19 de outubro de 2022

O MAIOR BOOM ECONÔMICO DO MUNDO!

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 17) Qual economia crescerá mais rapidamente nos próximos anos? Tente adivinhar. Talvez você esteja pensando no Vietnã, que vem levando a cota de mercado de uma China menor por sua má resposta à crise da covid. Ou no campeão africano de crescimento, Ruanda, cuja economia quintuplicou desde 1995. Ou talvez Bangladesh, cujo setor exportador é catalisador da maior explosão econômica na Ásia.

Mas não é nenhum deles. O campeão mundial de crescimento econômico nos próximos anos será a Guiana. Porque essa diminuta faixa de floresta tropical na costa norte da América do Sul, de que quase não se ouve falar, está em meio a um boom petroleiro de proporções quase inimagináveis.

Desde 2015, a Guiana é líder mundial em descobertas de petróleo em alto-mar, tendo descoberto 11,2 bilhões de novos barris, quase um terço de todas as novas descobertas de petróleo no mundo. Investigadores da consultoria Nexus Group preveem que o país se converterá em alguns anos em um dos cinco principais produtores de petróleo em alto-mar no mundo, deixando para trás países como Estados Unidos, México e Noruega.

Estima-se que, em meados da próxima década, a Guiana produzirá mais petróleo per capita que qualquer outro país do mundo. Os lucros do governo com o petróleo poderiam ascender a US$ 21 mil por habitante, quase o dobro do PIB per capita de hoje.

Este ano, a economia da Guiana poderia crescer 58%, uma cifra exorbitante. O PIB petroleiro poderia crescer 30% ao ano entre 2023 e 2026. O país que até pouco tempo atrás era um dos mais pobres da América já ultrapassou a média mundial de renda per capita, e o boom acaba de começar.

QUESTÃO AMBIENTAL.
O que é boa notícia para a Guiana poderia parecer má notícia para o clima, mas não é. A intensidade das emissões do petróleo da Guiana – ou seja, a quantidade de carbono liberada por barril produzido – é apenas metade da média mundial e continua diminuindo. Se o petróleo guianês substituir o produzido por seus competidores, o boom petroleiro da Guiana poderia fazer as emissões de carbono cair.

Mas essa bonança ajudará realmente o povo guianês? Não necessariamente. O país está enriquecendo, mas muitos de seus habitantes continuam pobres. A Guiana ocupa a 108.ª posição, entre 191 países, no Índice de Desenvolvimento da ONU. A Unidade de Inteligência da The Economist classifica a Guiana como uma “democracia defeituosa”: as eleições são competitivas, mas nem sempre limpas.

Um conflito eleitoral, em 2020, deu lugar a um duro enfrentamento que durou meses e desencadeou várias ondas de violência entre os partidários das facções em oposição.

Tensão étnica definiu por muito tempo a política desse país dividido demograficamente pelo legado do Império Britânico: 40% dos guianeses têm ancestrais vindos da Índia e 30%, da África. Outros 10% são indígenas e os 20% restantes, mestiços. Os guianeses tendem a votar em blocos étnicos, algo que raramente anda de mãos dadas com a estabilidade política. E a corrupção, por uma desgraça, é sumamente arraigada.

MALDIÇÃO.
Por décadas temos visto como booms petroleiros quase sempre acabam mal. Grupos rivais lutam ferozmente pelo controle das rendas petroleiras em vez de trabalhar juntos por um futuro melhor para todos. O fenômeno é tão comum que tem seu próprio nome: a maldição dos recursos. Em face às suas divisões étnicas e seu histórico de corrupção, a Guiana marca dois campos na lista de sinais de risco de cair na maldição dos recursos. Será que os guianeses serão capazes de evitar esse destino?

Talvez sim, porque eles também contam com um par de ases na manga: por mais defeituosa que seja, a Guiana é uma democracia, o que ajuda a vacinar os povos contra a maldição dos recursos. E a enorme magnitude da bonança petroleira que espreita a Guiana e sua diminuta população poderia tornar possível satisfazer a todos, sem o país ter de entrar em conflitos empobrecedores pelo butim petroleiro.

Sem uma gestão política sábia e prudente, a riqueza petroleira pode facilmente se converter em desgraça. Tomara que os líderes da Guiana saibam evitar esse triste destino.

17 de outubro de 2022

INTERNACIONALIZAÇÃO DA AMAZÔNIA!

