08 de agosto de 2022

CRIANÇAS E ADOLESCENTES NUM PAÍS FAMINTO!

(Raquel Franzim e Ana Claudia Cifali respectivamente, diretora de educação e culturas infantis do Instituto Alana e coordenadora jurídica do Instituto Alana – O Estado de S. Paulo, 07) Ao longo dos primeiros 18 anos de vida, a criança e o adolescente vivem transformações físicas, cognitivas e emocionais que estruturam os anos que seguem e a vida adulta. Esse período, que é breve, produz efeitos duradouros. É por isso que o dado revelado de que o número de pessoas passando fome dobrou do final de 2020 para o começo de 2022 em lares do País com crianças de até 18 anos (25,7% das famílias) é o anúncio da tragédia humanitária que vivemos no presente com potencial de arruinar uma geração inteira no futuro. Durante as férias escolares, com a interrupção da oferta de merenda escolar, este quadro se agrava ainda mais.

Apenas 26% das crianças de 2 anos a 9 anos no Brasil fazem três refeições por dia. Famílias negras e chefiadas por mulheres são as mais impactadas, escancarando como a raça e o gênero são características decisivas para uma vida de privações e para a desigualdade na garantia de direitos em nosso país. A alimentação é o direito social mais básico da vida humana. A interrupção do acesso regular e permanente à alimentação de qualidade e em quantidade suficiente gera um efeito cascata nos demais direitos, impactando o desenvolvimento e freando a autonomia humana, essencial para um Estado Democrático de Direito.

Uma criança que passa fome não deveria preocupar apenas sua família: é a demonstração de que toda a responsabilidade compartilhada prevista no artigo 227 da Constituição federal falhou. Falhamos nós, sociedade e suas instituições, e falham os governos, que deveriam protegê-la acima de tudo, em primeiríssimo lugar, de toda ordem de violência e crueldade que a fome provoca.

Entre os direitos sociais mais afetados ao passar fome encontra-se o direito à educação. Tanto não há condições para aprender, participar e se desenvolver integralmente que o País criou ainda em 1954 o consolidado Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Posteriormente, foi incorporado como direito na Constituição federal de 1988 nos artigos 205 e 208 como um programa suplementar, ou seja, fundamental na garantia de qualidade na educação.

Responsável por garantir 15% das necessidades nutricionais básicas da vida, o programa é uma política pública baseada em evidências que comprovam que, do ponto de vista cognitivo, a desnutrição infantil prejudica o desenvolvimento da atenção, a memória, a leitura e a aprendizagem de linguagens como um todo.

A equação é simples: com menos energia e nutrientes, a performance ao participar da vida escolar diminui e as dificuldades de aprendizagem aparecem. Importante destacar que a fome provoca efeitos sistêmicos no desenvolvimento da criança, desde o crescimento neuromotor abaixo do esperado até, também, prejuízos em habilidades socioemocionais como iniciativa e tomada de decisão. Além disso, permanecer na escola nessas condições se mostra difícil, em alguns casos gerando o abandono escolar para busca de trabalho na tentativa de ampliar a renda familiar, como aponta relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 2020.

Por isso, uma boa alimentação escolar é fundamental, inclusive no período de férias, com programas próprios e específicos para alcançar as crianças e adolescentes que passam fome. Ainda que não responda a todo o problema da fome e da pobreza, a alimentação escolar faz parte da adoção de uma estratégia multidimensional, que inclui a elevação da agenda como prioridade política, com programas consistentes de redistribuição de recursos, assistência, renda e trabalho, sobretudo para as famílias mais afetadas. Infelizmente, dados revelam que o País não apenas deixou de apresentar essas soluções, como, em virtude das escolhas políticas recentes do governo federal, empurrou mais pessoas para a privação alimentar.

Com baixa competência técnica do Ministério da Educação (MEC) para resolver os problemas estruturais do setor durante a pandemia de covid-19, o governo federal tem priorizado questões irrelevantes para a população, entre elas o ensino domiciliar, e passa a escrever, agora, mais um capítulo desesperador. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão técnico vinculado ao MEC, palco recente de disputas políticas, vem nos últimos anos reduzindo a previsão e a execução orçamentárias do Pnae. Segundo dados do próprio governo federal no Portal da Transparência, a tendência é de diminuição de recursos destinados à alimentação escolar. Tudo isso em meio ao agravamento do cenário da fome.

Em outubro, o País passará por eleições para os governos federal, estaduais e para o Legislativo. Sem ter os direitos de todas as crianças e os adolescentes (especialmente os que passam fome) priorizados hoje, no centro do debate e das políticas públicas, o amanhã pode ser tarde demais para eles e para todos nós como sociedade e país.