29 de novembro de 2022

COMO SEDUZIR OS GERENTES!

(Pedro Doria – O Estado de SP, 27) O maior desafio para a transformação digital de qualquer empresa, não importa se grande ou pequena, é a conquista daquela faixa intermediária de comando. Os gerentes. E aí não adianta: é preciso seduzir. Sem o compromisso dos gerentes, não há decisão de conselho ou CEO que faça uma empresa mudar.

Existe uma razão para isso. Alguns pensam em empresas como estruturas hierárquicas nas quais as ordens dadas em cima cascateiam até o último estagiário. Mas na vida real não é assim. Quem de fato toca o dia a dia, está em contato com colaboradores e garante que todas as metas sejam cumpridas são os gerentes. A primeira faixa de comando.

A transformação digital, antes de ser uma mudança tecnológica, é uma mudança de cultura. Para que aconteça, é preciso mudar a maneira como se compreende a empresa, do modelo de negócio aos processos. Isso dá trabalho.

Ocorre que, embora ocupem cargos que são de chefia, com frequência gerentes não são incluídos nos debates estratégicos, não têm a visão do que mudará no futuro, não acompanham o que se dá no mercado. Assim, entre mudar a maneira de trabalhar ou buscar a zona de conforto, escolhe-se o segundo. Nós humanos nos apegamos a rotinas e o trabalho já é tanto. Além disso, no primeiro momento as metas da empresa não parecem comprometidas.

É por isso que a ideia de transformação digital passa, também, por uma gestão mais horizontal. Uma em que a média gerência é convidada a pensar também no futuro a longo prazo, a participar das decisões. Há um benefício extra: como estão mais próximos do “chão de fábrica”, gerentes tendem a encontrar soluções inovadoras, mais simples, eficazes. Participar da reflexão estratégica tem ainda a qualidade de ser o melhor estímulo. É a arma de sedução que constrói compromisso.

Nos últimos anos acompanhamos diversas transformações na sociedade, principalmente no mundo digital. Como parte dessa evolução, a gestão do relacionamento entre empresas e clientes está pronta para entrar em um novo capítulo. Também conhecido por CRM (Customer Relationship Management), esse conceito está fundamentado na ideia de que o cliente deve ser o centro da estratégia das empresas.

Se pensarmos em uma linha do tempo do CRM, a história se inicia na década de 1950, com os primeiros registros de dados de clientes sendo realizados através de papel e caneta. Na década seguinte, surgiu o telefone, um importante e revolucionário meio de contato que facilitou qualquer tipo de negociação, juntamente com a prática de vendas por catálogos e o relacionamento direto entre marca e consumidor. O computador entrou em cena nos anos 1970 mudando o mundo de uma vez por todas. Os próximos 30 anos foram focados em atualizações e criações de novas funcionalidades, principalmente para os computadores e para o digital. A década passada foi palco de empresas equipadas com ferramentas mais integradas, automatizadas e customizáveis, ou seja, mais completas, visando tornar a experiência dos clientes mais positiva.

Analisando o atual universo do CRM, podemos dizer que as empresas estão buscando conectar e concentrar os dados em uma única plataforma para simplificar a vida dos clientes, diminuir custos de suporte e criar a possibilidade de fidelizar o consumidor. De acordo com estudo publicado pela IDC, até 2026, espera-se que a quantidade de dados criados, capturados, replicados e consumidos mais que dobre ano após ano. Avanços em poder de processamento, capacidade de armazenamento, conectividade com a internet, inteligência artificial e outras tecnologias impulsionaram toda a indústria de software.

Já as notícias da próxima década serão outras. Estamos falando de plataformas de dados de clientes em hiperescala e de CRM em tempo real. Esse já é o nosso presente, com o Salesforce Genie. A solução é capaz de processar todas as informações dos consumidores em tempo real a partir de cada interação, eliminando qualquer trabalho manual, e viabilizando que todos os dados estejam visíveis e disponíveis para todas as áreas da empresa, como Marketing, Vendas, Atendimento ao Cliente, E-Commerce, entre outras.

Com automação, inteligência e dados em tempo real incorporados diretamente nos aplicativos e sistemas, todas as empresas poderão alcançar novos níveis de assertividade e satisfação de seus clientes. Anote a regra: colocar o cliente no centro a partir das informações coletadas e, quanto mais rapidamente processar as informações, melhor e mais personalizada será a experiência oferecida.

Os recursos em tempo real mudam completamente a forma como os clientes interagem e se conectam com as empresas, algo que não era possível antes. Diante disso, companhias e suas equipes, em todo o mundo, estão focadas em oferecer “sucesso agora”, ou seja, conectar-se com seus consumidores em um formato novo, com tecnologias mais simplificadas, produtivas e humanizadas.

Com automação, inteligência e dados em tempo real incorporados diretamente nos aplicativos e sistemas, todas as empresas poderão alcançar novos níveis de assertividade.

28 de novembro de 2022

CIÊNCIA, TECNOLOGIA E REINDUSTRIALIZAÇÃO! 

(José Goldemberg, ex-secretário de ciência e tecnologia a presidência da República) O Estado de SP, 27) Em vez de ‘fechar’ o País, Brasil deveria ter adotado o ‘pulo do gato’ que um dia a Coreia do Sul deu. Novo governo pode reverter este processo

A reindustrialização do Brasil é uma das prioridades que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva elencou na sua primeira declaração pública. Esta é uma declaração da maior importância, porque a reindustrialização vai afetar de maneira positiva todas as atividades de pesquisa e ensino superior do País e da educação em geral, duramente atingidas pelas políticas de indiferença e descaso que o atual governo adotou nos últimos quatro anos.

O sucesso do setor agropecuário no Brasil – que nos levou a ser um grande produtor e exportador de grãos – deve muito à atividade de pesquisa e difusão da Embrapa e de algumas excelentes escolas de agricultura, como a Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (USP), a de Viçosa e outras. Não só tecnologias para enriquecimento dos solos foram desenvolvidas, como também pesquisas científicas de ponta permitiram a seleção de melhores cepas e o consequente aumento da produtividade.

Em contraste, parte da indústria se manteve operando com tecnologias obsoletas, sem incentivos para procurar as universidades e institutos de pesquisa para ajudá-la a resolver seus problemas e aumentar sua produtividade.

As causas para este atraso são antigas e, na análise de Edmar Bacha, se devem à adoção de um modelo de desenvolvimento baseado na proibição de importações para estimular a produção de similares nacionais.

