20 de setembro de 2021

VETO A HAITIANOS NOS EUA DESGASTA BIDEN!

(Amber Phillips, analista de política do Washington Post – O Estado de S. Paulo, 24) As travessias ilegais estão aumentando e os haitianos representam uma parte cada vez maior delas. O Haiti é um país com problemas políticos, econômicos e humanitários, incluindo um presidente assassinado e um forte terremoto recente. Mas muitos desses haitianos no Texas são refugiados de um outro tremor, o de 2010. Na época, eles se refugiaram na América do Sul, mas, por uma série de razões, agora estão fugindo para os EUA.

O motivo pode ser econômico. “Um trabalhador que vem do Chile pode ter uma renda 3,5 vezes maior nos EUA”, disse Alex Nowrasteh, analista do Cato Institute. O agravamento da pandemia em países como o Brasil também desempenha um papel importante. “Quando você olha o que está impulsionando a migração, é uma combinação de deterioração econômica, social e, às vezes, de segurança nos países em que eles vivem”, disse Jessica Bolter, do Migration Policy Institute. “Além da percepção de que, sob o governo de Joe Biden, é mais fácil entrar nos EUA.”

Biden fez várias mudanças na política de imigração de Donald Trump – principalmente reduzindo as deportações. Mas ele continuou a usar ferramenta controversa para expulsar os estrangeiros: um código de saúde, conhecido como “Título 42”, que cita a pandemia como razão para limpar a fronteira o mais rápido possível. Então, os migrantes estão sendo mandados para casa sem a chance de solicitar asilo.

Biden reconhece que as coisas no Haiti estão muito ruins. No semestre passado, o governo concedeu proteção temporária a milhares de haitianos que já estavam ilegalmente nos EUA, citando “condições extraordinárias e temporárias”, como uma crise política, violência e abusos dos direitos humanos. Talvez isso tenha alimentado a falsa percepção de que os imigrantes poderiam entrar nos EUA agora, disse Theresa Brown, do Policy Center. Agora, muitos desses haitianos presos na fronteira estão sendo deportados – muitos dos quais não moram lá há anos. Alguns disseram que foram algemados nos voos para casa.

Mais atenção do público na fronteira é a última coisa de que Biden precisava. É seu ponto fraco desde que assumiu o cargo, e ele tem se preocupado em ser visto como muito leniente em temas migratórios. Mas, enquanto o presidente segue a mesma política de Trump, os migrantes continuam chegando. A crise no Texas ganhou espaço porque os haitianos são diferentes dos migrantes da América Central, mais comuns na fronteira, e por causa da foto de agentes perseguindo os refugiados a cavalo.

Defensores dos direitos humanos e das liberdades civis aumentaram o tom contra Biden. Agora, muitos democratas entraram na fila para criticar o governo. O líder democrata do Senado, Chuck Schumer, pediu a Biden o fim das deportações. “Não podemos continuar essas políticas odiosas e xenófobas de Trump”, afirmou. A NAACP, uma das mais fortes organizações de defesa da igualdade racial, também disparou contra a Casa Branca. “A crise humanitária que está acontecendo sob esse governo espelha de forma repugnante alguns dos momentos mais sombrios da história dos EUA. Se fechássemos os olhos e isso estivesse ocorrendo sob o governo de Trump, o que faríamos? O tratamento desumano dispensado aos refugiados haitianos é repugnante”, disse o presidente da NAACP, Derrick Johnson.

29 de setembro de 2021

MISSÃO ABREVIADA!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo, 18/12/10) O que aproxima o padre Ibiapina (1806-1883), o padre Cícero (1844-1934) e Antonio Conselheiro (1830-1897) é o mesmo livro de cabeceira: “Missão Abreviada” (720 págs.), do padre Manuel José Gonçalves Couto. Editado em 1859, foi o livro de maior tiragem em Portugal no século 19 (150 mil exemplares).

Padre Ibiapina nasceu em Sobral (CE). Foi magistrado e deputado. Voltou ao seminário e, aos 47, iniciou a vida missionária pelo Nordeste, fazendo igrejas, cemitérios, açudes. Chamado de “mestre”, criou a ordem dos beatos e beatas que o acompanhavam.

Aonde ia, o “mestre” aconselhava e ajudava. Seu mito gerou reação do bispado. Padre Cícero nasceu em Crato (CE) e seguiu a mesma cartilha, com base em Juazeiro do Norte. Os milagres da beata Maria de Araújo (recebia a óstia e esta sangrava) multiplicaram o número de romeiros e de beatos que os seguia.

Distribuía conselhos, bênçãos e esmolas. Apesar da perseguição pelo bispado, as romarias não pararam de crescer. Chegou a Juazeiro do Norte quando tinha 40 casas. Hoje é a terceira cidade do Ceará -300 mil habitantes. Tornou-se mito. “Roma” proibiu-o de exercer os sacramentos.

Apoiou a derrubada do governo do Ceará com um exército de beatos, cabras e jagunços. Foi prefeito por quase 20 anos e deputado federal (nunca foi ao Rio exercer o mandato).

Antonio Conselheiro nasceu em Quixeramobim (CE). Em Sobral, foi um rábula dos pobres. Cruzou o Nordeste por 30 anos, como o Mestre Ibiapina, construindo capelas e cemitérios. Beatos e beatas o acompanhavam. Aonde ia, aconselhava e ajudava. Estabeleceu-se em Canudos, na área que chamou de Belo Monte. Interpretou o Novo Testamento num manuscrito de 245 páginas, com letra desenhada (disponível em CD).

Monarquista, adotou um sistema coletivista. Tinha 30 mil habitantes quando o Exército o massacrou em 1897.

Os três falaram aos excluídos. Foram a esperança dos miseráveis, com conselhos, esmolas e o reino dos céus.

A repressão católica abriu espaço aos evangélicos com um mesmo estilo. Os dois principais líderes das Ligas Camponesas eram evangélicos (ver “Cabra Marcado para Morrer”). Método com o qual os mais pobres do Nordeste se identificam até hoje.

Enquanto Lula era um líder operário urbano, disputou voto entre eles em igualdade com os demais candidatos.

Em 2005, Lula muda. Incorpora o retirante e passa a falar aos excluídos, com conselhos, ajuda e esperança, na terra e no céu. Em 2006 e 2010, nas regiões que foram palco da peregrinação dos três, a “Missão Abreviada” produziu vitórias eleitorais na casa dos 80% no segundo turno.

28 de setembro de 2021

ENTREVISTA DE CESAR MAIA PARA O GLOBO, 25/09 – PARTE II!

• O que tem achado da estratégia de Ciro Gomes de bater tanto em Lula quanto em Bolsonaro?

É uma escolha apressada imaginando que o desgaste de Lula em função do Lava-jato abriria um vetor para ele. Acho uma estratégia equivocada.

• Foi essa, aliás, a estratégia do MBL nas manifestações do dia 12 de setembro, que levou um público muito baixo para as ruas. Está errado ser contra Lula e Bolsonaro ao mesmo tempo?

Certamente errado. Mas se deve ir bem além do anti-Bolsonaro. A crise brasileira múltipla exige a escolha de uns três ou quatro temas propositivos. Emprego entre eles. O desemprego entre os jovens está em 30%.

• Não acha que a economia melhora um pouco ano que vem e ajuda a melhorar a popularidade de Bolsonaro?

É claro que não. Dois exemplos: o minério de ferro caiu 47% de julho para cá e o agronegócio ficará sem parceiro “primário”. E mesmo que façam um novo bolsa-família turbinado, programas de transferência de renda precisam estar lastreados em confiança e esperança. As respostas relativas a estes dois vetores nas pesquisas recentes de DataFolha e Ipec mostram que estamos longe disso.

• O senhor descarta o impeachment?

Sim, pela estrutura de comando e minoria na Câmara. A proximidade das eleições não ajudará a formar maioria de dois terços. Ele ainda se mantém com mais de 20% de avaliação de ótimo e bom devido a força do seu cargo. Mas, quando vier a aproximação da perda da Presidência, esse quadro muda.

• Não teme que cenas como a tentativa de invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, se repitam em 2022 no Brasil?

A situação política é muito diferente. Donald Trump contava com pouco menos da metade dos eleitores. Bolsonaro hoje conta com um quinto da população.

• Como analisa a disputa pelo governo de São Paulo?

Só quando Rodrigo Garcia for percebido como governador é que se conhecerá o quadro eleitoral efetivo.

• Acredita em uma candidatura Geraldo Alckmin forte?

Em geral o governador de São Paulo conta com forte apoio no Interior. Alckmin fora do governo terá uma tarefa árdua para compensar a região metropolitana.

• Guilherme Boulos ou Fernando Haddad, quem é o nome mais competitivo para a esquerda?

Tende a ser o Haddad colado no Lula e amaciando o discurso para a classe média e o empresariado.

• Como analisa a disputa para o governo do Rio?

Uma eleição no Rio sempre tem um quadro múltiplo. Acho muito pouco ainda apenas os três nomes colocados até agora (Cláudio Castro, Marcelo Freixo e Rodrigo Neves). Imagino que Freixo vá até o fim e fará uma campanha olhando a candidatura a prefeito dois anos depois. Castro fez uma montagem multipartidária. Há um risco grande dessas alianças se desintegrarem se as pesquisas apontarem para um quadro adverso.

• Acredita em fatos novos como a candidatura do vice-presidente Hamilton Mourão ou do prefeito Eduardo Paes?

Mais provável que Mourão termine como candidato a deputado federal evitando riscos maiores. E Se Paes estivesse pensando nisso teria escolhido um vice próximo e com lastro. Em 2024 fará isso e irá para governador depois.

• O senhor pode se aventurar a ser candidato a algo em 2022?

Estou feliz como vereador com três mandatos.

27 de setembro de 2021

ENTREVISTA DE CESAR MAIA PARA O GLOBO, 25/09 – PARTE I!

Com as malas prontas para sair do DEM, o ex-prefeito do Rio de Janeiro e vereador Cesar Maia avalia que a fusão com o PSL é praticamente certa, e que o novo partido deverá marcar posição à direita do espectro ideológico. A guinada, comandada por ACM Neto, presidente nacional da sigla, foi marcada pelo racha devido a divergências na escolha do sucessor de Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados, que acabou expulso do partido em junho. Diante do cenário que se desenha para a eleição presidencial de 2022, Maia ainda especula desistência de Bolsonaro e enfraquecimento de Lula.

