15 de março de 2022

A ‘RESTALINIZAÇÃO’ DA RÚSSIA!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 13) Quando Vladimir Putin ordenou a invasão da Ucrânia, sonhava em restaurar a glória do império russo. Mas acabou restaurando o terror de Josef Stalin. Não apenas porque desencadeou o mais violento ato de agressão injustificada na Europa desde 1939, mas também porque, como resultado, está se transformando em ditador – um Stalin do século 21, recorrendo a mentiras, violência e paranoia.

Para entender a escala das mentiras de Putin, veja como a guerra foi planejada. O presidente da Rússia pensou que a Ucrânia entraria em colapso rapidamente, e não preparou seu povo para a invasão nem seus soldados para sua missão – na verdade, ele assegurou às elites que nada disso aconteceria.

Após duas semanas no campo de batalha, ele ainda nega estar travando o que pode se tornar a maior guerra da Europa desde 1945. Para sustentar essa mentira, Putin fechou quase toda a mídia independente, ameaçou jornalistas com 15 anos de na prisão se não repetirem falsidades oficiais e prendeu milhares de manifestantes antiguerra. Ao insistir que a operação militar está “desnazificando” a Ucrânia, a TV estatal está “restalinizando” a Rússia.

ACORDO.

Para entender o apetite de Putin pela violência, veja como a guerra está sendo travada. Depois de falhar em obter uma vitória rápida, a Rússia tenta semear o pânico, deixando as cidades ucranianas famintas e as atacando cegamente. No dia 9 de março, atingiu uma maternidade em Mariupol. Se Putin está cometendo crimes de guerra, é porque está pronto para infligir um massacre em casa.

E, para avaliar a paranoia de Putin, imagine como a guerra termina. A Rússia tem mais poder de fogo do que a Ucrânia. Ainda está fazendo progressos, especialmente no sul. E pode capturar a capital, Kiev. No entanto, mesmo que a guerra se prolongue por meses, é difícil ver Putin como vencedor.

Suponha que a Rússia consiga impor um novo governo. Os ucranianos estão agora unidos contra o invasor. O fantoche de Putin não conseguiria governar sem uma ocupação, mas a Rússia não tem dinheiro nem tropas para guarnecer nem metade da Ucrânia. A doutrina do Exército americano diz que, para enfrentar uma insurgência, os ocupantes precisam de 20 a 25 soldados por cada mil pessoas. A Rússia tem pouco mais de 4.

Se, como o Kremlin pode ter começado a sinalizar, Putin não impuser um governo fantoche – porque não consegue –, então, ele terá de fazer concessões à Ucrânia nas negociações de paz. No entanto, ele enfrentará dificuldades para cumprir qualquer acordo desse tipo. Afinal, o que Putin fará se a Ucrânia do pós-guerra retomar sua deriva para o Ocidente. Invadir?

A verdade é que, ao atacar a Ucrânia, Putin cometeu um erro catastrófico. Destruiu a reputação das Forças Armadas da Rússia, que se mostraram taticamente ineptas contra um oponente menor e menos armado, porém mais motivado. A Rússia perdeu equipamentos e sofreu milhares de baixas, quase tantas em duas semanas quanto os EUA no Iraque desde a invasão, em 2003.

SANÇÕES.

Putin submeteu o país a sanções ruinosas. O Banco Central não tem acesso à moeda forte de que necessita para sustentar o sistema bancário e estabilizar o rublo. Marcas que defendem a abertura, como Ikea e Coca-Cola, fecharam as portas. Alguns produtos estão sendo racionados. Os exportadores ocidentais estão retendo componentes vitais, ocasionando paralisações de fábricas. Sanções sobre energia – por enquanto, limitadas – ameaçam reduzir as divisas de que a Rússia precisa para pagar por suas importações.

GUERRA.

E, assim como Stalin, Putin está destruindo a burguesia, o grande motor da modernização da Rússia. Em vez de serem enviados para o gulag, os empresários estão fugindo para cidades como Istambul, na Turquia, e Yerevan, na Armênia. Aqueles que optam por ficar no país estão sendo amordaçados por restrições à liberdade de expressão e livre associação. Serão atingidos pela alta inflação e pela instabilidade econômica. Em apenas duas semanas, eles perderam o país.

Stalin presidiu uma economia em crescimento. Por mais assassino que tenha sido, ele se baseou em uma ideologia concreta. Mesmo cometendo coisas ultrajantes, ele consolidou o império soviético. Após ser atacado pela Alemanha nazista, foi salvo pelo inacreditável sacrifício de seu país, que fez mais do que qualquer outro para vencer a guerra.

Putin não tem nenhuma dessas vantagens. Ele não apenas está fracassando em vencer a guerra enquanto empobrece seu povo: seu regime carece de um núcleo ideológico. O “putinismo”, tal como é, mistura nacionalismo e religião ortodoxa para uma audiência de TV. As regiões da Rússia, espalhadas por 11 fusos horários, já estão murmurando que esta é uma guerra de Moscou.

FRACASSO.

À medida que a escala do fracasso de Putin ficar mais clara, a Rússia entrará no momento mais perigoso desse conflito. As facções do regime se voltarão umas contra as outras em uma espiral de culpa. Com medo de sofrer um golpe, Putin não confia em ninguém e talvez tenha de lutar pelo poder. Talvez também tenha de mudar o curso da guerra, aterrorizando seus inimigos ucranianos e expulsando seus apoiadores ocidentais com armas químicas ou até mesmo ataque nuclear.

Enquanto observa, o mundo precisa limitar o perigo que surge no horizonte. Precisa derrubar as mentiras de Putin e promover a verdade. As empresas de tecnologia ocidentais estão erradas em fechar suas operações na Rússia, porque estão entregando ao regime o controle total sobre o fluxo de informações. Os governos que acolhem os refugiados ucranianos também devem acolher os russos.

A Otan pode ajudar a moderar a violência de Putin – na Ucrânia, pelo menos – continuando a armar o governo de Volodimir Zelenski e o apoiando se ele decidir que chegou a hora de entrar em negociações sérias. Também pode aumentar a pressão sobre Putin avançando mais rápido e mais fundo com sanções energéticas, embora com um custo para a economia mundial.

LIBERDADE.

E o Ocidente pode tentar conter a paranoia de Putin. A Otan deve declarar que não atirará nas forças russas, desde que elas não ataquem primeiro. E não deve dar a Putin uma razão para atrair a Rússia para uma guerra mais ampla, declarando uma zona de exclusão aérea que precisaria ser reforçada militarmente. Por mais que o Ocidente queira um novo regime em Moscou, deve declarar que não irá arquitetálo diretamente. A libertação é uma tarefa para o povo russo.

À medida que a Rússia afunda, o contraste com o presidente vizinho é gritante. Putin está isolado e moralmente morto. Zelenski é um homem comum e corajoso que uniu seu povo e o mundo. Ele é a antítese de Putin – e talvez sua nêmesis. Pense no que a Rússia pode se transformar quando se libertar de seu Stalin do século 21.