Outros países fizeram exatamente o oposto no passado, como a Coreia do Sul, que na década de 50 do século passado era um país subdesenvolvido, com uma renda per capita aproximadamente igual à do Brasil, e que em três décadas se tornou um país altamente desenvolvido, com uma renda per capita de US$ 35 mil, enquanto o Brasil mal atingiu US$ 10 mil, e caindo.

Segundo Bacha: “Por que isso aconteceu? Uma explicação está na insistência em manter a economia fechada, tratando de produzir no Brasil insumos, máquinas e equipamentos que eram antes importados por preços menores e com produtividade maior. O País aprofundou a substituição de importações, em vez de aumentar a exportação para facilitar as importações e o investimento eficiente. Esse seria o caminho para a produção eficiente de bens e serviços de qualidade capazes de concorrer no mercado internacional. Foi o caminho que a Coreia do Sul tomou”.

Facilitar a entrada da tecnologia moderna, reduzindo as tarifas de importação, e usar essas tecnologias para aumentar o conteúdo tecnológico dos produtos nacionais e exportá-los são o pulo do gato que a Coreia do Sul deu e que o Brasil deveria ter adotado, em lugar de fechar o País.

O novo governo tem condições de reverter este processo: existem várias empresas brasileiras que seguiram um roteiro evolutivo com sucesso. Exemplos delas são a Natura, a Klabin e a Votorantim, que sabiamente utilizam recursos locais como produtos florestais, florestas plantadas e alumínio produzido com energia hidrelétrica; e também a Embraer, que explorou um nicho do mercado de aviação com grande sucesso utilizando motores importados e engenheiros competentes e criativos do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). O clima, a geografia e a competência existentes no País favorecem a competitividade dessas empresas em suprir o mercado nacional e exportar. Para competir no exterior, elas tiveram de usar as melhores tecnologias existentes e realizar as pesquisas necessárias para tal.

Várias das nossas universidades, sobretudo as públicas do Estado de São Paulo (USP, Unicamp e Unesp), estão equipadas para atender a demandas do setor produtivo graças ao nível de excelência que atingiram em razão do apoio continuado do governo do Estado desde 1989, que destina a elas um porcentual fixo do ICMS. Além disso, a ação da Fapesp em São Paulo há mais de 50 anos – e de outras similares – tem sido exemplar.

O sistema universitário atual e os institutos de pesquisa atualmente são orientados para a produção de conhecimentos mantendo vínculos estreitos com a comunidade científica internacional e trabalhando nas áreas de vanguarda do conhecimento, e rapidamente se capacitam para ajudar o País, como o fizeram com sucesso enfrentando a pandemia de covid-19. O papel do Instituto Butantan e do Instituto Oswaldo Cruz nessa área foi fundamental.

Da mesma forma, a demanda de um setor industrial renovado fará com que a enorme competência existente em várias universidades brasileiras e em institutos de pesquisa os leve a apoiar a reindustrialização, e com isso deixariam de ser considerados “torres de cristal” afastadas das necessidades da sociedade – do que são frequentemente acusados, injustamente.

O que é necessário para tal são políticas do governo federal na área econômica que promovam de fato a reindustrialização, com créditos, financiamentos atrativos e promoção ativa de exportações, como fez o setor agropecuário, para que as indústrias procurem a ciência e a tecnologia de que necessitam nas universidades e nos institutos de pesquisa, além do pessoal qualificado que elas preparam.

22 de novembro de 2022

NEGROS MUÇULMANOS QUEREM QUE HARVARD DEVOLVA CRÂNIO DE PERSONAGEM DA REVOLTA DOS MALÊS!

(Folha de SP, 19) Um pequeno objeto abrigado na Universidade Harvard, uma das mais prestigiosas dos EUA, reacendeu o interesse por um dos grandes episódios da história do Brasil, a Revolta dos Malês. Trata-se de um crânio ao qual, simbolicamente, está entrelaçado também o debate sobre o racismo na produção científica.

A cabeça pertencia em tese a um dos integrantes da revolta, ocorrida em 1835 em Salvador. Liderada por muçulmanos, foi a maior insurreição de pessoas escravizadas no Brasil. No ano seguinte, o objeto foi enviado para os EUA, em um momento em que cientistas se apropriavam dos corpos de povos considerados inferiores e os utilizavam para pesquisa e ensino.

O crânio tinha passado praticamente despercebido até Harvard começar a discutir no ano passado sua coleção de restos humanos, que inclui negros escravizados e indígenas. A primeira menção à cabeça apareceu apenas em junho, em uma reportagem de um jornal estudantil da universidade. Até então, os pesquisadores nem sequer sabiam de sua existência. Em seguida, Harvard publicou um relatório oficial se desculpando e se comprometendo a estudar a devolução. Além do malê, aparece na lista o crânio de outro homem escravizado, provavelmente coletado no Rio de Janeiro em 1865 ou em 1866.

A informação chegou por meio de pesquisadores brasileiros até a comunidade negra e islâmica de Salvador, para a qual a Revolta dos Malês é uma das pedras fundamentais. Eles pedem, agora, que Harvard lhes restitua o crânio para que ele possa ser enterrado seguindo os preceitos islâmicos.

“Não importa que seja apenas uma parte do corpo, uma cabeça, uma mão, um pé. Precisa ser sepultado”, diz o xeque Ahmad Abdul Hameed, líder do Centro Cultural Islâmico da Bahia. “O islã não permite que uma pessoa seja exposta em um museu; é preciso respeitar o corpo humano.”

Nascido na Nigéria, Hameed chegou ao Brasil em 1992. Mudou-se a convite da comunidade islâmica, que buscava um líder. A ideia era ficar alguns anos, mas ele nunca partiu. A memória da Revolta dos Malês o ancorou em Salvador. “A história dos malês é a história do Brasil”, afirma. É também a sua própria. Como diversos dos participantes daquele levante do século 19, Hameed é um muçulmano de etnia iorubá. “Fiquei aqui para preservar a luta do meu povo”, diz.

“Malê” era o nome dado aos escravizados muçulmanos na Bahia. A palavra provavelmente vem do iorubá “imalê”, que denota um seguidor do islã. Eles se revoltaram às centenas contra o regime escravista em 1835, estremecendo o império mais de meio século antes da abolição formal. Ao final dos embates, mais de 70 foram mortos.

Apesar de seu impacto na história, a Revolta dos Malês ainda é pouco estudada e debatida. A obra de referência segue sendo o livro “Rebelião Escrava no Brasil”, publicado em 1986 pelo brasileiro João José Reis —que foi professor em Harvard— e reeditado em 2003 em edição ampliada.