• De zero a dez, qual a chance da fusão entre DEM e PSL realmente se concretizar nos próximos meses?

Sete. Temos que aguardar os desdobramentos, especialmente nos estados. As informações que tenho recebido é que a escolha dos presidentes dos diretórios estaduais será confusa. Veja o caso do Rio. Um acordo de ACM Neto com o pastor Silas Malafaia levou o deputado Sóstenes Cavalcante à presidência do DEM no Rio. Mas, se houver mesmo a fusão, o presidente será o Waguinho, prefeito de Belfort Roxo pelo PSL. Em São Paulo, difícil saber como vai se resolver. Esse processo de fusão vai demorar no mínimo 90 dias.

• A união dos dois partidos é boa para a centro-direita brasileira?

Pelo que tenho acompanhado, a fusão formará um partido de direita e não de centro-direita. O DEM estava indo por um caminho de centro e optou por migrar para a direita. É uma decisão com foco apenas nas eleições de alguns governadores e deputados.

• O senhor acha que ACM Neto foi desleal com seu filho Rodrigo Maia em fevereiro na questão da liberação da bancada do DEM para apoiar Arthur Lira na disputa pela presidência da Câmara com Baleia Rossi?

Não tenho como avaliar. Mas os fatos posteriores mostram que havia uma pressão para empurrar o DEM para direita. Rodrigo já ocupava explicitamente o campo do centro.

• O senhor sairá do DEM assim como Rodrigo?

Sair do partido sem fusão exigiria uma solução jurídica com advogados de um lado e outro. Com fusão não haverá complexidade. Bastará uma escolha.

• A relação ruim de Gilberto Kassab com Rodrigo Maia não torna difícil a ida de vocês dois para o PSD, movimento feito pelo prefeito e aliado Eduardo Paes?

São dois profissionais e sabem bem que não estarem longe é bom para os dois.

• Como o senhor acha que Bolsonaro chegará para a eleição de 2022?

Na balança de probabilidades, o mais provável é desistir da candidatura sem decepcionar seu time por ficar fora do segundo turno. E desenhará uma desculpa para seus aficionados: tipo, “assim não dá para governar”. Ele já vem repetindo esse discurso. Sem Bolsonaro, Lula perderá o sparring preferencial e começará a perder musculatura. O quanto perderá depende da qualidade política das alternativas e dos discursos propositivos oferecidos. Não seria surpresa se a eleição de 2022 ocorresse em torno de outros dois nomes excluindo Lula e Bolsonaro. Em junho de 1994, Lula estava eleito. O Plano Real em julho desmanchou seu favoritismo. Fernando Collor só surgiu na pesquisa para valer também em junho. Ambos os casos no ano da eleição. Falta muito ainda.

• Como avalia os outros nomes cogitados para a Presidência até o momento?

Na disputa do PSDB entre João Doria e Eduardo Leite, não vejo como São Paulo deixará de disputar a cabeça. Basta ver toda a história da República. Há também que se aguardar a decisão de Rodrigo Pacheco e esperar ele esquentar nas pesquisas. A opção por Minas Gerais é inteligente. Abre um caminho. Trata-se do segundo colégio eleitoral do país.

• Pacheco deixará o DEM?

Acredito que sim. Segundo se diz, a conversa com o PSD avançou muito. E, como senador, ele pode mudar de partido quando quiser.

• E o seu correligionário Luiz Henrique Mandetta, alguma chance de ser candidato ou vice em outra chapa?

Se vier a fusão da forma anunciada, não vejo espaço para ele. Esse novo partido será criado para eleger deputados apenas.

Devastadoramente capaz

Publicado em 06.05.2007 em Folha de São Paulo

Biografia “Lacerda na Guanabara”, de Maurício Dominguez Perez, mostra a trajetória do político nos anos 1960.

CESAR MAIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

“Blowback” é uma expressão usada por alguns politólogos para definir uma ação política que aponta numa direção e produz um resultado inesperado e contrário ao objetivo inicial.

Em grande medida, foi o que ocorreu com Carlos Lacerda a partir de sua candidatura a governador da Guanabara, em 1960. Jogava tudo, mesmo antes, na desestabilização dos governos do PSD e do PTB. E olhava para a sua meta: a eleição presidencial de 1965.

Assumiu o governo da Guanabara promovendo reformas inaugurais na administração pública brasileira, na área fiscal e na área administrativa. Com o auxílio de Aliomar Baleeiro [1905-78], deputado constituinte na Guanabara, jurista especializado em finanças públicas, estruturou um sistema orçamentário, tanto nas relações entre o Executivo e o Legislativo como na implantação, pela primeira vez no Brasil, do orçamento-programa.
Essas inovações construíram a base do que se chama hoje de responsabilidade e transparência fiscais, que pautaram as reformas durante o regime militar até a Constituição de 1988, à qual foram incorporadas.

Lacerda implantou o acesso geral ao serviço público por concurso. Construiu um amplo arco de fundações, autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, na busca da descentralização, agilidade e eficiência na administração pública, que terminaram sendo a referência do governo Geisel e de outros até recentemente.
Introduziu um plano de metas nos moldes de Juscelino Kubitschek, enfatizando a infra-estrutura urbana, econômica e social.

Abriu a discussão sobre a questão das favelas e, quando governo, mudou de posição, saindo de temas como urbanização e acesso a serviços sociais em direção à remoção. São esses dados e fatos que Maurício Dominguez Perez nos traz na melhor biografia sobre Carlos Lacerda (“Lacerda na Guanabara”).

Para admiradores e críticos

Melhor por não ser fundamentalista -nem de um lado nem de outro- em relação a um político que tinha uma fronteira nítida entre os que o amavam e os que o odiavam. Melhor porque permite aos admiradores de Lacerda sublinhar suas opiniões. Melhor porque também permite aos críticos dele sublinhar suas opiniões, apesar da diagonal favorável do livro.
Melhor porque o governo Lacerda não caiu do céu, mas surgiu da dinâmica anterior das prefeituras do então Distrito Federal.

Se o quadro político anterior mostrava uma prefeitura manipulada pelos interesses da menor política de clientela, devido à volatilidade dos períodos de governo dos prefeitos escolhidos pelos presidentes, não se pode omitir que a condição de capital e a presença de talentos em todas as áreas, fora e dentro da prefeitura, encheu as gavetas de projetos dos mais diversos campos, muitos deles de excepcional qualidade.

Entravam, mas não saíam das gavetas pela inoperância da máquina municipal a partir da República de 1946. Um governo estadual eleito para a Guanabara dispunha de um mandato de cinco anos e, com isso, previsibilidade e possibilidade de uma programação de governo em médio prazo.

Para Lacerda, a equação era simples: apenas uma questão de construir uma máquina eficiente, tirar os projetos da gaveta e selecionar os mais adequados à sua visão de governo. As restrições eram a falta de recursos para isso e o tumultuado ambiente político daquele período.

Lacerda conviveu com quatro presidentes: Jânio Quadros, os primeiros-ministros [Tancredo Neves, Francisco de Paula Brochado da Rocha e Hermes Lima], João Goulart e Castello Branco. Seus conflitos maiores concentraram-se entre o início de 1963, quando o plebiscito restabeleceu o presidencialismo, e março de 1964, quando veio o golpe militar.
Com Jânio, o desgaste das relações ocorre em um período curto. Talvez porque Lacerda, em seu íntimo, não se imaginava como candidato dele em 1965 ou porque realmente temesse que um golpe de Jânio eliminasse aquela eleição.

O risco político que cercou o Brasil a partir da renúncia de Jânio, visto pelas lentes norte-americanas, aproximou Lacerda de John Kennedy e o transformou em seu interlocutor. A partir daí vêm os recursos da AID, da Aliança para o Progresso, do Bird, do BID e do Fundo do Trigo.
Perez demonstra que, embora importantes, eles não explicam a amplitude das realizações do governo Lacerda.

Uma restrição a mais é a força centrípeta do temperamento de Lacerda, que terminou por agregar obstáculos aos que já existiam, em ambiente político polarizado entre trabalhistas-comunistas e udenistas-lacerdistas.

A batalha da comunicação

Um comunicador como Lacerda, fundador ainda nos anos 1940 do discurso coloquial, sem fortes entonações, em que a série de sinonímias substituía com muito maior força o tom da voz, terminou perdendo a batalha da comunicação e terminou carregando, ao longo do tempo, a imagem de repressor dos pobres -mendigos e favelados- que lhe lançava a oposição.

24 de setembro de 2021

QUAL É O PRÓXIMO ALVO DA CHINA?!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 20) Não é nenhuma novidade que as empresas estrangeiras sofrem extorsões do Partido Comunista da China. Nos tempos da revolução chinesa, as tropas vitoriosas do presidente Mao não confiscavam diretamente os bens de estrangeiros, como seus antecessores bolcheviques tinham feito na Rússia.

Em vez disso, eles os desgastavam com impostos mais altos e multas tão grandes que as empresas acabavam entregando seus bens por nada. Em um caso famoso, revelado por Aron Shai, pesquisador israelense, em 1954, um britânico, dono de uma indústria, declarou estar entregando tudo o que tinha aos comunistas, desde “grandes quarteirões de armazéns até lápis e papel”. E, mesmo assim, ele reclamou que o camarada Ho, colega de profissão em outra indústria, continuou a pechinchar “como um comerciante antes da Guerra Civil Chinesa”.

Apesar de as multinacionais terem voltado para a China, a picuinha do governo continua englobando de tudo, desde transferência de tecnologia até a liberdade para investir. Houve grandes melhorias, mas a mesquinhez é um lembrete constante de que as empresas não devem ficar “muito confiantes”. As empresas ocidentais operam na China com tolerância, e um dia o país talvez tente substituí-las.

Como resultado, alguns talvez tenham sentido schadenfreude (expressão alemã que se refere à alegria pela desgraça alheia) com o fato de as empresas chinesas, e não as ocidentais, estarem sendo as principais vítimas do recente esforço do presidente Xi Jinping em projetar socialmente um novo tipo de economia. Apenas na semana passada, o governo tomou medidas para reduzir o tamanho entre os gigantes da tecnologia Alibaba e Tencent e, de acordo com o Financial Times, ordenou a divisão da Alipay, plataforma de pagamento móvel da empresa irmã do Alibaba, a Ant. Alguns chegaram a fazer comparações lisonjeiras entre os esforços de Xi para enfraquecer as “oligarquias” chinesas de tecnologia e o modo como os governos nos EUA e na Europa pressionam os gigantes da tecnologia ocidentais.