(Rubens Barbosa – O Estado de S. Paulo, 11) O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, em entrevista recente, deu informações sobre entendimentos mantidos com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e com os EUA para, “em vista da importância da crise climática, ter ajuda na região da Floresta Amazônica”. Disse que “tinha conseguido alcançar importantes objetivos com os EUA e a Otan”. “Com os EUA, o que estou tentando é levar o diálogo para outras áreas, além do combate às drogas, que fracassou.” “Foi criada a primeira unidade militar, com 12 helicópteros Black Hawk, mais de polícia do que militar, para ajudar a combater as queimadas na Amazônia.” “Será uma mudança completa no que a ajuda militar dos EUA tem sido até aqui. É uma grande conquista. Já há três helicópteros em ação. Vou continuar nesta linha porque me parece que neste caminho podemos construir um diálogo muito mais positivo com os EUA.” Por outro lado, Petro mencionou que “o objetivo das conversas com a Otan, da qual somos parte, é trazer a Organização do Tratado do Atlântico Norte para cuidar da Floresta Amazônica, para emprestar colaboração tecnológica”.

A Colômbia mantém, desde 2015, um acordo de cooperação com a Otan no tocante a segurança eletrônica, marítima, crime organizado e terrorismo. A Colômbia é o único parceiro global latino-americano da Otan e o primeiro país sul-americano a concluir um acordo de cooperação com a organização.

A aproximação com a Otan naquela época, por influência dos EUA, pode ser atribuída à presença da Rússia e da China na Venezuela e às tensões ideológicas e políticas com o vizinho, cuja relação está hoje normalizada. Por outro lado, Joe Biden, no dia 21 de setembro passado, em comunicação à presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, formalizou a designação da Colômbia como um aliado estratégico fora da Otan. Em comunicado divulgado pela Casa Branca, Biden afirma que essa designação é “um reconhecimento da importância da relação entre os EUA e a Colômbia e das contribuições cruciais da Colômbia para a segurança regional e internacional”. “A Colômbia é a pedra angular de nossos esforços compartilhados para construir um hemisfério próspero, seguro e democrático.” O status de “aliado importante não pertencente à Otan” é concedido pelos EUA a 18 países, com benefícios em questões militares e comerciais, inclusive a Argentina, desde 1998, e o Brasil, desde 2019, incluído por Donald Trump, até agora os únicos latino-americanos.

A iniciativa colombiana de chamar a Otan e os EUA para ter presença na Amazônia deve ser vista com cautela, mas, do ponto de vista do Brasil, se confirmada, é de extrema gravidade por suas possíveis implicações estratégicas, ambientais, políticas e de defesa.

O novo conceito estratégico da Aliança Atlântica definido em 2010 ampliou o escopo e o raio de atuação da aliança – não mais restrito ao teatro europeu, como ocorre hoje no conflito na Ucrânia e no Indo-pacífico. Uma interpretação literal desse conceito indica que a Otan passaria a poder intervir em qualquer parte do mundo, inclusive no Atlântico Sul, para defender os interesses dos países-membros em áreas como agressões ao meio ambiente, antiterrorismo, ações humanitárias, tráfico de drogas, ameaças à democracia, entre outras. O governo brasileiro, naquele momento, por meio do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, expressou reservas “às iniciativas que procurem, de alguma forma, associar o ‘norte do Atlântico’ ao ‘sul do Atlântico’, área geoestratégica de interesse vital para o Brasil”. “As questões de segurança relacionadas às duas metades desse oceano são distintas.”

Mais de dez anos depois, as considerações de Jobim, que refletiam o pensamento prevalecente entre os militares e o da diplomacia nacional, são ainda mais relevantes, no contexto da adesão colombiana à estrutura da Otan e da anunciada intenção dos EUA de retomar sua influência no Hemisfério Ocidental, em face da presença crescente da China e da Rússia na América do Sul, numa espécie de ressurreição da Doutrina Monroe.

Além dessas considerações estratégicas, há duas preocupações permanentes do governo brasileiro, em particular das Forças Armadas e do Itamaraty: a internacionalização da Amazônia e a criação de bases militares de países de fora da região em países vizinhos – ambas possibilidades presentes na evolução futura da posição da Colômbia. Sem falar na perspectiva de aumento das tensões em nossa fronteira, pela presença da China e da Rússia na Venezuela. O vácuo de soberania existente em partes da Amazônia e a ausência de uma política externa proativa na América do Sul, inclusive pela necessidade, neste caso, de invocação do Tratado de Cooperação Amazônica, abrem caminho para que iniciativas como a anunciada pelo presidente colombiano preencham o vazio deixado pela omissão voluntária da maior nação do subcontinente.