O interesse, no entanto, tem aumentado nos últimos anos. “É parte de uma busca da população negra por sua história, sobretudo a sua resistência contra a escravidão”, diz Reis à Folha. “O movimento dos malês virou uma chave de memória, de reforço de identidade e de protesto negro no Brasil.”

Para o especialista, há uma relação entre o debate em torno desse crânio malê e um movimento mais amplo de reparações. “Essa comunidade tem todo o direito, e quase a obrigação, de exigir a repatriação dessa relíquia para ser devidamente enterrada na Bahia seguindo o protocolo islâmico.”

A comunidade negra e islâmica de Salvador ainda não estabeleceu contato formal com Harvard para pedir o retorno do objeto. Reis sugere que, antes disso, seja feito um exame de DNA para determinar a origem étnica de seu dono. A ideia é confirmar que o crânio pertencia a um homem de uma das nações africanas de população muçulmana que estavam na Bahia, como os iorubás.

Misbah Akanni diz que, se for confirmada a origem do crânio, ele tem mesmo de ser devolvido. Como Hameed, Akanni é iorubá e muçulmano. Dirige a Casa da Nigéria em Salvador, uma entidade ligada ao governo de seu país. “A Revolta dos Malês foi um acontecimento muito importante para nós, e Harvard tem a obrigação de nos devolver o crânio. Não pertence a eles.”

Akanni chegou ao Brasil em 1988, como um estudante de intercâmbio interessado no levante. Voltou para a Nigéria e, em 1990, estabeleceu-se de vez em solo brasileiro. “Queria recuperar nosso passado, a história dos malês, e usá-lo como base para divulgar nossa religião islâmica”, afirma.

A pesquisadora brasileira Hannah Bellini, que faz um trabalho etnográfico com essa comunidade, está envolvida no processo de retorno do crânio. Ela diz que um dos primeiros passos é garantir que Harvard honre o seu compromisso “para reparar a sua contribuição ao racismo científico”.

Será necessário também pleitear um espaço em Salvador para o enterro. “Não adianta trazer o crânio para ser exposto em um museu. Seria trair o propósito da campanha. Queremos oferecer um ritual fúnebre, que foi negado ao corpo naquela época”, pondera Bellini. O fato de Harvard ter mantido o crânio em um museu, diz a pesquisadora, revela não apenas seu racismo científico mas também seu preconceito cultural. “A noção de expor restos mortais é, por si só, violenta.”

Harvard não nega a violência de sua coleção. O gesto de reconhecer seu papel no racismo científico e na escravidão veio da própria universidade. “Estava claro desde o começo que a única saída ética era a devolução desses objetos”, afirma Jane Pickering, diretora do Museu Peabody, a casa que abriga o crânio dentro da instituição. “É extremamente importante para nós.”

Pickering confirma que ainda não foi procurada pela comunidade africana e muçulmana de Salvador. Insiste, porém, que está à disposição para dar início às negociações. A universidade está disposta, inclusive, a apoiar —e talvez financiar— os testes de DNA que podem ajudar a determinar a origem do crânio. “Agora, nosso desafio é descobrir a melhor maneira de devolver esses restos mortais. Não podemos apagar o que aconteceu no passado.”

21 de novembro de 2022

JAMES WEBB: PRIMEIRAS GALÁXIAS PODEM TER SE FORMADO ANTES DO QUE OS ASTRÔNOMOS PENSAVAM!

(Estado de SP, 18) As primeiras galáxias podem ter se formado há mais tempo do que os astrônomos estimavam, segundo observações do telescópio espacial James Webb, que está reformulando a compreensão do Universo.

Os pesquisadores que usam o poderoso telescópio publicaram um artigo na revista Astrophysical Journal Letters em que documentam duas galáxias excepcionalmente brilhantes e distantes, com base em dados colhidos nos primeiros dias de operação do Webb, em julho.

O James Webb captou duas galáxias primitivas, inclusive uma que pode ter se formado 350 milhões de anos após o Big Bang, que ocorreu 13,8 bilhões de anos atrás. Astrônomos disseram nesta quinta-feira, 17, que, se os resultados forem confirmados, o conjunto descoberto supera a galáxia mais distante já identificada pelo telescópio Hubble, formada 400 milhões de anos após a origem do Universo.

A extrema luminosidade das estrelas levanta duas possibilidades intrigantes, informaram os astrônomos na entrevista coletiva da Nasa, a agência espacial americana.

A primeira dela é que essas galáxias seriam muito grandes, com muitas estrelas de baixa massa como as galáxias de hoje. Elas teriam se formado 100 milhões de anos antes do que hoje é considerado o fim da chamada era das trevas cósmica, quando o Universo era apenas gás e matéria escura.

Outra possibilidade é de que essas galáxias sejam de estrelas da chamada “População III”, que nunca haviam sido observadas, mas que, teoricamente, eram formadas unicamente por hélio e hidrogênio, antes do surgimento de elementos mais pesados.

Como essas estrelas queimavam em temperaturas extremas, as galáxias não teriam que ser tão enormes para explicar o brilho observado pelo Webb, e poderiam ter começado a se formar mais tarde.

“Estamos vendo galáxias tão brilhantes e luminosas tão cedo, que não temos certeza do que está acontecendo”, disse a repórteres Garth Illingworth, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz.

A rápida descoberta de galáxias também desafia as expectativas de que o telescópio precisaria explorar um volume muito maior de espaço para encontrá-las.

“É uma surpresa que existam tantas que se formaram tão cedo”, acrescentou o astrofísico Jeyhan Kartaltepe, do Instituto Tecnológico de Rochester.

As duas galáxias definitivamente existiram entre 450 e 350 milhões de anos após o Big Bang. Uma delas, chamada GLASS-z12, é agora a luz estelar mais distante já vista.

Quanto mais longe as estrelas estão, mais tempo leva para sua luz atingir a Terra, então olhar para o Universo distante é ver o passado profundo.

17 de setembro de 2022

QUE PIB É ESTE? UMA RELEITURA DE 200 ANOS DA ECONOMIA BRASILEIRA!

(Edmar Bachanone, diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças, 15) Na interpretação da história econômica brasileira desde a Independência, há um consenso que entendemos ser equivocado. Em artigo recente, Gustavo Franco (O Globo/O Estado de S. Paulo, 31/7) assim o expressa: “Salta os olhos o desempenho ruim dos primeiros 100 anos (…) seja em termos absolutos ou comparativamente a outros países ditos de assentamento recente. A República Velha exibe um desempenho melhor, mas os anos verdadeiramente dourados para o crescimento parecem ser os do período 1949-80”.