A mão pesada é assustadora em um grau incomum. Assim como a imprevisibilidade. Kenneth Jarrett, consultor experiente sobre a China que trabalha em Xangai para a empresa de consultoria Albright Stonebridge Group, diz que a pergunta na boca de todos é “quem será o próximo?”. As repressões ocorrem em um cenário de tensões crescentes entre a China e o Ocidente, o que deixa as multinacionais presas em uma espécie de limbo semilegal. Para muitos, o fascínio da China continua irresistível. Mas os perigos estão se igualando à promessa.

Além de bancos e gestores de ativos, alguns cujos investimentos na China foram severamente prejudicados nos últimos meses, vários tipos de empresas multinacionais estão em risco.

Um grupo inclui aqueles que ganham a maior parte de seu dinheiro na China, servindo a uma elite que gosta de ostentar luxos como suas bolsas de US$ 3.000 e carros esportivos. Outro, empresas que irritam seus clientes pelo que pode ser interpretado como arrogância ocidental; a Tesla, a montadora de veículos elétricos, é um exemplo. Já um terceiro grupo inclui fabricantes europeus e americanos de equipamentos industriais e dispositivos médicos avançados que a China acredita que ela mesma deveria produzir.

As ameaças vêm na forma de anúncios de políticas que parecem suaves. Uma delas, a “prosperidade comum”, é uma expressão abrangente que vai desde uma redução na desigualdade social até mais mimos para trabalhadores e clientes e cuidar de jovens estressados. Seu impacto mais óbvio é nas empresas chinesas de tecnologia, ensino e jogos, que perderam centenas de bilhões de dólares em valor de mercado. As multinacionais também sofreram com os efeitos colaterais. Em agosto, o valor de mercado de marcas de luxo europeias, como a Kering, fornecedora de bolsas Gucci, e a LVMH, holding francesa de artigos de luxo, despencou em US$ 75 bilhões depois que os investidores levaram a sério a agenda de prosperidade comum de Xi.

Ele não pretende forçar os consumidores chineses a voltar a usar as túnicas da época de Mao. Mas sua guerra contra a extravagância, principalmente entre os ricos, que chegam a gastar US$ 100 mil por ano em marcas estrangeiras, ameaça o fim mais lucrativo do mercado. Também põe em perigo marcas luxuosas que ganham na China mais do que em outros mercados, como, por exemplo, Milão. Flavio Cereda do Jefferies, um banco de investimentos, espera que o governo continue apoiando um crescente mercado de luxo da classe média, já que as compras ambiciosas refletem o sucesso econômico. Se a China estivesse prestes a bagunçar tudo isso, o impacto poderia ser gigante. Os consumidores do país são responsáveis por 45% dos gastos com luxos no mundo, segundo Cereda. “Sem a China, não há festa.”

“Dupla circulação” é outra expressão em voga com conotações preocupantes. É uma tentativa de promover a autossuficiência em recursos naturais e tecnologia, em parte como resposta aos temores de que a dependência de fornecedores ocidentais poderia tornar a China vulnerável a pressões geopolíticas e comerciais. Isso também representa ameaça às multinacionais ocidentais na China, com a redução das importações de tecnologia e ao criar uma mentalidade de “comprar produtos chineses”. Friedolin Strack, da Federação das Indústrias Alemãs (BDI), mencionou que estatais na China receberam diretrizes de compras que obrigam o fornecimento doméstico de dispositivos como máquinas de raio-x e equipamentos de radar.

Beco sem saída. Parece que tudo está se tornando um impasse. Por um lado, EUA, Europa e aliados estão em uma disputa geopolítica com a China, que acusam de violações aos direitos humanos em lugares como Xinjiang, lar da oprimida minoria uigur. O Ocidente quer restringir quais tecnologias suas empresas vendem na China e quais materiais, como algodão, compram do país. Por outro lado, a China afirma ter direito de retaliar contra as empresas que acha que estão se metendo em discussões geopolíticas.

Jörg Wuttke, presidente da Câmara de Comércio da União Europeia na China, diz que o tamanho do mercado faz valer a pena o desconforto. “O maior risco é não estar na China”, insiste. No entanto, qualquer pessoa com perspectiva de longo prazo talvez veja a autoridade pessoal indiscutível de Xi, sua aposta em reconfigurar a economia chinesa e o sombrio cenário geopolítico como razões suficientes para ponderar uma saída. Isso talvez nunca chegue a acontecer. Mas, como nos dias pós-revolução, às vezes tudo que é preciso são muitas extorsões para convencer até o mais resistente dos industriais a jogar a toalha.

23 de setembro de 2021

RECONCILIAÇÃO É DIFÍCIL PORQUE CONFRONTO FOI LONGE!

(María Matilde Ollier, doutora em ciência política pela University of Notre Dame e diretora do doutorado em Ciência Política da Escola de Política e Governo da Universidade Nacional de San Martín – O Estado de S. Paulo, 17) Para entender a crise, ainda em desenvolvimento, que ocorre na Argentina, é preciso voltar a seus antecedentes distantes e imediatos.

Os primeiros referem-se a uma anomalia política instalada desde a origem do atual governo pelo qual a vice-presidente, Cristina Kirchner, elege seu companheiro de chapa, Alberto Fernández, como presidente. Desta forma, ela estava em condições de retornar ao poder, algo que seus 30% de fluxo eleitoral e seu perfil radicalizado não possibilitavam. Fernández, um moderado, deu-lhe os 20% restantes.

A aposta ficou completa com a participação de outro peronista, Sergio Massa, que havia rompido com Cristina, derrotando-a, em 2013, na poderosa Província de Buenos Aires.

O experimento, um “panperonismo” feito de seus diferentes fragmentos, não só carecia de um único líder, mas também tinha uma liderança de duas faces: Cristina Fernández Kirchner (CFK) detinha o poder real (ela comanda Buenos Aires, preside o Senado com o próprio quórum e seu filho é o chefe do bloco peronista na Câmara dos Deputados) e o poder formal do presidente, sem qualquer pretensão de construir o próprio espaço.

O duplo comando teve repercussões na gestão do governo, quando a vice-presidente passou a intervir, impondo sua radicalização. E, aos poucos, foi se resolvendo a seu favor, não só porque todos os ministérios contavam com figuras de seu rebanho, mas também porque CFK expressou publicamente a Fernández a existência de “funcionários que não trabalham”, ocasionando a saída da ministra da Justiça (uma área sensível para CFK, que responde a vários processos judiciais).

Na mesma época, o ministro da Economia não pôde demitir um subsecretário respaldado pela vice, entre tantos outros episódios. As tensões entre cristinistas e albertistas tornaram-se um problema político e de gestão, somando-se aos inúmeros erros presidenciais na luta contra a covid e nas áreas educacional, econômica e social.

Nesse quadro, o gatilho imediato emerge. Antes das eleições, CFK alertou o presidente da necessidade de fazer mudanças no gabinete para melhorar a atuação do governo e, aliás, avançar sua participação: o chefe da Casa Civil e o ministro do Turismo deveriam ser chefes da lista de candidatos na Província de Buenos Aires e na própria capital.

O presidente recusou, colocando dois outros candidatos seus nesses lugares. A fórmula “panperonista”, útil para vencer as eleições presidenciais de 2019, provou ser um fracasso no governo, conforme revelado pela derrota esmagadora – em 17 das 24 Províncias – nas eleições primárias de domingo.

Na tentativa de reverter os resultados das eleições de novembro, a vice-presidente voltou a propor mudanças urgentes, mirado o chefe de gabinete. No entanto, o presidente considerou que elas deveriam ser feitas após as eleições.

Além das duas versões que circulam sobre se, na noite de segunda-feira, os dois chefes de governo organizariam mudanças em novembro ou não, uma série de funcionários importantes, incluindo ministros, como o do Interior, apresentou sua renúncia, alguns informalmente, pegando de surpresa Fernández, que descobriu através da mídia. Desencadeia-se uma crise no governo, latente desde a sua origem, que não é apenas produto da derrota, mas também do desígnio governamental que o levou à Casa Rosada.

Em vez de buscar soluções, a resposta do peronismo é um confronto entre suas duas figuras-chave. Com o passar das horas, o presidente recebeu o apoio de vários governadores peronistas, da Confederação-Geral do Trabalho e de alguns movimentos sociais.

Como Fernández não aceitou imediatamente as demissões (formais ou informais são um detalhe), a queda de braço continua, embora a ruptura da coalizão não pareça ser o caminho escolhido por ele. Diante do fracasso eleitoral, essa crise, em meio a uma eleição que ainda não terminou, enfraquece em vez de fortalecer o governo.

A conciliação exige que cada um abra mão de algo. Nesse caso, o desafio que virá passa fundamentalmente pela recomposição do vínculo entre o presidente e sua vice – algo bastante difícil em razão de quão longe foi o confronto.

22 de setembro de 2021

COMISSÃO DA VERDADE!

(Cesar Maia – Folha de São Paulo 14/04/11) O Informe da Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru cobre 20 anos, de 1980 a 2000. Em agosto de 2003, foi entregue ao presidente Alejandro Toledo. O relatório foi transformado no documentário “Para que Não se Repita”, dividido em 12 blocos, com seis horas de duração.

O escopo do informe e o período que cobre foram amplos: “Esclarecer as violações contra os direitos humanos cometidas pelo Estado e por grupos terroristas entre maio de 1980 e novembro de 2000”. Cada “comissão” criada na América Latina tem um escopo e um período de análise diferentes.

O relatório mostra a complexidade de uma comissão desse tipo. Foram 69 mil vítimas no período: 90% de mortos e 10% de desaparecidos.

O informe destaca o Sendero Luminoso/Partido Comunista Peruano, apresentando-o como um grupo terrorista. Também trata das causas históricas da violência no Peru, a discriminação de índios e negros e as diferenças sociais.

Após sublinhar as características democráticas dos ex-presidentes Fernando Belaúnde e Alan García, relata ações repressivas do Exército e da polícia tidas como terroristas.

Em Ayacucho, base do Sendero onde lecionava seu líder, Abimael Guzmán ou “presidente Gonzalo” (preso desde 1992), concentrou-se a violência, passando depois a Lima.

O governo de Alberto Fujimori, que liquidou o Sendero, tem seus méritos minimizados e, nesse caso, associa-se a ele a repressão e o terrorismo da polícia e do Exército.