Como parte da inserção soberana no cenário global, é urgente restabelecer a prioridade para o entorno geográfico, com uma nova atitude em relação à Amazônia. Sem isso, crescem os riscos de o Brasil ter de lidar com desdobramentos estratégicos imprevisíveis no seu entorno, determinados por atores estrangeiros e potencialmente contrários aos interesses nacionais.

14 de outubro de 2022

COVID MATOU 4.500 PROFISSIONAIS DE SAÚDE NO BRASIL!

(Valor Econômico, 13) Um levantamento internacional mostrou que o Brasil esteve entre os países em que houve mais mortes de profissionais de saúde por covid-19 ao longo da pandemia.

Aproximadamente 4.500 profissionais, entre médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem morreram no país em decorrência da covid entre o março de 2020, quando a doença chegou ao país, e o fim de 2021.

Os dados são da pesquisa Por Detrás da Máscara (“Behind the Mask”, no original), realizado pelo estúdio de dados Lagom Data para a Public Services International (PSI), organização com sede em Genebra, Suíça. O Lagom informa ter cruzado várias fontes oficiais para chegar ao resultado.

A PSI realiza uma campanha documental que expõe a situação de quatro países durante momentos críticos da pandemia. O Brasil foi escolhido, segundo a entidade, devido a “abordagem negacionista do governo”. Os outros escolhidos são Zimbábue, Paquistão e Tunísia.

A campanha terá uma série de vídeos sobre a fase crítica da doença em cada um dos países. O vídeo sobre o Brasil traz o relato de uma enfermeira que atuou durante a fase mais aguda da pandemia em Manaus, uma das cidades brasileiras mais afetadas pela covid-19.

“Faltaram equipamentos de proteção, oxigênio, vacinas, medicamentos, sobraram mensagens falsas e desaforadas do governo sobre a covid-19, chocando o mundo”, comenta Rosa Pavanelli, secretária-geral da PSI. “E até hoje os profissionais da linha de frente seguem desvalorizados no Brasil.” A PSI faz parte da Comissão de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Emprego em Saúde e Crescimento Econômico.

A pesquisa mostra que no Brasil as mortes de profissionais de saúde ocorreram de forma mais rápida do que na população em geral. Principalmente em meses nos quais faltaram equipamentos de proteção individual.

O levantamento indica também que o impacto da covid foi maior para profissionais de saúde com salários mais baixos e mais próximos à linha de frente. Ou seja, auxiliares e técnicos de enfermagem morreram proporcionalmente mais que enfermeiros. E enfermeiros, proporcionalmente, mais que médicos.

Os dados apontam que 70% dos mortos eram técnicos e auxiliares de enfermagem, 25% enfermeiros e 5% médicos. Em números absolutos isso representa 1.184 enfermeiros mortos o que, segundo a pesquisa, pode ter impactado diretamente o atendimento a 21.300 pacientes.

De acordo com o Conselho Federal de Enfermagem, cada enfermeiro atende até 18 pacientes e cada atendente, 9 doentes na média brasileira. Mas o levantamento aponta que, no auge da crise, em Manaus, cada enfermeiro atendeu em média 40 pacientes com o auxílio de dois atendentes.

O levantamento também aponta que cerca de 80% dos profissionais de saúde mortos por covid no Brasil são mulheres. O sexo feminino também representa aproximadamente 80% dos profissionais mais atingidos no Brasil: atendentes, auxiliares e enfermeiros.

Por cruzamento de dados no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho, o levantamento concluiu que até dois terços dos profissionais técnico morto por covid pode ter atuado sem contrato formal de trabalho.

11 de outubro de 2022

VOCÊ SABE QUEM DECIDIU QUE O 12 DE OUTUBRO SERIA O DIA DAS CRIANÇAS?!

(Folha de SP, 07) Em 12 de outubro de 1923, o Rio de Janeiro, então capital federal, sediou o Congresso Sul-Americano da Criança, que discutiu questões relativas à educação e à alimentação infantil. No ano seguinte, percebendo a repercussão que o congresso tinha tido, o deputado federal Galdino do Vale Filho (1879-1961) propôs uma lei estabelecendo que o Dia das Crianças no Brasil passaria a ser comemorado naquela data.

A comemoração, no entanto, não teve quase nenhuma adesão. Ninguém se lembrava dela. Em 1940, o presidente Getúlio Vargas criou um novo decreto e uma nova data: 25 de março. Mais uma vez, ninguém deu muita importância à data.

Demorou muito para a data pegar?

O Dia das Crianças só ganhou mesmo força por iniciativa de Eber Alfred Goldberg, diretor comercial da fábrica de brinquedos Estrela —que, a bem da verdade, tinha o único objetivo de aumentar as suas vendas.