Concluímos recentemente dois artigos acadêmicos que reestimam o crescimento econômico brasileiro desde a Independência: o primeiro no período 1820-1900, e o segundo, 1900-80 (ambos disponíveis no site do Iepe/Casa das Garças). Eles não desconstroem o consenso, mas o qualificam de forma substantiva.

Em primeiro lugar, o século 19 não foi um período de estagnação econômica no Brasil, como quer o Maddison Project, a bíblia da história econômica quantitativa mundial. Não foi nem mesmo um período de crescimento “a passos lentos”, como o qualifica em seu título livro recente de Marcelo Abreu, Luiz do Lago e André Villela (Edições 70, 2022).

De acordo com nossas contas, a evolução da economia brasileira foi normal para a época: entre 1820 e 1900, a taxa de crescimento do PIB per capita foi de 0,9% ao ano —índice similar ao de nossos vizinhos latino-americanos e da Europa Ocidental. O Brasil cresceu menos que os EUA, mas isso apenas porque o crescimento deste país foi excepcionalmente alto. Chegamos a esse resultado usando procedimentos parecidos com os do Maddison Project, mas com séries estatísticas recentes mais confiáveis e metodologia mais apurada.

Em segundo lugar, o crescimento do PIB per capita brasileiro foi realmente elevado de 1900 a 1980, mas não tanto quanto sustentam as contas nacionais. Incluindo nessas contas as atividades de serviços de lento crescimento, que elas deixaram de fora, em vez de 3,2% o PIB per capita cresceu 2,5% ao ano nesse período. Nos “anos de ouro” do pós-guerra, aos quais se refere Gustavo Franco, o crescimento do PIB per capita foi de 3,3% ao ano, não os 4,5% que constam das contas nacionais.

O consenso historiográfico consagrado nos números do Maddison Project nos diz que o PIB per capita brasileiro nada cresceu no século 19 e então passou a crescer 3,2% ao ano entre 1900 e 1980. Uma quebra estrutural e tanto! Nossa pesquisa sugere que essa suposta quebra é em boa medida ilusão estatística.

Medida de forma que entendemos mais correta, não é tão grande a diferença de crescimento entre um século e outro: 0,9% no século 10 e 2,5% entre 1900 e 1980 —ou seja, 1,6 ponto percentual de diferença, metade dos 3,2 que nos faz crer o consenso historiográfico.

Longe de nós a pretensão de dar a última palavra sobre o tema. Medir PIB, especialmente no século 19, é tarefa espinhosa, porque não há como fazê-lo de forma direta —somente por aproximações com grande margem de erro. O que arguimos nos dois artigos é que nossas contas fazem mais sentido do que as disponíveis atualmente. Deixamos aos estudiosos a tarefa de aprimorá-las.

14 de novembro de 2022

NAS ELEIÇÕES, EUA DESVIARAM DE FLECHADA FATAL NA DEMOCRACIA!

(Thomas L. Friedman – The NY Times/Estado de SP, 10) Pronto, pode adiar a sua mudança para o Canadá. Pode desistir da ligação para a Embaixada da Nova Zelândia sobre como se tornar um cidadão lá. A eleição de terça-feira foi realmente o teste mais importante desde a Guerra Civil para saber se o motor do nosso sistema constitucional – nossa capacidade de transferir poder de forma pacífica e legítima – permanece intacto. E parece ter sido aprovado – um pouco escangalhado, mas tudo bem.

Ainda não estou nem perto de dizer que estou aliviado, para declarar que nunca mais um político americano ficará tentado a concorrer com uma plataforma de negação eleitoral. Mas, dado o grau sem precedentes em que o negacionismo eleitoral foi elevado nestas eleições de meio de mandato, e a maneira como vários cabeças-de-bagre imitadores de Trump que tornaram o negacionismo central em suas campanhas foram esmagados nas urnas – podemos ter apenas desviado de uma das maiores flechas já apontadas para o coração da nossa democracia.

Com certeza, outra flecha pode nos atingir a qualquer momento, mas todo o sistema eleitoral dos EUA – em Estados republicanos e democratas – parece ter tido um desempenho admirável, quase ignorando os últimos dois anos de controvérsia, diminuindo-o ao que sempre foi: a fabricação vergonhosa de um homem e seus bajuladores e imitadores mais desavergonhados. Dada a ameaça representada pelos negacionistas de Trump à aceitação e legitimidade de nossas eleições, isso é um grande feito (e espero que dure até a contagem de votos no Arizona).

Não poderia vir em melhor hora, pois os líderes da Rússia e da China manipularam seus sistemas para se entrincheirar no poder além de seus mandatos previamente estabelecidos.

Um dos argumentos deles para seu próprio povo ao fazê-lo foi apontar para coisas como a insurreição de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos e o aparente caos de nossas eleições para dizer a seus cidadãos: “É assim que a democracia parece. É isso que vocês querem aqui?”.

De fato, em maio, durante seu discurso para a turma de formandos da Academia Naval dos EUA, o presidente Joe Biden lembrou quando o presidente chinês, Xi Jinping, o parabenizou em 2020 por sua eleição: “Ele disse que as democracias não podem ser sustentadas no século 21; as autocracias governarão o mundo. Por quê? As coisas estão mudando tão rapidamente. As democracias exigem consenso, e isso leva tempo, e você não tem tempo.”

Por essa razão, tanto Xi quanto o presidente da Rússia, Vladimir Putin – e o líder supremo no Irã, que agora enfrenta uma revolta liderada por mulheres – também perderam na noite de terça-feira. Porque quanto mais selvagem e instável nossa política, quanto menos capazes nos tornamos para transferir o poder pacificamente, mais fácil é para eles justificarem nunca fazê-lo.

Mas enquanto o negacionismo eleitoral levou uma surra esta semana, mandando uma mensagem vencedora, nenhuma das coisas que ainda estão corroendo os fundamentos da democracia americana – e nos impedindo de realmente realizar grandes coisas difíceis – foram embora.

Estou falando sobre a maneira pela qual nosso sistema de eleições primárias, com o gerrymandering, a manipulação dos distritos eleitorais, e as redes sociais se uniram para envenenar constantemente nosso diálogo nacional, polarizar constantemente nossa sociedade em tribos políticas e corroer constantemente os pilares de nossa democracia: verdade e confiança.

Sem poder concordar com o que é verdade, não sabemos qual caminho seguir. E sem poder confiar um no outro, não podemos ir para lá juntos. E tudo o que é grande e difícil precisa ser feito em conjunto.