Destaca-se ainda o papel das milícias locais (rondas), armadas pelo próprio Exército e atuando em cada região com independência. Mesmo informando casos de terror praticados pelos “ronderos”, o relatório tenta realçá-los como autodefesas das comunidades, e que teriam tido papel básico.

Para concluir, o informe condena a passividade da Justiça e do Ministério Público, que deveriam ter tido papéis ativos, mas seriam responsáveis, por omissão, por crimes contra os direitos humanos.

O documento “esquece” o MRTA (Movimento Revolucionário Tupac Amaru), ostensivamente financiado pelo tráfico de drogas e responsável pelo sequestro múltiplo na Embaixada do Japão, desintegrado pela inteligência policial em operação cinematográfica e ao vivo, no período Fujimori.

De tudo o que mostra o relatório/documentário, o mais importante é o risco do trabalho de comissão similar passar a cumprir um papel político, ter uma abrangência sem limites e igualar ou encobrir excessos de forças heterogêneas.

Uma comissão de tal tipo pode terminar servindo para atirar em qualquer direção e, assim, incorporar riscos de excitar e deformar a memória.

Por isso, nunca poderá ser governamental nem ter cor ideológica. Deve ter foco específico e detalhado em um período.

21 de setembro de 2021

OS EUA E A POLÍTICA EXTERNA!

(Fareed Zakaria – O Estado de S. Paulo, 20) Se Biden seguir curso atual, historiadores poderão considerá-lo o presidente que normalizou a política externa de Trump.

Amanhã, o presidente Joe Biden fará seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU. Esse discurso chega em um momento crucial de sua presidência e terá um impacto particular na maneira como seu governo será visto no exterior. Depois de quase oito meses analisando políticas, retóricas e crises, muitos observadores estrangeiros ficaram surpresos – até chocados – ao descobrir que, área após área, a política externa de Biden é uma fiel continuação da de Donald Trump e um repúdio à de Barack Obama.

Parte dessa consternação é consequência da maneira abrupta e unilateral com que Biden retirou as tropas americanas do Afeganistão. Um diplomata alemão me disse que, no seu modo de ver, o governo Trump consultava mais Berlim do que este. Outras consequências vêm de ações específicas, como o negócio do submarino, que enfureceu os franceses.

Mas as crescentes preocupações vão muito além de qualquer episódio. Um alto diplomata europeu observou que, nas negociações com Washington sobre qualquer coisa, desde vacinas até restrições de viagens, as políticas de Biden são “‘América em primeiro lugar’ na lógica, qualquer que seja a retórica”. Um político canadense disse que, se forem seguidos à risca, os planos “Buy America” de Biden são, de fato, mais protecionistas do que os de Trump. Apesar de ter criticado as tarifas de Trump repetidas vezes, Biden manteve quase todas elas. (Na verdade, muitas foram ampliadas, uma vez que a maioria das isenções acabaram expirando).

Os principais aliados asiáticos continuam pressionando Biden a retornar à Parceria Transpacífico – muito elogiada por ele quando o governo Obama a negociou. Em vez disso, a ideia foi arquivada.

Outro exemplo notável da política externa surpreendentemente trumpista de Biden é o acordo com o Irã, uma das conquistas marcantes do governo Obama. Ao longo da campanha eleitoral, Biden argumentou que a retirada de Trump desse acordo fora um erro fundamental e que, como presidente, ele se reintegraria ao acordo, desde que o Irã também cumprisse o prometido. Seu conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, descrevera a reimposição de sanções secundárias de Trump contra Teerã como “unilateralismo predatório”.

Mas, desde que assumiu o cargo, Biden não conseguiu retornar ao acordo e até aumentou algumas sanções. Depois de passar muito tempo argumentado contra a tentativa de renegociar o acordo, as autoridades de Biden agora querem “estendê-lo e fortalecê-lo”. Até agora, essa estratégia Trump-biden não funcionou. O estoque de urânio enriquecido do Irã passou de menos de 300 quilos em 2018 para mais de 3 mil em maio.

Vejamos também a política em relação a Cuba. O governo Obama foi ousado o suficiente para enfrentar um dos mais flagrantes fracassos da política externa americana. Depois de isolar e impor sanções a Cuba desde 1960 para forçar uma mudança de regime no país, os Estados Unidos, ao invés disso, fortaleceram o governo comunista. Fidel Castro despertou fervor nacionalista ao colocar no embargo a culpa por todos os problemas cubanos e, longe de ser derrubado, acabou permanecendo no poder por mais tempo do que qualquer líder não monarquista no planeta.

Como no caso do Irã, o custo dessas políticas foi pago pelas pessoas comuns. Um dos aspectos mais cruéis da política de sanções dos Estados Unidos é que ela é prontamente implantada porque satisfaz grupos de interesses especiais em Washington e é indolor para os americanos, mas inflige danos horríveis aos mais pobres e impotentes que não têm como protestar nem reagir.

Obama começou a relaxar essas políticas em relação a Cuba. Trump inverteu o curso. Biden vem mantendo a política de Trump e, na verdade, endureceu as sanções. Numa votação recente da Assembleia Geral da ONU que condenava os 60 anos de embargo americano, o resultado da votação foi 184 a 2.

Biden e sua equipe muitas vezes criticaram Trump por seu ataque às regras do sistema internacional. Mas como reconstruir tal sistema e, ao mesmo tempo, abraçar o protecionismo descarado, as sanções unilaterais, as poucas consultas e as políticas “América em primeiro lugar” sobre vacinas e até mesmo restrições de viagem?

Na semana passada, quando eu estava voltando da Europa, a funcionária da companhia aérea britânica que fazia o check-in me disse nervosamente: “Espero que o senhor tenha passaporte americano”. Eu respondi que sim, mas perguntei por que ela parecia tão aliviada. Ela respondeu: “Oh, os americanos estão fazendo os europeus enfrentarem um pesadelo para entrar no país. E parece muito injusto, porque temos taxas de vacinação muito mais altas e níveis muito mais baixos de covid do que vocês”. Ela concluiu exasperada:

“Parece que hoje em dia vocês, americanos, só querem um esquema que os favoreça, não importa o que os outros pensem”.

Não precisava ser assim. O egoísmo de Trump deveria ser uma aberração. Biden pode usar o púlpito da ONU para retornar às suas profundas raízes de internacionalista que entende que os países não se aliam aos Estados Unidos simplesmente por medo, suborno ou preocupações de segurança.

Eles o fazem porque seus melhores presidentes articularam e perseguiram políticas que, embora sempre estivessem atentas aos interesses americanos, também tentavam construir uma ordem internacional aberta e baseada em regras que ajudasse outros países a prosperar. Se Biden continuar seu curso atual, porém, os historiadores um dia poderão considerá-lo o presidente que normalizou a política externa de Donald Trump.

17 de setembro de 2021

A CORTE DOS ANJOS!

(Artigo de Cesar Maia em Folha de São Paulo, 22/01/2011) “Governar é fazer crer”, dizia Maquiavel. As lideranças míticas, sejam políticas, sociais ou religiosas, se afirmam por dois caminhos distintos.

De um lado, os líderes cuja autoridade se afirma como guias de seus povos. São os detentores da legitimidade pelas ideias que conduzirão seus povos ao paraíso. Perón e Vargas são exemplos.

Outras lideranças legitimam a sua autoridade pela ausência. Representam divindades. O que os legitima está ausente deles, está em outro plano. padre Cícero, no Ceará, e Santa Dica, em Goiás, são exemplos. Maria de Araújo, beata de padre Cícero, em transe, ao meio de milagres, conversava com os anjos.

Santa Dica, em transe, ia até a “corte dos anjos” e voltava com as orientações a serem seguidas. Padre Cícero elegia e elegeu-se. Santa Dica elegeu seu companheiro. O monopólio da legitimação pela ausência trouxe e traz conflitos interreligiosos.

A autoridade legitimada pela ausência não é restrita à esfera religiosa. Líderes políticos, em diversas épocas, ao se incluir no universo dos deuses, assim se legitimavam.

Ramsés 2º, Júlio Cesar e Hirohito são exemplos. Em outros, a própria nação é uma divindade. Agitam com símbolos milenares, cenografia e coreografia relativas. Representam essa divindade-nação ausente. Hitler (a raça germânica superior) é um caso.

Outras vezes, essa divindade é um autor cujas ideias são estruturadas como dogmas. A legitimação pela ausência se refere a eles e a suas ideias. O líder é quem representa essas ideias da forma mais autêntica. Marx foi usado assim. Depois vieram as suplementações de legitimação derivada: leninismo, stalinismo…

Outro tipo de legitimação da autoridade se dá pela contra-ausência. Ou seja uma ausência que coloca em risco o país e exige a delegação de todos ao líder. O “perigo vermelho” foi usado assim, legitimando líderes e ditadores. “O imperialismo ianque”, idem.

Mas há um tipo de liderança mítica que se parece com a do tipo guia dos povos. Apenas se parece. Na verdade, legitima-se também pela ausência. O povo, em abstrato, passa a ser uma divindade. Um povo amalgamado que incorpora todos os valores de fé, justiça e de esperança. E de dentro desse amálgama surge o líder, que é ele, o próprio povo, encarnado em sua pessoa, como redentor. As lideranças míticas são desintegráveis pelo fracasso, pela desmistificação (falsos profetas), pela força ou por outros tipos de líderes míticos. Num regime democrático, a força se exclui. Quando a alternância acontece em uma conjuntura de sucesso, a desmistificação não é tarefa simples. Nessas condições, um líder racional alternativo precisaria de alguma dose de legitimação de sua autoridade pela ausência.

16 de setembro de 2021

EUA REMOVEM ESTÁTUA DE GENERAL CONFEDERADO EM MEIO A DEBATES SOBRE RACISMO!

(Reuters/AFP/Estado de SP, 08) Em meio às discussões sobre monumentos que homenageiam figuras controversas da história, uma estátua do general Robert E. Lee , que defendeu os confederados na Guerra Civil dos EUA (1861-1865), foi removida nesta quarta-feira, 8, de Richmond, na Virgínia, após uma batalha legal que durou um ano.

Trata-se de uma das maiores estátuas ainda de pé em homenagem aos confederados, com 6,4 metros de altura e sobre um pedestal de 12,2 metros de granito. A figura, de bronze, foi instalada na cidade, antiga capital da Confederação durante a Guerra Civil, em 1890, e retrata Lee em cima de seu cavalo.

