Choque e eufemismo

Publicado em 25/07/2009 em Folha de São Paulo 

“AURÉLIO” diz que “choque” é o “embate; o encontro de dois corpos em movimento ou um deles em repouso; o recontro violento entre forças militares; a querela violenta, briga; conflito; luta”. A palavra “choque” expressa, assim, uma ação unilateral, de força, de um elemento contra o outro. É o contrário de mediação, negociação, entendimento. Como eufemismo, tem tido historicamente um uso militar, associado a terror (doutrina militar baseada na utilização de poder esmagador).

Na Idade Média, o choque de terror militar intimidava a população civil. Na Guerra de Secessão nos EUA, ficaram célebres as ações desse tipo do general Sherman. Na Primeira Guerra Mundial, o Exército alemão criou as tropas de assalto, que deram origem, depois, às SA. O choque como terror tem o objetivo de intimidar pelo exemplo.

A repressão por choque é, sobretudo, a exaltação do ato de reprimir. Da mesma forma, em nível policial, a palavra choque passou a ser usada adaptando seu uso militar: batalhão de choque, tropa de choque, carro de choque, com toda a cenografia requerida, de roupas negras, escudos, armas.

O choque elétrico, produto de uma descarga, foi introduzido na tortura, tendo a dor e a vida como intimidação. Os regimes ditatoriais usam técnicas de choque e terror dessa forma. Na medicina, choque passou a ser usado como eufemismo, para situações extremas: choque anafilático, choque circulatório, estado de choque, tratamento de choque.

Nesse ultimo caso, ganhou um uso difundido quando se quer mudar radicalmente e à força uma situação. Na economia, Friedman chamou de economia de choque a aplicação de suas ideias, no início do governo Pinochet. Usam-se as expressões choque de oferta, choque fiscal, choque anti-inflacionário como eufemismo, traduzindo situações unilaterais e impositivas.

O paradoxal, num ambiente democrático, onde o contraditório, o interativo e o acordo são qualidades constituintes, é a palavra choque como eufemismo passar a ser usada pelos políticos, como virtude e publicidade. Na eleição de 1989, usou-se a expressão choque de capitalismo. Vários governos usam a expressão choque de gestão, sepultando a expressão clássica “reforma administrativa”.

Usa-se nas cidades choque de ordem como forma de expressar as ações relativas às posturas, ao uso de solo e de espaços públicos. E até choque de ética e de cidadania, como se fossem possíveis por ações unilaterais de governos. O uso extensivo e até abusivo da palavra choque, como eufemismo, nas ações político-administrativas, deve ser medido e cuidado, pois vai introjetando na população a ideia de estado policial e onipotente e de população errática e passiva.

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Argentina x Brasil?

Publicado no Jornal Folha de SP em 18 de julho de 2009.

OS JORNAIS argentinos -“Clarín” e “La Nación”- publicaram, em dois dias, artigos questionando as relações entre os EUA e a América do Sul, pró-Brasil, e contra a Argentina.

Dia 8 de julho, no “Clarín”, (“Brasil, um aliado sui generis”), o professor Fabian Calle diz que a política externa interamericana EUA/ Brasil é apenas o desdobramento da estratégia do general Golbery do Couto e Silva durante o regime militar. Cita o recente informe “A Second Chance. US policy in the Americas” e afirma que os EUA, como potência mundial, têm o Brasil como “primus interpares” sulamericano.

Lembra a reunião Obama-Lula em que ficou clara a imagem transmitida de Brasília como um poder brando. “A visão de Golbery era o destino do Brasil como uma potência ocidental com estreitas ligações com Washington e com graus de manobra para consolidar sua hegemonia sulamericana e garantir aos EUA um status não desestabilizador.” “O ponto era reforçar a hegemonia regional do Brasil sobre a Argentina”, e conclui afirmando que, “em pleno século 21, a história das grandes potências não parece convalidar visões lineares de delegação”.

Dois dias depois, no “La Nación”, o professor Carlos Escudé vai mais longe. Diz que o Brasil nasceu com vantagem ao ficar independente sem crise. Mas que nos anos 1890 a Argentina o superou. Um trabalhador argentino trabalhava a metade de um belga ou alemão e um terço do italiano para comprar o mesmo.

Em 1937 o PIB per capita argentino era superior aos de Áustria e Finlândia, o dobro do italiano e o triplo do japonês. Nos dois casos, o Brasil não era sequer listado. No plano militar, em 1920, a Argentina mobilizaria imediatamente 379 mil homens e o Brasil, 136 mil. Isso valeria para toda a década de 30.

Escudé afirma que o ponto de inflexão foi a Segunda Guerra. Os EUA privilegiaram o Brasil. A neutralidade Argentina teria aberto uma política de sanções dos EUA. A Argentina teria sido privada dos insumos necessários a seu desenvolvimento industrial (departamento de Estado 1945: “essencial não permitir a expansão da indústria pesada na Argentina”).
Cita Roosevelt em 1944: “Estou totalmente de acordo que deveríamos proceder duramente com a Argentina. Ao mesmo tempo, é essencial fortalecer o Brasil.

Isso deve incluir armas e munições. “Por isso o Brasil emergiu como potencia regional.” No final do artigo, Escudé alivia e diz que hoje as relações com o Brasil são de cooperação comercial, e não geopolíticas.
Artigos como esses, em meio à crise política argentina, devem prevenir os canais político-diplomáticos de forma a que nossa imprevisível América Latina não acorde surpreendida, mais uma vez.

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CESAR MAIA escreve aos sábados nesta coluna.