Então, nossos inimigos seriam sábios em não nos deixar para morrer, mas seríamos ainda mais sábios em não concluir que, porque evitamos o pior, asseguramos o melhor caminho daqui pra frente.

Tudo não está bem.

Estamos tão divididos saindo desta eleição quanto estávamos ao entrar nela. Mas se a onda vermelha não se concretizou – particularmente em Estados-pêndulo como a Pensilvânia, onde John Fetterman ganhou uma cadeira no Senado sobre o candidato endossado por Trump, Dr. Oz – foi apenas porque republicanos e democratas moderados e eleitores independentes apareceram para colocar Fetterman e outros candidatos lá.

“Ainda há um grupo viável de eleitores centristas por aí, que, quando têm uma escolha válida – não em todos os lugares, nem sempre, mas em alguns distritos-chave – se impõem”, me disse Don Baer, que foi diretor de comunicação da Casa Branca na era Bill Clinton. “Acho que ainda há muitos eleitores dizendo: ‘Queremos um centro viável, onde possamos descobrir como fazer as coisas acontecerem, que possa realmente ajudar as pessoas, mesmo que não seja perfeito ou tudo de uma vez. Não queremos que todas as eleições sejam existenciais’.”

O desafio, acrescentou Baer, “é como você eleva esse sentimento e o faz funcionar em Washington regularmente?”.

Não sei. Mas se esta eleição é um sinal de que pelo menos estamos nos afastando do precipício é porque muitos americanos ainda se enquadram nesse campo independente ou centrista. Eles não querem ficar remoendo queixas, mentiras e fantasias de Donald Trump, e eles enxergam que elas estão deixando o Partido Republicano louco e agitando o país inteiro. Eles também não querem ser algemados pelos wokes identitários da extrema esquerda, e estão aterrorizados com a disseminação do tipo de violência política doentia que acabou de atingir o marido de Nancy Pelosi.

Temos uma enorme dívida por manter este centro vivo para com os deputados republicanos Liz Cheney e Adam Kinzinger e a deputada democrata Elaine Luria. Os três ajudaram a liderar a investigação sobre o 6 de janeiro no Congresso e acabaram sendo forçados a deixar o cargo como resultado. Mas a mensagem que o comitê enviou a um número suficiente de eleitores – que nunca, nunca, nunca, devemos deixar algo assim acontecer novamente – certamente contribuiu para a ausência de uma onda pró-Trump nesta eleição de meio de mandato.

Em suma, não recebemos um atestado de saúde. Recebemos um diagnóstico de que nossos glóbulos brancos políticos se saíram bem em derrotar a infecção metastática que ameaçava matar todo o nosso sistema eleitoral. Mas essa infecção ainda está aqui, e é por isso que o médico aconselhou: “Comporte-se de maneira saudável, recupere sua força e retorne em 24 meses para outro exame”.

11 de novembro de 2022

AVANÇO DO TRUMPISMO TRANSFORMARIA OS EUA NUM PAÍS NEFASTO!

(Paul Krugman – O Estado de SP, 09) Se você não sentiu um certo medo na véspera das eleições de meio de mandato, é porque não tem prestado atenção.

Podemos falar dos temas controvertidos destas eleições — suas implicações sobre política econômica, grandes programas sociais, política ambiental, liberdades civis e direitos reprodutivos. E não é errado entrar nessas discussões: A vida seguirá aconteça o que acontecer na cena política, e as políticas do governo continuarão surtindo grande impacto nas vidas das pessoas.

Mas eu, pelo menos, sempre me sinto meio culpado quando escrevo a respeito da inflação ou do destino do Medicare. Sim, são minhas especialidades. Colocar foco nelas, contudo, parece-me negação, ou ao menos evasão, quando desafios fundamentais são neste momento tão existenciais.

Dez ou 20 anos atrás, aqueles de nós que alertaram que o Partido Republicano estava se tornando crescentemente extremista e antidemocrático com frequência foram desprezados e classificados como alarmistas. Mas os alarmistas têm sido vindicados a cada passo do caminho, da venda da Guerra no Iraque sobre falsas pretensões à insurreição de 6 de janeiro de 2021.

De fato, atualmente, é quase sabedoria convencional que o Partido Republicano irá, se puder, transformar os Estados Unidos em algo parecido com a Hungria de Viktor Orbán: uma democracia no papel, mas na prática um Estado etnonacionalista, autoritário e monopartidário. Afinal, os conservadores americanos não fazem segredo de que consideram a Hungria um modelo; eles honraram Orbán e o apresentaram em suas conferências.

Neste ponto, contudo, acredito que até mesmo essa sabedoria convencional está equivocada. Se os EUA descambarem para um regime monopartidário, a coisa será muito pior, muito mais feia do que a Hungria de hoje.

Antes de eu chegar lá, uma palavra a respeito do papel dos temas convencionais de política nestas eleições. Se os democratas perderem a maioria no Congresso, o que agora parece mais distante, haverá um ruidoso coro de recriminações, muitas afirmando que eles deveriam ter colocado o foco em temas cotidianos, não falado em ameaças à democracia.

Eu não clamo especialidade nessa área, mas notaria que o partido do presidente na função quase sempre perde assentos nas eleições de meio de mandato. A única exceção a essa regra neste século ocorreu em 2002, quando George W. Bush conseguiu desviar a atenção de uma recuperação sem criação de empregos posando de defensor dos EUA contra o terrorismo. Se esse registro sugere algo, é que os democratas deveriam ter falado ainda mais de temas além da economia.

Eu também diria que fingir que esta temporada eleitoral foi uma campanha comum, em que apenas a política econômica estava em jogo, seria fundamentalmente desonesto.

Finalmente, até eleitores que estão mais preocupados com seus salários e custos de vida do que com a democracia deveriam, mesmo assim, estar muito preocupados com a rejeição do Partido Republicano às normas democráticas.

Um motivo é que os republicanos foram explícitos a respeito de seu plano para usar a ameaça de caos econômico para extrair concessões que não conseguiriam obter por meio do processo legislativo normal.

Controle do país

Também, ainda que eu compreenda o instinto dos eleitores de escolher um condutor diferente se não gostam do caminho que a economia está tomando, eles deveriam entender que, desta vez, votar nos republicanos não significa simplesmente colocar outra pessoa no volante; mas poderá ser um grande passo na direção de entregar ao Partido Republicano controle permanente do país, sem chance para os eleitores reavaliarem essa decisão caso os resultados não lhes agrade.