Os confederados, grupo derrotado no conflito americano, defendiam a manutenção da escravidão no país, e, por isso, monumentos e bandeiras ligadas ao grupo são alvos de protesto contra o racismo. Nos últimos seis anos, foram removidos mais de 300 símbolos confederados e de supremacistas brancos, enquanto cerca de 2.000 ainda estão de pé, segundo o centro de pesquisa Southern Poverty Law.

Uma estátua de Lee foi removida de Charlottesville, também na Virgínia, em julho deste ano. No Brasil, um importante representante dessa discussão é o monumento ao Borba Gato, na zona sul de São Paulo, que foi incendiado também em julho. A estátua, polêmica desde a inauguração, é contestada por seu valor estético e histórico, já que homenageia um bandeirante apontado como escravagista e assassino de indígenas e negros —embora nem todos concordem com essa visão.

Na noite da terça-feira 7, as ruas ao redor da estátua de Lee foram fechadas, enquanto o governo preparava uma área para o público assistir à remoção do monumento. A obra será guardada em um local seguro, de acordo com autoridades locais, até que haja uma decisão sobre seu futuro. A base de granito, porém, permanecerá no local, mas a placa que identificava o homenageado será retirada.

Na última quinta-feira, 2, a Suprema Corte da Virgínia decidiu por unanimidade em dois casos que o governador poderia remover a estátua. A retirada, porém, foi contestada por parte dos moradores e por um descendente da família que transferiu a posse da estátua para o estado.

Há mais de um ano, em junho de 2020, o governador do Estado, o democrata Ralph Northam, anunciou planos para remover a estátua, dez dias depois de um policial branco de Minneapolis matar o ex-segurança negro George Floyd, o que gerou uma onda de protestos em todo o país.

Assim, estátuas como a do navegador Cristóvão Colombo também foram atacadas. Uma foi incendiada e jogada em um lago em Richmond. Outra, em Boston, foi decapitada. Uma terceira, em Baltimore, foi derrubada no mesmo dia em que o ex-presidente Donald Trump acusou manifestantes de tentarem apagar a história do país. Também nos EUA, a prefeitura de Chicago removeu temporariamente mais duas estátuas do navegador italiano, depois que um grupo de ativistas tentou derrubá-las.

Atos semelhantes se seguiram na Europa. Em Bristol, no Reino Unido, o alvo foi uma estátua de Edward Colston, traficante de escravos e membro do Parlamento britânico que viveu no século 17.

A escultura de uma ativista negra feita por um artista britânico chegou a ser colocada no mesmo pedestal onde ficava Colston, mas foi removida pelas autoridades municipais por ter sido instalada sem permissão.

Em Londres, a estátua de Robert Milligan, que chegou a ter 526 negros escravizados em suas fazendas de plantação de açúcar na Jamaica, foi removida pelo Museu das Docas. Na Bélgica, ganhou força uma campanha já antiga para tirar de cena monumentos do rei Leopoldo 2º, e um busto do monarca que colonizou o Congo (atual República Democrática do Congo) foi para o depósito na Universidade de Mons.

15 de setembro de 2021

COMO A PANDEMIA SE TORNOU ESTAGFLACIONÁRIA!

(The Economist/O Estado de S. Paulo, 07) Foi um verão de surpresas desagradáveis para a economia mundial. Os Estados Unidos, a Europa e a China estão crescendo mais lentamente do que os investidores esperavam. Os preços pagos pelos consumidores estão subindo em ritmo terrivelmente rápido nos Estados Unidos. Até mesmo na zona do euro, acostumada a uma inflação morna, os preços em agosto foram 3% mais altos do que em 2020, o maior registro em uma década. As economias estão tendo dificuldades com a escassez de peças e de mão de obra, transporte caro e lento de mercadorias e a confusa variação de adoção de lockdown.

A propagação da variante Delta é a culpada, mas a maneira como a pandemia está afetando a economia está mudando. O mundo se acostumou com o crescimento violento do vírus, conforme as ondas de infecção causavam paradas repentinas nas atividades e os preços eram atenuados ou até mesmo caíam. A Delta, por outro lado, parece uma força estagflacionária que está minando o crescimento de forma menos dramática, mas disparando a inflação. A variante está pesando nos gastos do consumidor no mundo rico, mas sem causar um colapso.

Em países com muitas vacinas, os casos não estão mais impedindo tanto os consumidores de se movimentarem. O setor de serviços da Europa foi reaberto em meio a uma onda de contágios pela Delta.

Os consumidores parecem menos assustados com a doença mesmo existindo um número suficiente de pessoas não vacinadas para encher os hospitais. Há um ano, o número de clientes em restaurantes americanos foi aproximadamente metade do de 2019. Agora, o serviço está cerca de 10% abaixo daquele período, apesar de os hospitais estarem três vezes mais cheios.

No Japão, um estado de emergência tomando conta de Tóquio não parece estar afastando os consumidores das lojas. Apenas nos países com políticas draconianas destinadas a eliminar o vírus as pessoas estão presas em casa. Austrália e Nova Zelândia enfrentam novas recessões como resultado de seus lockdowns, e o setor de serviços da China parece estar encolhendo.

Enquanto isso, a propagação da variante Delta continua a prejudicar o fornecimento global de mercadorias, assim como os consumidores, principalmente os americanos, pretendem comprar mais carros, dispositivos e equipamentos esportivos do que nunca.

Surtos em países do Sudeste Asiático com baixas taxas de vacinação estão provocando paralisações temporárias na produção das fábricas e nas redes de logística, o que por consequência prolonga a interrupção nas cadeias de suprimentos.

Nos Estados Unidos, varejistas, entre eles a Gap e a Nike, têm feito pressão para a Casa Branca doar mais vacinas para o Vietnã, tão cruciais para suas fábricas voltarem a funcionar. A escassez está fazendo os preços subirem.

A mudança na relação entre o vírus e a economia tem implicações para os legisladores. Eles não serão capazes de repetir o truque do início da pandemia de restringir a movimentação das pessoas como um modo de conter a propagação do vírus, ao mesmo tempo em que liberam ajudas financeiras para criar um boom de compensação na demanda por mercadorias.

A recuperação do setor de serviços é atualmente o único caminho rápido para um crescimento rápido, porque é aí que a chance está. Os gastos das famílias americanas com serviços no segundo semestre foi cerca de 3% abaixo do nível registrado em 2019 em termos reais.

Se a propagação da variante Delta prejudicar as indústrias de serviços tais como a de lazer e hospitalidade, mais ajuda financeira apenas criará mais inflação. Também é mais difícil argumentar que o medo do vírus afugenta os consumidores das compras e que as restrições do governo para diminuir a velocidade da propagação da doença, portanto, têm pouco custo econômico extra.

Uma conexão mais fraca entre os casos e a movimentação das pessoas e a necessidade de crescimento do setor de serviços aumentam o custo dos lockdowns.

Se a pressão sobre os hospitais fizer com que até mesmo nações com grandes taxas de vacinação, como o Reino Unido, restrinjam os serviços durante o inverno, o dano econômico será grande, e os benefícios menores.

A onda de contágios de covid pela variante Delta pode diminuir em breve, aliviando a pressão sobre a economia mundial.

Se isso não acontecer ou se outra variante tomar o seu lugar, as compensações envolvidas na luta contra o vírus se tornarão mais difíceis de se justificar.

14 de setembro de 2021

ULYSSES GUIMARÃES E AS MUDANÇAS POLÍTICAS NO RIO!

(Artigo de Cesar Maia em O Globo, 14/10/2012) O jornalista Jorge Bastos Moreno publicou no GLOBO uma série de matérias sobre o deputado Ulysses Guimarães e dona Mora. Talvez tenha faltado uma. Em abril de 1991, ainda deputado federal, fui convidado por dr. Ulysses para acompanhá-lo a Sevilha, junto com o deputado Nelson Jobim e o senador Nelson Carneiro, em uma reunião conjunta dos Parlamentos Europeu e Latino-Americano.

Havia sido criado um ambiente de convivência difícil com deputados do PDT. Essas conversas de análise da situação nacional com o governo Collor começando a fazer água desdobraram-se para os estados, especialmente o Rio de Janeiro. lá em Brasília, as conversas tiveram curso e culminaram com minha integração à equipe do dr. Ulysses e à entrada na executiva nacional do PMDB como secretário de relações internacionais.

No Rio, a análise da situação política local teve curso na casa de Renato Archer. Tanto Ulysses como Archer insistiam que era fundamental alterar completamente o eixo político do triângulo Rio, Minas e São Paulo. Minas vivia o ciclo Newton Cardoso-Hélio Garcia, e São Paulo, Quércia-Fleury. No Rio, havia que superar o ciclo Brizola e dentro do PMDB fazer prevalecer as ideias dos “autênticos”.

Para isso, dr. Ulysses insistia em minha candidatura a prefeito. Resisti, pois a minha condição de deputado economista me motivava estar na Câmara de Deputados. Dr. Ulysses disse que eu estaria junto com ele em momentos importantes antes e durante a campanha e que a candidatura viria com o respaldo aberto de seu grupo. Assim foi.

O primeiro ato antes da campanha de 1992 (era o início do processo de cassação de Collor) ocorreu com a visita do dr. Ulysses, me levando junto, à casa do jornalista Barbosa Lima Sobrinho para a primeira assinatura da petição pública ao Congresso de afastamento do presidente da República. As fotos ampliariam minha visibilidade política. Durante a campanha de 1992, em seguida à cobertura pela TV da CPI Collor, meu programa entrava com pronunciamentos do presidente da CPI, senador Amir Lando, e do presidente da Câmara, deputado Ibsen Pinheiro, além do deputado Ulysses Guimarães. Uma espécie de duplicação das imagens da CPI a que o Brasil assistia nos telejornais.

De meros 5% em pesquisas, veio a passagem para o segundo turno, inaugurada com fala do dr. Ulysses. Em seguida, a liderança. No meio do segundo turno, veio a tragédia da queda do helicóptero com Ulysses, Severo Gomes e esposas. Havia passado pelo Rio para reforçar minha campanha e seguiu para Angra. Veio a eleição e abriu-se um novo ciclo político no Rio, governar por 12 anos e dois secretários meus pelos outros agora 12.

Independentemente de valorações administrativas das diversas gestões, o fato é que na capital quebrou-se um ciclo, abriu-se outro de características muito diferentes. Na entrada da prefeitura do Rio, foi colocada por mim uma escultura com pedaços dos destroços do helicóptero que vitimou dr. Ulysses. Uma homenagem a quem mudou a política no Rio.