Em 1955, Goldberg idealizou uma promoção batizada de “Semana do Bebê Robusto” para aumentar as vendas de uma boneca bochechuda, que era o carro-chefe de vendas. Dez anos depois, a Johnson & Johnson criou o concurso “Bebê Johnson”. Foi o maior sucesso.

Como funcionava o concurso Bebê Johnson?

A primeira Bebê Johnson da história foi a paulistana Magda Solange Ferreira, em 1957, uma menina loira de olhos castanhos. No caso de Magda, um fotógrafo contratado pela Johnson & Johnson a descobriu na Maternidade Leonor Mendes de Barros, em São Paulo, e ela passou a estampar propagandas da marca.

Como concurso, o Bebê Johnson começou em 1965 e foi até 1969. Os pais é que inscreviam fotos de seus filhos de seis meses a 2 anos. Junto com a fotografia, eles deveriam enviar o rótulo de um produto.

Infelizmente há poucas informações sobre o concurso. Em 1965, por exemplo, o prêmio foi de 500 mil cruzeiros.

Mas, então, como o Dia das Crianças voltou para 12 de outubro?

Com a entrada de outras empresas fortes, como a Johnson & Johnson, a Semana do Bebê Robusto ganhou força e passou a se chamar Semana da Criança.

Até que os comerciantes acharam uma semana longa demais e resolveram concentrar suas forças em uma única data. Alguém se lembrou do decreto de 1924, e o Dia da Criança voltou a ser comemorado em 12 de outubro de cada ano e assim ficou.

10 de outubro de 2022

SALVANDO A PRÓPRIA PELE!

(Lourival Sant’Anna – O Estado de S. Paulo, 09) Ao longo desses sete meses de guerra, uma pergunta me tem sido feita constantemente: como ela vai terminar? A resposta sempre residiu na situação política de Vladimir Putin. Pois sempre sustentei que essa não é uma guerra movida por fatores geopolíticos, mas pela intenção de Putin de se perpetuar no poder.

Nas últimas semanas, os ucranianos recuperaram milhares de quilômetros quadrados no nordeste e centenas no sul. Desde a fantasiosa anexação das províncias de Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzia, no dia 30, os russos perderam território nas quatro, deixando para trás soldados mortos e equipamentos.

Estima-se que 60 mil militares russos tenham sido mortos desde fevereiro, entre eles integrantes das forças especiais e oficiais de alta patente. A mobilização decretada no dia 21 apenas agravará o problema. Os recrutas estão sendo enviados sem treinamento, equipamento e comando adequados.

INVERNO. Tragicamente, eles desempenharão o papel de carne de canhão – uma contenção temporária aos avanços ucranianos, enquanto Putin imagina os próximos passos, com o auxílio do inverno, que também pode frear a contraofensiva.

A dinâmica no terreno tornou realista o objetivo ucraniano de recuperar todo o território perdido, desde a primeira invasão, em 2014. Isso inclui a Crimeia. Essa reconquista teria impacto político devastador sobre Putin: como justificar a morte de dezenas de milhares de russos?

O emprego de uma ou mais armas nucleares táticas não mudaria o quadro. Os ucranianos, motivados e equipados, continuariam avançando. E o cruzamento dessa linha vermelha causaria envolvimento mais direto da Otan.

MANOBRA. Restaria a Putin tentar mascarar a derrota como vitória, recrudescer o controle sobre a internet e calar os ultranacionalistas, que têm denunciado a incompetência das Forças Armadas russas.

A probabilidade de golpe continua baixa. Os russos com ambições políticas estão exilados, presos ou mortos. A Rússia não tem histórico de golpes militares. Mas as tensões internas crescem rapidamente.

Depois de se queixar do sacrifício de seus homens e do alto custo das derrotas na Ucrânia, o líder checheno Ramzan Kadyrov foi condecorado general por Putin na tentativa de apaziguá-lo. Yevgeni Prigozhin, amigo de Putin e dono do grupo mercenário Wagner, também tem criticado acidamente as Forças Armadas.

Segundo a página gulagu.net no Telegram, um mercenário atirou contra um tenente-coronel em Donetsk, e não foi o primeiro incidente. A ascensão dessas milícias, a desmoralização das Forças Armadas e a revolta da população com as mortes e a mobilização poderiam conduzir a uma guerra civil. Para se concentrar em salvar a própria pele, Putin pode ter de se desengajar da Ucrânia.

03 de outubro de 2022

A GLOBALIZAÇÃO REALMENTE MORREU?!

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 03) A globalização acabou. O protecionismo de Trump, o Brexit, os problemas nas cadeias de fornecimento criadas pela covid-19 e a agressão criminosa de Vladimir Putin puseram fim à onda de integração global disparada pela queda do Muro de Berlim, em 1989. Estes tempos de mercados de ações em baixa e juros altos darão a última badalada no sino do enterro da globalização.