O que me traz à questão a respeito de como seriam os EUA de um só partido. Conforme já afirmei, agora é quase sabedoria convencional que os republicanos estão tentando nos transformar em uma Hungria. De fato, a Hungria provê um estudo de caso a respeito de como democracias podem morrer no século 21.

Mas o que me impressiona lendo a respeito do governo de Orbán é que, ainda que seu regime seja profundamente repressivo, a repressão é relativamente sutil. Trata-se, conforme percebe um sensato artigo, de um “fascismo brando”, que tira poder dos dissidentes por meio de seu controle da economia e dos meios de imprensa sem espancá-los nem colocá-los na cadeia.

Você acha que um regime trumpista, com ou sem Donald Trump, seria igualmente sutil? Ouça os discursos de Trump em qualquer comício. Eles são repletos de ressentimentos, desejos de vingança, promessas de prisões e punições para qualquer um — incluindo tecnocratas como Anthony Fauci — que o movimento desgoste.

E grande parte da direita americana é simpática a — ou pelo menos indisposta a condenar — uso de violência contra seus oponentes. A reação dos republicanos ao ataque contra Paul Pelosi por um trumpista empedernido que invadiu sua casa foi revelador: muitos no partido nem sequer fingiram estar horrorizados. Em vez disso, apregoaram nefastas teorias de conspiração. E o restante do partido não condenou nem penalizou os promotores dessas falsidades vis.

Em suma, se os trumpistas vencerem, provavelmente passaremos a desejar que seu regime fosse tão tolerante, relativamente benigno e não violento quanto o de Orbán.

Mas essa catástrofe não tem de acontecer. Mesmo se os republicanos obtiverem uma grande vitória nas eleições de meio de mandato, isso não será o fim da democracia, mas certamente será um duro golpe. E nada na política, nem mesmo um declínio total ao autoritarismo, é permanente.

Por outro lado, mesmo se conseguirmos um respiro esta semana, continuará verdadeiro que a democracia está profundamente ameaçada pela direita autoritária. Os EUA que conhecemos ainda não se perderam, mas estão à beira do abismo.

10 de outubro de 2022

BATALHA DE PIRAJÁ, HÁ 200 ANOS, FOI ÁPICE DE GUERRA POR INDEPENDÊNCIA NA BAHIA!

(João Pedro Pitombo – Folha de SP, 08) O traço inconfundível do artista plástico Carybé, o mais baiano dos argentinos, apresenta uma luta em tom épico: soldados uniformizados misturados a homens do povo, vaqueiros de gibão e chapéu de couro, cavalos tombados ao chão.

Em “Batalha de Pirajá”, mural de 1978, o artista tentou recriar uma das principais disputas campais da Independência do Brasil, em Salvador, dois meses depois do Grito do Ipiranga de dom Pedro.

A batalha, que completa 200 anos nesta terça-feira (8), durou cerca de oito horas, reuniu cerca de 4.000 soldados e foi uma tentativa dos militares fiéis a Lisboa de furar o cerco terrestre que as tropas brasileiras aliadas a dom Pedro 1º impunham a Salvador para consolidar a Independência.

A luta representou o ápice de uma guerra que registrou os primeiros distúrbios em fevereiro de 1822, eclodiu como luta armada em junho daquele ano e só teve fim em julho de 1823 com a expulsão das tropas portuguesas.

“Há um protagonismo popular nesse processo. A Independência na Bahia não foi resolvida nos gabinetes e nos salões. Ela foi resolvida nos campos de batalha, nas ruas e nas praças”, explica o historiador Sérgio Guerra Filho, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Depois de deixarem Salvador acossados pelos portugueses e rumarem para Cachoeira, no Recôncavo baiano, os apoiadores da Independência organizaram a retomada da capital com a criação de batalhões patrióticos. Avançaram por terra e cercaram Salvador, impedindo a entrada de armas e, principalmente, alimentos que eram produzidos no interior.

Em outubro, o lado brasileiro da guerra foi reforçado pelo já imperador Dom Pedro 1º, que mandou armas, soldados e oficiais que formariam as três brigadas do Exército liderado por um mercenário francês, o general Pierre Labatut.

Um quartel foi improvisado no Engenho Novo de Pirajá, reunindo as tropas que misturavam soldados regulares e voluntários, que incluíam sobretudo brancos pobres, negros libertos e negros escravizados enviados pelos seus senhores.

Hoje um bairro do Subúrbio Ferroviário Salvador, Pirajá fica na costa da Baía de Todos os Santos e tem geografia complexa: fica próximo à enseada de Itapagipe, possui escarpas que levam à parte alta da cidade e na época tinha uma vegetação densa, cuja área remanescente abriga o Parque de São Bartolomeu.

Foi neste campo de batalha que em 8 de novembro de 1822, os batalhões patrióticos reforçados pelas tropas do Imperador enfrentaram o seu primeiro grande teste contra os soldados portugueses aquartelados em Salvador.

A batalha foi desencadeada por uma tentativa do Exército português de desalojar os soldados brasileiros das regiões de Pirajá, Coqueiro e Cabrito e conter o avanço das tropas inimigas, que faziam um cerco por terra para a retomada de Salvador.

O conflito armado começou ainda na madrugada com o desembarque de soldados portugueses nas praias de Itacaranha e Plataforma, local que concentrou os mais duros embates da batalha, que se estenderam da costa até às escarpas que dão acesso a Pirajá.

Outro ponto de combate aconteceu entre os hoje bairros de São Caetano e Campinas de Pirajá. O terceiro ataque dos portugueses partiu do Morro do Conselho, no hoje bairro do Rio Vermelho, em direção à região de Armação, orla atlântica de Salvador.

Conforme aponta o historiador Luís Henrique Dias Tavares (1926-2020), pouco se sabe sobre o desenrolar das batalhas de 8 de novembro de 1822 e qual foi o fator determinante na vitória dos brasileiros.

“Faltam registros militares. Essa falha não permite localizar com exatidão os locais dos combates, como também os motivos do recuo das tropas portuguesas perante a resistência das tropas brasileiras”, afirma Dias Tavares no livro “Independência do Brasil na Bahia”.

Em comunicado ao Conselho Interino no dia seguinte, o general Pierre Labatut, que não participou da batalha, informou que as tropas portuguesas cederam “pelo valor e denodo das bravas” tropas. Em proclamação aos soldados, chamou os portugueses de “fracos e indignos de temor”.

O general Madeira de Mello, Governador das Armas da Bahia e líder das tropas portuguesas, disse em carta a dom João VI, que a batalha foi apenas uma missão de reconhecimento e creditou as baixas à falta de armas, munições e soldados.