13 de setembro de 2021

E SE GEORGE W. BUSH TIVESSE DECIDIDO NÃO INVADIR O IRAQUE?!

(Ishaan Tharoor – The Washington Post/O Estado de S. Paulo, 10) Boa parte dos americanos, varridos pela pressa de George W. Bush, não questionou a conexão entre o 11 de Setembro e a decisão de invadir “preventivamente” o Iraque, dois anos depois, para derrubar Saddam Hussein. Uma pesquisa do Washington Post, de 2003, descobriu que 7 em cada 10 americanos acreditavam que era pelo menos “provável” que Hussein estivesse diretamente envolvido nos ataques.

É claro que tudo isso se provou absurdo, como grande parte do argumento de Bush sobre as fantasiosas armas de destruição em massa do regime iraquiano. Animado por um zelo neoconservador para derrubar regimes inimigos – e desimpedido pelo grosso da imprensa – Bush mergulhou os EUA em uma guerra e ocupação que redesenhariam o mapa do Oriente Médio, desviariam a atenção da intervenção no Afeganistão e provocariam novos ciclos de violência.

“Os primeiros dois anos após o 11 de Setembro marcaram uma era em que os EUA cometeram grandes erros estratégicos”, disse Vali Nasr, professor da Escola de Estudos Internacionais da Universidade Johns Hopkins, ao Today’s World View. “Sua visão foi obscurecida pela raiva e pela vingança.”

Mas e se os EUA tivessem optado por não invadir o Iraque? A decisão de derrubar Saddam, ainda mais do que a invasão do Afeganistão, provocou uma guerra que isolou uma série de outras opções e desencadeou eventos que alteraram a região. É impossível reverter o que Bush fez, mas podemos especular sobre alguns elementos dessa proposição contrafactual.

Entre eles, há o número de mortos no Iraque. O Watson Institute, da Brown University, calcula que entre 184.382 e 207.156 civis iraquianos foram mortos entre março de 2003 e outubro de 2019. Mas o número verdadeiro pode ser maior.

“Mesmo considerando o longo histórico de brutalidade de Saddam, é difícil imaginar um futuro de maior sofrimento para o povo iraquiano se os EUA não o tivessem retirado do poder”, disse Sinan Antoon, poeta e escritor iraquiano radicado em Nova York. “Se o regime tivesse permanecido, dezenas de milhares de iraquianos ainda estariam vivos e não nasceriam, todos os dias, crianças com defeitos congênitos em Fallujah”, disse Antoon ao Today’s World View, aludindo ao impacto dos cartuchos de urânio empobrecido que as forças americanas usavam no Iraque.

De acordo com ele, se os EUA não tivessem invadido o Iraque, também não teríamos a ascensão do Estado Islâmico – uma convicção compartilhada pelo ex-presidente Barack Obama e uma miríade de especialistas.

Outros caminhos também eram possíveis. Em 2002, Shibley Telhami, professor da Universidade de Maryland, fazia parte de um grupo de estudiosos que se opunham à guerra no Iraque. “Bush tinha a chance de construir coalizões globais, fortalecer as normas e instituições internacionais, focar na ameaça da Al-Qaeda, reformular as relações na região do Golfo e usar o apoio para encerrar o conflito palestino-israelense”, disse Telhami, também ao Today’s World View.

“Mas, em vez disso, ele optou pelo unilateralismo e acabou com o equilíbrio de poder entre Irã e Iraque. O ganho do Irã ao ver seu inimigo cair em Bagdá, redefiniu os cálculos geopolíticos dos países árabes do Golfo, que ficaram tão inseguros que embarcaram em suas próprias políticas desestabilizadoras, incluindo a guerra do Iêmen.”

10 de setembro de 2021

A SAÍDA DA ESTADISTA!

(Opinião – Folha de SP, 01) Se há um líder político que se consagrou como estadista nos últimos anos, esse líder é a chanceler alemã Angela Merkel. Ela soube como ninguém conciliar o pragmatismo com o respeito a princípios civilizacionais, como se viu na crise dos refugiados de 2015-16.

Enfrentou a Covid-19 com competência e transparência, recorrendo sempre à abordagem científica, com a qual, na condição de química quântica, está plenamente familiarizada. Até pela ausência de concorrentes à altura, tornou-se a principal líder da União Europeia.

Ao longo de 16 anos no poder, foi capaz de capitalizar tudo isso em prestígio pessoal. Trata-se de uma política incomumente popular, não apenas na Alemanha como em vários outros países europeus. Paradoxalmente, é considerável a probabilidade de Merkel ver sua agremiação, a aliança conservadora CDU/CSU, naufragar nas eleições marcadas para o próximo dia 26.

Que a chanceler deixaria o cargo já era sabido. Faz um bom tempo que a líder anunciou a intenção de aposentar-se ao término do atual mandato, mas, diante do sucesso que é sua administração, pretendia entregar o posto a um sucessor de seu próprio partido.

Armin Laschet, o candidato designado, contudo, vem caindo nas pesquisas. Divisões internas na aliança e uma forte propensão a cometer gafes contribuem para isso. Quem ganha pontos é o candidato do SPD, o partido de centro-esquerda, Olaf Scholz. A esta altura, só se pode prever que a Alemanha terá um governo de coalizão.

Uma eventual vitória de Scholz não chegaria a configurar uma derrota pessoal para Merkel. O social-democrata não é, afinal, um oposicionista radical que vive de fustigar a imagem da chanceler. Muito pelo contrário, parte do prestígio de Scholz advém do fato de ele integrar a atual coalizão governista, na qual ocupa o posto de vice-chanceler e ministro das Finanças. Seu plano de resposta à pandemia, que atenuou os efeitos do desemprego e da recessão, é visto como um caso de sucesso com bom apelo eleitoral.

Qualquer que seja o resultado do pleito, a Alemanha, diferentemente de outros países ocidentais, não corre maiores riscos de sucumbir ao populismo radical. Não se espera que o partido de extrema direita, a Alternativa para a Alemanha (AfD), tenha uma grande votação, e são praticamente nulos os riscos de que venha a ser convidado para integrar o governo.​

09 de setembro de 2021

CRISE DE ENERGIA MUNDIAL!

(Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura – O Estado de S. Paulo, 04) As mudanças climáticas são uma realidade ao redor do mundo. As consequências dos desastres climáticos têm levado à escassez de eletricidade e a tarifas cada vez mais elevadas. Estamos presenciando uma época de extremos. Invernos cada vez mais frios e verões com temperaturas recordes, além de furacões que isolam regiões e derrubam linhas de transmissão. Isso tem trazido impactos e dificuldades na chamada transição energética.

A forte seca na Califórnia fez o governador declarar estado de emergência e suspender as regras de qualidade do ar. O Estado, que vem apostando agressivamente em energia eólica e solar, agora está adicionando várias usinas movidas a gás natural. A Comissão de Energia da Califórnia aprovou licenças para geradores de gás de emergência por até cinco anos e chegou à conclusão de que não pode ficar refém de energias intermitentes que têm causado inúmeros blecautes ao longo dos últimos meses de 2021.

O Chile também vem enfrentando problemas similares. A seca no país fez com que o Ministério de Energia chileno publicasse em agosto um decreto estabelecendo um conjunto de medidas preventivas para evitar o racionamento de energia elétrica. Segundo o decreto, as medidas vigorarão até 31 de março de 2022 e têm como objetivo evitar, gerir, reduzir ou ultrapassar os déficits de geração que podem ocorrer no Sistema Elétrico Nacional, preservando a segurança.

No Brasil a situação não é muito diferente. De acordo com dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico, estamos vivendo a pior escassez de água dos últimos 91 anos. E nos últimos 20 anos a nossa matriz elétrica também ficou refém das chamadas energias intermitentes, pois, embora ainda permaneça a predominância da fonte hídrica clássica, o crescimento da oferta foi marcado pela forte expansão da eólica e das hídricas a fio d’água.

De acordo com relatório do centro de estudos Ember, de Londres, divulgado em março de 2021, as emissões do setor de energia voltaram a aumentar no primeiro semestre do ano e estão, agora, 5% maiores que as do mesmo período de 2019, antes da pandemia. Um dos motivos deste aumento está relacionado à volta do uso do carvão para atender à demanda por eletricidade. No momento em que os países são pressionados por mais energias limpas, a queima de carvão na geração de energia vem ganhando força. Por quê? Porque a retomada do crescimento econômico está exigindo um aumento do consumo de energia com confiabilidade e segurança.

De um lado, temos as tragédias climáticas; do outro, a corrida contra o tempo para a transição energética; e no meio dos dois, a falta de energia e, consequentemente, tarifas cada vez mais caras. O açodamento em fazer a transição para fontes limpas está demonizando os combustíveis fósseis e aumentando o risco da segurança energética. Mas como assegurar uma transição energética num mundo cada vez mais pobre, mais populoso, plural e que, para ter qualidade e dignidade de vida, necessita de eletricidade?

É preciso cautela e seriedade. A transição energética exige tempo para ser solucionada, portanto um planejamento efetivo deve ser posto em prática com tranquilidade, serenidade e sem açodamento. No curto prazo, um esforço conjunto entre governantes e governados deve ser empregado para que seja possível um melhor gerenciamento entre mudanças climáticas e transição energética. No médio prazo, o planejamento precisa priorizar a segurança energética por meio de térmicas a gás e nuclear, preferencialmente próximas aos centros de carga.

Esses tipos de geração podem ser a solução na configuração atual em que há a busca pela redução de emissões, em prol do clima global, ao tempo em que garante a resiliência do sistema elétrico para a retomada das economias pós-pandemia. No longo prazo, o setor elétrico precisa de um balanço entre as fontes distantes, sazonais e intermitentes com fontes de geração constante e próximas aos centros consumidores, garantindo, assim, a segurança no sistema e o cuidado com o meio ambiente.

Não podemos permitir que, depois da crise financeira de 2008 e depois da pandemia de 2020, se tenha de enfrentar uma crise de energia em escala global cujos desdobramentos podem levar a uma nova crise sanitária e ao caos social.

08 de setembro de 2021

VÍRUS DO AUTORITARISMO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 06) Se cada cidadão agir conscienciosamente como um anticorpo, a democracia pode destruir o vírus do autoritarismo.

Há um processo de erosão das instituições democráticas no Brasil? Nossa democracia está em risco? Ao fim e ao cabo, vai ter golpe? Para enfrentar essas perguntas cada vez mais presentes – das redes sociais à academia, da imprensa às salas de jantar –, a Fundação FHC e o Estado promoveram um debate com diversos cientistas políticos.

