erodem sua credibilidade. A propósito: alguém sabe do paradeiro dos 40 milhões de testes para o coronavírus que Paulo Guedes anunciou no começo de abril?