Esta opinião está em moda – e está quase totalmente errada. Principalmente do ponto de vista da economia, mas também do ponto de vista social e cultural. De fato, a surpresa dos dois último anos foi a resiliência que a globalização demonstrou. Em um período excepcionalmente turbulento, a integração econômica e social do mundo – a conexão entre os países – nos surpreendeu mais por sua resistência do que por sua fragilidade.

RECESSÃO.

De fato, os dados sugerem que a crise financeira mundial de 2008-2009 e a Grande Recessão que ela desencadeou impactaram negativamente a economia e a política mundial mais do que os demais eventos de importância global que ocorreram na década passada.

O volume de comércio internacional cresceu muito durante o período de hiperglobalização (1985-2008), passando de aproximadamente 18% para 31% do valor total da economia mundial. Com a crise de 2008, essa cifra caiu, se situando em cerca de 28%. E aí mais ou menos ficou desde então: mantendo-se estável apesar de todos os choques econômicos e convulsões políticas dos últimos anos.

O protecionismo de Donald Trump reduziu a integração dos EUA ao restante do mundo. Nos EUA, o comércio caiu de 28% do PIB, em 2015, para 23%, em 2020. As exportações do Reino Unido para a União Europeia caíram fortes 14% no ano seguinte ao Brexit. Mas essas oscilações, por maiores que sejam, foram compensadas por uma maior integração econômica na Ásia Oriental e na África, onde as conexões de interdependência entre os países continuam se aprofundando e se ampliando.

PROTECIONISMO.

Mesmo com seus custos, problemas e acidentes, a integração entre os países não morreu

A integração econômica parece ter uma inércia própria, que resiste a tudo, incluindo a embates tão grandes quanto as guerras comerciais iniciadas por Trump ou o voto dos britânicos a favor do Brexit. Uri Dadush, um reconhecido especialista em economia internacional, constatou que as barreiras protecionistas que foram erigidas nesses últimos anos tiveram um efeito insignificante no comércio global. Certamente as cadeias de fornecimento se viram submetidas a tensões e interrupções que estimularam as empresas a mudar algumas de suas fábricas para locais mais próximos aos mercados consumidores. A Europa está experimentando agora, sem dúvida, as dolorosas consequências econômicas de sua dependência energética em relação à Rússia. Mas, segundo os dados disponíveis, o efeito global líquido, considerando essas mudanças transcendentais, não foi uma redução da integração econômica.

Recordemos também que a globalização vai muito além do comércio. A globalização se baseia tanto na circulação global de ideias, atitudes, filosofias e pessoas quanto no comércio de mercadorias. E, nesse sentido mais amplo, a globalização parece acelerar, não ratear. O Tiktok possui 1,4 bilhão de usuários espalhados por 150 países, por exemplo.

Outra prova de globalização ativa e acelerada é a ciência. Cientistas do mundo inteiro competem com colegas de outros países. É normal. Fora do normal foi a velocidade com que eles conseguiram atuar e, em certos casos, se coordenar para conseguir inventar as vacinas contra a covid-19, produzi-las em grande escala e distribuí-las pelo mundo, salvando desta maneira milhões de vidas. Se esse exitoso exemplo de globalização foi possível virar realidade uma vez, poderá se repetir em muitas outras oportunidades.

RISCOS GLOBAIS.

Naturalmente, a globalização não é invulnerável e nem todas as suas consequências são positivas. Os níveis de desigualdade que coexistem com a globalização são inaceitáveis, por exemplo. Se a guerra na Ucrânia se prolongar muito mais ou – tragicamente – se tornar nucelar, ela poderia cortar fornecimentos cruciais de energia, alimentos e fertilizantes que constituem a coluna vertebral da globalização econômica.

Ainda pior, um ataque militar chinês contra Taiwan poderia acabar com grande parte da capacidade de fabricação de microchips, incapacitando um mundo que depende cada vez mais das tecnologias digitais. No futuro próximo, a criptografia quântica poderia deixar obsoleta toda a criptografia que existe atualmente na rede. Isso causaria uma severa crise de cibersegurança e limitaria a globalização digital.

Essas ameaças existem. São reais e graves. Mas se conjugam em tempo futuro. No presente, o mundo está integrado mais profundamente do que uma década atrás. Apesar de seus custos, problemas e acidentes, a integração entre os países não morreu. O objetivo adiante é como proteger-nos de seus defeitos e aproveitar ao máximo as portas que ela abre.