Como em todo bom debate, prevaleceu a dialética. E, como reza a boa dialética, as disputas foram travadas sobre uma base de consenso. O consenso é de que há uma crise global da democracia caracterizada pela ascensão dos populismos e tremendamente agravada no Brasil pelo autoritarismo desabrido do presidente da República. Os dissensos versaram sobre o grau de resiliência das instituições.

Há risco de ruptura? Carlos Pereira foi categórico: “Não”. O Judiciário vem dando “sinais coerentes e consistentes”. Contrastando com a cisão entre garantistas e punitivistas à época da Lava Jato, as ameaças de Jair Bolsonaro “unificaram o Supremo”. No Legislativo, as Comissões de Inquérito cumprem o papel de fiscalizar e constranger o presidente.

A imprensa, como com todos os governos na redemocratização, dispara diuturnamente suas críticas. Nossa democracia é “incerta, vibrante e competitiva”, disse Pereira, “e isso lhe dá vitalidade”.

Jairo Nicolau falou em um “dilema” entre um “otimismo estrutural” e um “pessimismo conjuntural”.

A crise de representatividade, as dificuldades de renovação partidária e o desgaste diário provocado por Bolsonaro evidenciam um “mal-estar”. Mas não há precedentes históricos para uma “quebra institucional” das democracias contemporâneas; as estruturas constitucionais brasileiras não permitem uma distorção tão extrema; e, embora haja um amplo contingente conservador na população, as evidências mostram que a extrema direita é só uma minoria, estridente, mas marginal.

Eleitores conservadores que elegeram Bolsonaro não endossariam aventuras golpistas e podem migrar para um candidato competitivo de centro-direita.

Mas, mesmo que as estruturas políticas e civis sejam resistentes a rupturas, a “tensão máxima” a que estão submetidas turva o foco nos problemas reais da sociedade, aumentando “o custo de operação da democracia”, advertiu Magna Inácio. Alguns cidadãos se radicalizam, outros se distanciam, geram-se incentivos à “desmobilização dos mecanismos de controle”, e os corporativismos correm soltos.

Mesmo não sendo um choque abrupto, essa degradação leva a uma democracia atrofiada e ineficiente para sanar distorções estruturais como a desigualdade social.

O tom mais pessimista do debate foi dado por Sergio Fausto. “A ideia de que as instituições estão rodando conforme a sua concepção original é uma cegueira.” O presidente da República anuncia que as eleições serão fraudadas a menos que ele vença; blinda seus crimes de responsabilidade traficando emendas parlamentares; e incita a população à luta armada. Uma coisa é a sociedade desconfiar das instituições e seus representantes, outra é “uma força política organizada querendo romper com o sistema, dizendo-o claramente, insuflando quartéis”.

Se o desfecho parece inconclusivo, não é pela fraqueza do debate, mas pela força de seu objeto. A democracia é por natureza dramática. “Otimismo” e “pessimismo” são simplificações convenientes para descrever emoções, mas inadequadas para orientar escolhas. A democracia não está nem pode estar predestinada a um futuro “ótimo” ou “péssimo”. A cada dia ela traz novas oportunidades de conflito, mas também de conciliação. O ônus dessa liberdade é uma espécie de risco permanente.

Mas, pago o seu preço – a eterna vigilância –, o seu bônus são reservas inesgotáveis de energia cívica.

Como um organismo invadido por um vírus, a democracia brasileira pode adoecer – e mesmo morrer –, mas a Constituição deu boa compleição ao seu corpo (o Estado) e vigor aos seus órgãos (as instituições). Se cada cidadão agir conscienciosamente como um anticorpo, a democracia pode destruir o vírus do autoritarismo e emergir mais forte e imune às suas variantes.

6 de setembro de 2021

COMO MORREM OS REGIMES TEOCRÁTICOS!

(David Brooks – The New York Times/O Estado de S. Paulo, 28) Alguns anos são pontos de inflexão: 1517, 1776 e 1917. Estes são os anos em que ideias poderosas surgiram: a Reforma, o capitalismo democrático e o comunismo revolucionário. O ano de 1979 foi outra alvorada. O Islã político veio com a revolução iraniana, a ascensão dos mujahedin no Afeganistão, o programa de islamização no Paquistão e a popularidade da Irmandade Muçulmana no mundo árabe.

As ideias que capturaram a imaginação de milhões tinham raízes intelectuais. Por exemplo, o pensador Said Qutb, em meados do século 20, montou uma crítica ao materialismo sem alma da América, remontando à separação entre Igreja e Estado – o erro fatal, ele acreditava, que separava o espírito da carne. No mundo muçulmano, corpo e alma não deveriam ser divididos, mas viver unidos em um califado governado pela sharia.

Essa visão poderia se manifestar de maneira moderada, com os clérigos buscando o poder político, ou de maneira violenta, como jihadistas derrubando regimes. Em 2006, no ensaio chamado The Master Plan, Lawrence Wright relatou como a Al-qaeda fez cumprir esses sonhos com planos épicos: expulsar os EUA do Iraque, estabelecer um califado, derrubar regimes árabes, iniciar um confronto com Israel, minar as economias ocidentais.

Eram sonhos ousados que impulsionaram o terrorismo islâmico. Para os responsáveis pelo ataque em Cabul, a morte de americanos pode parecer um passo em direção a essa utopia. A retirada dos EUA do Afeganistão parece uma derrota da democracia e um salto em direção ao sonho de um mundo muçulmano unificado. Mas algo mudou nos últimos anos.

As ideias radicais perderam o brilho. Se eles pensaram que mobilizariam os muçulmanos, falharam. Em 11 países islâmicos pesquisados pelo instituto Pew, em 2013, apenas 13% tinham opinião favorável à Al-qaeda. No livro The Missing Martyrs, Charles Kurzman mostra que menos de um em cada 100 mil muçulmanos virou terrorista desde o 11 de Setembro.

Quando o islamismo político tentou estabelecer teocracias em vários países, a reputação do movimento saiu arranhada. Em uma das manifestações mais violentas do extremismo, o califado do Estado Islâmico no Iraque e na Síria virou um pesadelo. Mesmo em lugares mais moderados, o Islã político está perdendo popularidade. Em 2019, a Economist concluiu: “Em todo o mundo árabe, as pessoas estão se voltando contra os partidos religiosos”. O aiatolá Mohamed Yazdi, do Irã, notou a tendência. “Os iranianos estão fugindo dos ensinamentos religiosos e se voltando para o secularismo.”

Globalmente, o terrorismo diminuiu. As mortes em ataques caíram 59%, entre 2014 e 2019. Especialistas veem a sorte do extremismo acabando. “As duas últimas décadas”, escreve Nelly Lahoud, na Foreign Affairs, “deixam claro o quão pouco os jihadistas podem realizar”. No Washington Post, Fareed Zakaria observou que “a maior parte do terrorismo islâmico hoje tende a ser local” – o Taleban, no Afeganistão, o Boko Haram, na Nigéria, a Shabab, na África. “É uma reversão dos dias de glória da Al-qaeda, que insistia que o foco não deveria ser os regimes locais, mas sim os EUA e o Ocidente.”

A ideia de glória que surgiu há 40 anos foi reduzida. O problema não foi eliminado, mas diminuiu. Erramos ao tentar derrotar uma ideia poderosa por meio da força militar. Mas muito foi alcançado promovendo ideias liberais e permitindo que a teocracia murchasse sob o peso de suas próprias falhas. Os soldados que realizaram este trabalho merecem nossa admiração.

03 de setembro de 2021

PANDEMIA: ALTA DA DESIGUALDADE PÕE DEMOCRACIA EM RISCO!

(Fernanda Simas – O Estado de S. Paulo, 29) “A pandemia é como um estado de guerra. O tipo errado de político vai usar isso para seu próprio benefício e para aprovar programas autoritários que já existiam antes.” Com essa frase, Mary Jo McConahay, autora do livro América Latina sob Fogo Cruzado, explica o perigo da ascensão de governos autoritários na região e a necessidade de se olhar a história para não repetir os erros. Para a americana, o papel dos latinos durante a 2.ª Guerra deveria servir de lição para as nações que hoje assistem ao crescimento da extrema direita e às ameaças à democracia.

• A sra. imaginava o tamanho da participação de atores latinoamericanos?

Muitas vezes temos uma lacuna no conhecimento sobre lugares próximos e a América Latina foi encoberta pelas notícias de outros lugares na 2.ª Guerra, mas a razão pela qual a guerra é chamada de mundial é justamente por ter afetado todos os lugares. Para Franklin Roosevelt, o presidente americano durante a guerra, o maior medo era do que estava acontecendo na América Latina, em razão da proximidade com os EUA. Ele tinha muita simpatia pelos países que tinham uma enorme quantidade de riquezas, o que é fundamental para qualquer guerra que se aproxima. E esses recursos tinham de estar sob o controle dos EUA, pensava Roosevelt. A América Latina foi extremamente importante durante a 2.ª Guerra.

• Por que as perdas de recursos na região não são abordadas com frequência?

Claramente, as histórias que não possuem elementos de orgulho são escondidas de nós. Durante a 2.ª Guerra, o Brasil, como vários outros países, com exceção da Bolívia, por exemplo, em algum momento fechou a porta para os judeus que fugiam do Holocausto. O meu país, os EUA, também fechou as portas, enquanto alguns latino-americanos, como um cônsul do México, por exemplo, faziam vistos falsos para essas pessoas entrarem nos países. E digo isso porque atualmente fazemos (EUA )a mesma coisa, fechamos as portas para refugiados que chegam de países latino-americanos fugindo da violência.

• Qual o papel do Brasil nisso?

O Brasil foi extremamente importante para a vitória dos Aliados por conta de seus recursos naturais. Alguns especialistas americanos dizem que a produção de borracha do Brasil pode ter sido decisiva para ganhar a guerra. Dezenas de produtos, incluindo 20 mil partes de navios de batalha, foram feitas de borracha. Se não fosse por essa produção em um ponto crucial da guerra, a história poderia

• Que lições podemos tirar da importância da América Latina na 2.ª Guerra?