Senado: causas da crise

Publicado em 11/07/2009 em Folha de São Paulo 

É SIMPLISMO explicar a crise no Senado pelo desvio de conduta de funcionários ou senadores. Só a desmontagem institucional pode ter gerado tal descontrole em nível operacional. O Senado representa a federação, e por isso cada Estado tem o mesmo número de senadores. A função legislativa do Senado deve focar o equilíbrio federativo de forma a que uma decisão da Câmara não afete as relações regionais ou não gere inaplicabilidade pela incapacidade fiscal e administrativa de Estados e municípios.

Há muitos anos o Senado deixou de ser o espaço público dos Estados e municípios. O presidente e o Ministério da Fazenda invadiram suas competências e passaram a decidir como se Senado fossem. Os governadores e prefeitos deixaram de ir ao Senado defender os interesses de suas unidades federadas. Dirigem-se ao Ministério da Fazenda.

Pelo artigo 52 da Constituição Federal, cabe privativamente ao Senado aprovar por voto secreto a nominação de magistrados, ministros do TCU, diretoria do Banco Central, procurador-geral da República e embaixadores. Poderes privativos que não são -de fato- exercidos. Os nomes submetidos pelo presidente ao Senado são apenas referendados. Quando o presidente escolhe um nome, a imprensa registra, como designado.

Cabe ao Senado, privativamente, autorizar as operações financeiras da União, dos Estados e dos municípios. Quando isso ocorreu? Os empréstimos da CEF e do BNDES a eles passam pelo Senado? Ao Senado cabe fixar os limites globais de endividamento da União, dos Estados e dos municípios. Aliás, até fixou (resolução 43), mas o Ministério da Fazenda ignora, define os critérios a seu arbítrio e autoriza ou não como entender.

Cabe ao Senado dispor sobre as garantias da União a operações de crédito. Quando isso ocorreu em relação ao BID ou Bird, bancos estatais ou privados? Nunca. Ao Senado cabe suspender a execução de leis declaradas inconstitucionais pelo STF. Isso tem ocorrido? Cabe também avaliar periodicamente a funcionalidade do sistema tributário nacional. Quando isso foi feito?

O Senado se tornou uma poderosa Câmara de Deputados. É este poder, com 16% dos deputados, que interessa ao Executivo. Mais fácil negociar.
É este poder autoatribuído por abandono da representação federativa, delegando-a ao Executivo ou não o exercendo, que reconstruiu a instituição, ampliando seu poder e produzindo a certeza de que nem a Constituição nem poder algum paira por cima dela. A partir daí, tudo seria possível. E foi. E terminou na situação atual, com os desvios, para gáudio do apetite hegemonista do Poder Executivo.

América Latina 2009!

Publicado em 18/07/2009 em Folha de São Paulo 

AGRUPEMOS os países da América Latina por previsibilidade política e estabilidade institucional. Um primeiro bloco de países, institucional e politicamente estáveis e previsíveis, reúne Chile, Costa Rica, Uruguai e República Dominicana. Um segundo bloco de países institucionalmente estáveis e politicamente menos previsíveis é formado por Brasil, Panamá, El Salvador, Peru, Colômbia e México. Peru responde às provocações de Venezuela e Bolívia, suavizando os atritos. México enfrenta os poderosos cartéis de drogas e é provável que o PRI, que o governou por décadas, se fortaleça nas eleições regionais.

Colômbia aguarda o desfecho do terceiro mandato de Uribe, que pela desmontagem das milícias e das Farc, teria eleição garantida. Mas seria outro perigoso precedente, legitimador dos “golpes constitucionais” chavistas. Um terceiro bloco é o dos países institucional e politicamente instáveis: Honduras e Guatemala (corredor de cocaína).

Honduras enfrenta um impasse. Seu presidente eleito pela direita, tempos depois, aderiu ao chavismo. Quis fazer na marra um plebiscito para sua reeleição. O Congresso não aprovou. “TSE” e “STF” declararam inconstitucional. Chávez enviou urnas e cédulas por avião. O Congresso o destituiu. Não seria o primeiro caso de solução constitucional, como no Brasil, no Equador e na Bolívia. Mas o Exército se precipitou e criou o pretexto golpista. Finalmente um bloco homogêneo, populista-autoritário, institucionalmente instável e imprevisível : Venezuela, Nicarágua, Bolívia, Equador e Paraguai. Cuba se agrupa a eles, mas sua instabilidade é apenas uma previsão a longo prazo.

A Argentina seria incluída neste bloco. No entanto, os desdobramentos pós-eleições parlamentares começam a sinalizar um retorno político ao Cone Sul. Essa diversidade levou as relações dos EUA e da União Europeia com a América Latina passarem a ser bilaterais país a país, o que debilita o continente, econômica e politicamente. A crise econômica e os processos eleitorais, em 2009, mexeram pouco com a arquitetura latino-americana. Os populismos plebiscitários foram afirmados.

El Salvador, com economia associada aos EUA, mudou politicamente de lado, mas a moderação do novo presidente aponta para a estabilidade. No Panamá, o novo presidente ajustou-se à direita, sem turbulências. Na Argentina, a renúncia de Kirchner à presidência do PJ e a fumaça branca emitida pela presidente desestressam seu quadro. Afinal, um dos dois blocos de oposição é também peronista. Até o final do ano virão eleições no Uruguai e no Chile. A proximidade das eleições em Honduras em novembro, pode ajudar uma saída para o impasse.

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CESAR MAIA escreve aos sábados nesta coluna.