A versão que ganhou o imaginário popular, contudo, veio de um poema de Ladislau dos Santos Titara, responsável pelas correspondências do general Labatut, que alçou à condição de herói o cabo-corneta Luís Lopes.

Diante das dificuldades da batalha, o comandante Barros Falcão teria ordenado que o corneteiro fizesse o toque de retirada, fazendo com que as tropas brasileiras recuassem. Mas ele teria feito o contrário, entoando o toque de “avançar a cavalaria e degolar”.

O toque de ataque teria assustado os portugueses que se imaginaram em menor número de soldados e bateram em retirada de forma desordenada.

A versão de Ladislau dos Santos Titara da história foi referendada no livro “Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia”, de Ignácio Accioli e Braz do Amaral. Mas não é consenso entre os historiadores, que veem falta de registros históricos sobre o papel do Corneteiro Lopes na batalha.

Ainda assim, o Corneteiro Lopes virou figura central na construção mítica da Independência na Bahia, representando a bravura das tropas brasileiras diante dos portugueses.

As batalhas seguiram nas semanas seguintes. Em 19 de novembro, cerca de 200 escravizados armados dos engenhos da Mata Escura e Saboeiro atacaram Pirajá enganados por promessas de alforria caso aderissem aos portugueses.

Os brasileiros prevaleceram no ataque e Labatut mandou fuzilar os 50 homens e chicotear as 20 mulheres escravizadas que haviam sido presas.

Pirajá, por sua vez, se tornou um dos marcos da luta pela Independência, anfiteatro do que o poeta baiano Castro Alves (1847-1871) chamou de batalha de gigantes no poema “Ode ao Dois de Julho”.

“A pugna imensa / Travava-se nos cerros da Bahia… / O anjo da morte pálido cosia / Uma vasta mortalha em Pirajá. / “Neste lençol tão largo, tão extenso / “Como um pedaço roto do infinito … / O mundo perguntava erguendo um grito: / “Qual dos gigantes morto rolará?!”

A resposta definitiva veio em 2 de julho de 1823.

09 de novembro de 2022

HISTORIADORA CONTA A ORIGEM DA CARTA MAGNA E COMO OS ÍNDIOS E AS MULHERES FICARAM FORA DELA!

(O Estado de SP, 05) Em A Letra da Lei: Guerras, Constituições e a Formação do Mundo Moderno (Zahar, R$ 114,90), a historiadora inglesa Linda Colley percorre alguns séculos para tentar traçar a história das Cartas Magnas. Não se trata, obviamente, de uma história “global” desses documentos, nem poderia, diante da dificuldade para definir determinados textos, como os dos povos originários da América, entre outros. O Popol Vuh (século 16), ou o Livro do Conselho, dos maias, por exemplo, que abarca em seu conteúdo as leis, a religião e a história desse povo, está ausente das considerações da autora, que parte da tradição europeia e se fundamenta nela. Por isso, talvez, o Popol Vuh não seja mencionado por ela, que se refere, no entanto, à Constituição dos povos cherokees, como um dos primeiros documentos do gênero escritos por povos nativos norte-americanos.

Depois que suas terras foram tomadas pelos “homens brancos”, a população cherokee diminuiu drasticamente e os seus líderes decidiram “deixar claro que eram uma nação independente, e consequentemente exigiram uma Constituição escrita”. Isso só foi possível, segundo a historiadora, porque “uma parcela cada vez maior desses nativos era em parte alfabetizada. Além disso, e muito importante, tinham acesso à reprodução gráfica”. Um dos ativistas dessa etnia, Sequoyah (1770-1843), inventara um sistema de escrita que permitia transpor a língua cherokee para o papel, justamente para ser impressa.

Todo esse esforço, contudo, parece ter sido em vão, pois “o governo federal americano em Washington, junto com o Legislativo da Geórgia, formado só por brancos, rejeitaram a legalidade dessa Constituição e a validade às aspirações nacionais cherokees”. Isso demonstra que as Constituições são fortes e respeitadas apenas quando endossadas por aqueles que realmente detêm o poder. Ainda assim, os cherokees abriram caminho para que outros povos ameaçados por avanços imperiais do Ocidente também se esforçassem “para usar Constituições escritas e impressas como meio de afirmar suas identidades políticas separadas e autônomas, às vezes com mais êxito do que os cherokees”.

Embora nem todas as Constituições escritas e impressas tenham vingado, Colley enfatiza reiteradas vezes a importância da escrita, da impressão e, é claro, da ampla divulgação desses textos, que implica a sua tradução para outras línguas, como garantia da consolidação das Cartas Magnas.

Segundo a historiadora, a capital inglesa exerceu, nos anos 1800, um papel fundamental para difundir Constituições de outros países, justamente porque “podia despachar cartas constitucionais ou códigos de leis para qualquer país na Europa ou na América”, como bem apontou um jornalista em 1819. Isso porque, nessa época “e por bem mais de um século depois disso, Londres foi o maior porto do mundo, com a maior Marinha Mercante. Graças ao elástico império marítimo da Grã-Bretanha, Londres desfrutava também de acesso privilegiado a uma multiplicidade de portos em todos os continentes”. Além disso, a industrialização precoce da capital inglesa transformou a produtividade gráfica. No início de 1810, o princípio da máquina a vapor usada para impressão permitia “produzir mais de mil páginas impressas por hora” e, 30 anos depois, o número de páginas impressas por hora quadruplicou.Mas o papel da Inglaterra e de Londres não estava restrito apenas à divulgação de novas Constituições; muitos ingleses ajudaram na redação desses documentos a pedido de outros países. Vale lembrar que a capital inglesa recebia exilados de todo o mundo, muitos da América do Sul, que na terra de Shakespeare se punham a escrever leis que pudessem organizar suas, agora, ex-colônias.

À Inglaterra também era importante acompanhar esses textos e a “qualidade dos governos que ali se instalavam”, pois investidores do país emprestavam dinheiro a essas novas nações e precisavam saber qual destino seria dado a suas aplicações financeiras.

Ainda no contexto inglês, Colley destaca a figura de Jeremy Bentham, que, “como tantos outros homens politicamente obcecados dessa época, também se dedicava a estudar e redigir projetos constitucionais. Mas fazia isso numa escala impressionante e promíscua”, ou seja, auxiliava diferentes regimes políticos em diferentes países, muitos deles advogando interesses antagônicos. Bentham manteve comunicação com o Haiti, “a primeira república caribenha governada por negros”, e afirmou em uma carta na qual constava o plano de uma nova Constituição haitiana que, “seja qual for a diferença da cor”, era do interesse de todas as partes uma “identidade no tocante a leis e instituições”. O filósofo e jurista inglês também fez contato com o norte da África islâmica, e pensou na possibilidade de “adaptar novas ideias e aparelhos constitucionais para a entidade política islâmica”.