Como o poeta John Donne disse: “Nenhum homem é uma ilha em si mesmo”. Eu digo que nenhum país pode ser uma ilha em si mesmo, especialmente hoje em dia. Tudo que acontece em qualquer lugar tem efeito em todas as partes do mundo. Temos de ter consciência do que ocorre na Palestina, no Oriente Médio, na África, não apenas porque isso vai afetar o preço dos nossos produtos, mas porque a humanidade está conectada e ignorar isso é nos eximir de responsabilidades.

• A sra. fala que alguns pontos da 2.ª Guerra já nos mostravam o que enfrentaríamos na atualidade. Pode explicar?

Não se pode dizer que campos de concentração, tortura, Estados que falam apenas de segurança nacional surgiram apenas na 2.ª Guerra. No entanto, é possível dizer que algo aconteceu naquele período que nos tornou familiar com essas táticas. Temos a tendência de achar que esse tipo de prática, de autocracia, apareceu do nada, mas conhecendo a história podemos entender melhor nossa atualidade. Existe uma ponte entre o que ocorreu na 2.ª Guerra e o que ocorre hoje.

• Qual é o perigo do uso político da pandemia?

A pandemia, de certa forma, é como um estado de guerra. O tipo errado de político vai usar isso para seu próprio benefício e para aprovar programas autoritários que já existiam antes. Falando dos EUA, a pandemia foi usada pela administração anterior (de Donald Trump) como ferramenta política para dividir. Por que? Porque a divisão favorecia quem estava no poder. A pandemia afeta brancos e negros, aqueles que recebem pouco, os mais pobres, da mesma forma que a guerra afeta. Esse é o motivo de termos a necessidade de olhar para o que acontece agora do ponto de vista humanitário, da mesma forma que foi feito na guerra. Claro que todos querem ser os primeiros na fila da vacina, mas é tempo de olhar para as histórias das crises e guerras e tirar lições disso para usar no presente.

• A sra. acredita que a pandemia tornou mais evidente a fragilidade da democracia em alguns países?

Com certeza, inclusive aqui nos EUA, onde as populações mais vulneráveis, geralmente os mais pobres, negros e pardos, estão entre as que mais sofreram com a doença e mais morreram. Sempre que a disparidade cresce, como em uma crise sanitária, a democracia fica em perigo. A situação piora quando os líderes mentem ou tentam se aproveitar de algum tema que as pessoas sabem ser sério ou assustador.

• Como a sra. vê o crescimento de governos autoritários na América Latina?

O crescimento do autoritarismo em qualquer lugar do mundo é preocupante. Na América Latina, onde tantos sofreram e morreram por justiça e democracia nos últimos anos, a volta das mentiras públicas e do autoritarismo é um desafio. As memórias são tão curtas? Tivemos uma ameaça assim nos EUA também, com o ataque à democracia de nosso ex-presidente e seus aliados, uma ameaça que continua circundando a vida política.

02 de setembro de 2021

O FRACASSO NO AFEGANISTÃO!

(Henry Kissinger- The Economist/O Estado de S. Paulo, 28) Os objetivos militares americanos têm sido absolutos e inatingíveis. E os políticos, abstratos e fugidios.

A tomada do Afeganistão pelo Taleban põe o foco da preocupação imediata no resgate de dezenas de milhares de americanos, aliados e afegãos imobilizados em todo o país. Seu socorro precisa ser a mais urgente prioridade dos EUA.

A questão mais fundamental, porém, é saber como os EUA se viram levados a se retirar em uma decisão tomada sem muito aviso ou consulta aos aliados ou às pessoas mais diretamente envolvidas em 20 anos de sacrifício. E por que o desafio básico no Afeganistão foi concebido e apresentado ao público como uma escolha entre o controle total do país ou a retirada completa.

Uma questão subjacente perseguiu os esforços americanos de contrainsurgência, do Vietnã ao Iraque, por mais de uma geração. Quando os EUA arriscam a vida de seus militares, põem em risco também seu prestígio e envolvem outros países, então devem fazê-lo com base em uma combinação de objetivos estratégicos e políticos.

Estratégicos, para deixar claras as circunstâncias pelas quais está lutando; políticos, para definir uma estrutura de governo que dê sustentação ao resultado, tanto dentro do país em causa quanto no cenário internacional.

Os EUA se dilaceraram em seus esforços de contrainsurgência por causa de sua incapacidade de definir objetivos alcançáveis e vinculá-los de uma forma que fosse sustentável pelo processo político americano. Os objetivos militares têm sido muito absolutos e inatingíveis. E os políticos, muito abstratos e fugidios. O fracasso em vinculá-los um ao outro enredou a América em conflitos sem pontos finais definíveis e a fez dissolver o propósito unificado em um pântano de controvérsias domésticas.

Os EUA entraram no Afeganistão com amplo apoio público para responder ao ataque da Al-qaeda ao território americano, lançado de um Afeganistão controlado pelo Taleban. A campanha militar inicial prevaleceu com grande eficácia. O Taleban sobreviveu essencialmente em santuários paquistaneses, de onde realizou ataques no Afeganistão, com a ajuda de algumas autoridades paquistanesas.

Mas, enquanto o Taleban estava fugindo do país, os EUA perderam o foco estratégico. Os americanos se convenceram de que, em última análise, o restabelecimento de bases terroristas só poderia ser evitado transformando o Afeganistão em um Estado moderno, com instituições democráticas e um governo constitucional. Tal empreendimento jamais poderia ter um cronograma compatível com os processos políticos americanos. No ano de 2010, em um artigo em resposta a um aumento de tropas, alertei contra um processo que fosse tão prolongado e intrusivo a ponto de virar até mesmo os afegãos não jihadistas contra todo o esforço.

Pois o Afeganistão nunca foi um Estado moderno. A organização estatal pressupõe um senso de obrigação comum e centralização da autoridade. O solo afegão, rico em muitos elementos, carece destes. A construção de um Estado democrático moderno no Afeganistão, onde o mandato do governo funcionasse uniformemente em todo o país, implicaria um período de muitos anos – na verdade, décadas. Mas isso vai contra a essência geográfica e etnorreligiosa do país. Foi precisamente a fragmentação, a inacessibilidade e a ausência de autoridade central que fizeram do Afeganistão uma base atraente para redes terroristas.

Embora se possa datar do século 18 uma entidade afegã distinguível, seus povos constituintes sempre resistiram ferozmente à centralização. No Afeganistão, a consolidação política – e, especialmente, a militar – ocorre ao longo de linhas étnicas e de clãs, em uma estrutura basicamente feudal, onde os mediadores de poder mais decisivos são os organizadores das forças de defesa do clã. Quase sempre em conflito latente entre si, esses senhores da guerra se unem em coalizões, sobretudo quando alguma força externa – como o Exército britânico que invadiu, em 1839, e as forças armadas soviéticas, que ocuparam em 1979 – tenta impor centralização e coerência.

Tanto a calamitosa retirada britânica de Cabul, em 1842, na qual apenas um único europeu escapou da morte ou do cativeiro, quanto a decisiva retirada soviética do Afeganistão, em 1989, foram provocadas por essa mobilização temporária entre os clãs. O argumento hodierno de que o povo afegão não está disposto a lutar por si mesmo não tem respaldo histórico. Eles são combatentes ferozes por seus clãs e pela autonomia tribal.

Com o tempo, a guerra assumiu o caráter ilimitado das campanhas de contrainsurgência anteriores, nas quais o apoio interno aos americanos enfraqueceu progressivamente com o passar dos anos. A destruição das bases do Taleban foi essencialmente conseguida. Mas a construção de uma nação sobre um país dilacerado pela guerra absorveu forças militares substanciais. O Taleban podia ser contido, mas não eliminado. E a introdução de formas governamentais desconhecidas minou o compromisso político e aumentou a corrupção já abundante.

Assim, o Afeganistão repetiu os padrões anteriores de controvérsias domésticas americanas. O que o lado da contrainsurgência definia como progresso, o lado político tratava como desastre. Os dois grupos tenderam a paralisar um ao outro durante os sucessivos governos de ambos os partidos. Um exemplo é a decisão de 2009 de juntar um aumento de tropas no Afeganistão ao anúncio simultâneo de que elas começariam a se retirar em 18 meses.

O que se negligenciou foi uma alternativa concebível, combinando objetivos alcançáveis. A contrainsurgência poderia ter se reduzido à contenção, e não à destruição, do Taleban. E o curso político-diplomático poderia ter explorado um dos aspectos especiais da realidade afegã: o fato de os vizinhos do país – mesmo quando adversários um dos outros e, ocasionalmente, dos EUA – se sentirem ameaçados pelo potencial terrorista do Afeganistão.

Teria sido possível coordenar alguns esforços comuns de contrainsurgência? É verdade que Índia, China, Rússia e Paquistão costumam ter interesses divergentes. Uma diplomacia criativa poderia ter destilado medidas comuns para superar o terrorismo no Afeganistão. Essa estratégia é a forma como o Reino Unido defendeu as abordagens territoriais à Índia em todo o Oriente Médio por um século, sem bases permanentes, mas com prontidão constante para defender seus interesses, junto com apoiadores regionais ad hoc.

Mas essa alternativa nunca foi explorada. Depois de fazer campanha contra a guerra, os presidentes Donald Trump e Joe Biden empreenderam negociações de paz com o Taleban, com cuja extirpação os EUA haviam se comprometido, induzindo aliados a ajudá-los, 20 anos atrás. Tudo isso agora culminou no que equivale a uma retirada incondicional dos EUA por parte do governo Biden.

Descrever a evolução não elimina a insensibilidade e, sobretudo, a intempestividade da decisão da retirada. Por causa de suas capacidades e valores históricos, a América não pode escapar de ser um componentechave da ordem internacional. Não pode evitá-lo apenas retirando-se. Como combater, conter e superar o terrorismo aprimorado e apoiado por países com uma tecnologia crescente e cada vez mais sofisticada? Essa questão continuará a ser um desafio global, que deverá ser enfrentado pelos interesses estratégicos nacionais, juntamente com qualquer estrutura internacional que os EUA possam criar por meio de uma diplomacia proporcional.

Os americanos devem reconhecer que não haverá no futuro imediato nenhum movimento estratégico dramático para compensar esse revés autoinfligido, como assumir novos compromissos formais em outras regiões. A precipitação americana aumentaria o desapontamento entre os aliados, encorajaria os adversários e semearia confusão entre os observadores.

O governo Biden ainda está em seus estágios iniciais. Deve ter a oportunidade de desenvolver e sustentar uma estratégia compatível com as necessidades nacionais e internacionais. As democracias evoluem nos conflitos entre as partes. E alcançam grandeza por suas reconciliações.