Vale destacar que, em 1789, Bentham redigiu uma proposta de Constituição para a França revolucionária na qual já defendia, para o espanto de seus colegas reformistas, “a extensão do direito ao voto para todos os cidadãos, ‘homens ou mulheres’”, desde que “de idade adulta, mente sã e soubessem ler”.

Nessa mesma época, em 1790, é interessante observar que as “lojas de maçons – organizações fraternas que se reuniam para falar, discutir e farrear – se espalharam depressa por toda a Europa e pelas Américas. Desde o início, lojas maçônicas redigiram e publicaram o que chamavam explicitamente de Constituições”. Eram textos que determinavam as leis de suas lojas, mas cuja redação, eles acreditavam, era uma “maneira de o homem familiarizar-se com a ideia e os usos de Constituições escritas em sentido mais amplo”. Não é à toa que muitos constitucionalistas tenham sido maçons. Uma diferença gritante entre os maçons e Jeremy Bentham é que, para os primeiros, as mulheres – “não apenas fisicamente fracas, mas frívolas e frágeis do ponto de vista moral” – não podiam ser parte ativa da sociedade e política. Os maçons se baseavam em um episódio do Gênesis que dizia que Satã conheceu Eva quando era uma “vadia” e fez dela uma de suas filhas. Parece que, no século 21, no Brasil, a maçonaria de repente ressurgiu no cenário político – resta saber se pretende manter as mesmas ideias preconceituosas do passado.

A Letra da Lei se fundamentou em livros e documentos históricos, mas toda a história, como se sabe, também tem algo de ficcional, ou seja, não deixa de ser em parte a criação de quem a narra – nesse caso, uma autora branca, nascida na Inglaterra e vivendo nos Estados Unidos. Nesse sentido, muitas descrições de personagens históricas feitas por Colley revelam um viés pessoal e extrapolam a exposição objetiva dos fatos tratados no livro. A historiadora parece dar especial atenção a alguns detalhes ínfimos, como os relacionados ao sobrepeso, que ela faz questão de destacar. Um dos advogados encarregados pela preparação do Código Civil de Napoleão, por exemplo, é descrito como “gorducho”, e o próprio Napoleão não escapa da balança de Colley, que, ao analisar um retrato do imperador francês, destaca a sua deterioração física, pois ele “parece enrugado, acima do peso e calvo”.

Catarina II, da Rússia, a primeira mulher a esboçar uma Constituição, o Nakaz, ou a Grande Instrução, acaba obscurecida por estar “acima do peso e com o queixo flácido”. Colley se permitiu devaneios ao redigir a história das Constituições, talvez porque saiba que nem mesmo as Cartas Magnas se fundamentam apenas em dados objetivos: “Redigir Constituições era também um esforço privado, um modo de criatividade literária e cultural semelhante a escrever um poema, uma peça, um artigo de jornal ou, na verdade, um romance”.

Ao final de A Letra da Lei, pode-se chegar a pelo menos uma conclusão: as Constituições são criações de uma casta, são lidas e entendidas por essa mesma casta e só sobrevivem se forem aceitas por outra casta superior a essa.

07 de novembro de 2022

AUMENTAR O LIMITE DO SIMPLES É UM ERRO!

(Vanessa Rahal Canado, coordenadora dos cursos de pós-graduação em Direito do Insper e consultora em política tributária – O Globo, 06) Recebi por estes dias um “save the date” para o evento de apresentação do parecer final sobre o PLP 108/2021 — que trata do aumento no limite de faturamento das empresas enquadradas no Simples Nacional — pelo relator, deputado Darci de Matos (PSD-SC). Não sei se existem razões para comemorar ou apoiar a iniciativa. Aumentar o limite do Simples é um erro duplo: rema contra o crescimento econômico e aumenta um gasto tributário comprovadamente ineficiente.

Chegou-se a um consenso de que não há espaço para baixar nossa carga tributária. Logo, qualquer diminuição de impostos para uns significa majoração pra outros. Se mais empresas pagarão menos impostos ao poder aderir ao Simples Nacional, alguém pagará a conta. Nada de novo neste Brasil de “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Não adianta dizer, sobre o PLP atual, que não se trata de benefício fiscal, que sem o Simples essas empresas não existiriam e, portanto, não haveria arrecadação alguma. Por esse raciocínio, o Simples não só não seria renúncia fiscal, como teria potencial de criar arrecadação onde não haveria. Não é bem assim. Os bens e serviços produzidos por essas empresas — subsidiadas —seriam produzidos por outras empresas, mais eficientes e menos dependentes do Estado. Aliás, convenhamos, se não fosse para pagar menos, ninguém migraria de um regime regular para o Simples.

Mais grave que o aumento na renúncia fiscal é o impacto negativo dessa medida sobre uma agenda real de crescimento econômico. Aumentaremos nosso potencial de “país do Peter Pan, onde as empresas nunca crescem”, como recentemente ouvi de empresários.

Tratamos o Simples como um mero regime simplificado de recolhimento de tributos, quando ele se tornou muito mais que isso. Diferentemente do modo como evoluímos no tema dos regimes simplificados de tributação no Brasil, ele não deve ser pautado por renúncias fiscais. A instituição de regimes especiais para pequenas e médias empresas (PMEs) busca mitigar custos de conformidade e fiscalização.

O custo de pagar tributos (compliance) é fixo. Em empresas menores, esse custo é maior, proporcionalmente ao faturamento, que nas grandes. O mesmo pode-se dizer sob a ótica da eficiência da administração pública. Não vale a pena fiscalizar e cobrar um crédito tributário cujo montante é inferior a seu custo administrativo.

O aumento do subsídio para pequenas e médias empresas (PMEs) — que não seriam mais tão médias ou pequenas — fortalecerá ainda mais empresas não competitivas à custa de dinheiro público. Em 2019, a FGV publicou estudo com avaliação econômico-jurídica do Simples. A conclusão foi que esse regime não tem paralelo no mundo e é um gasto tributário que se traduz em entrave ao desenvolvimento. Ao tratar algumas empresas de forma benéfica, temos de tributar mais as outras e evitamos que aquelas cresçam e se tornem eficientes.

Nem sei se vale a pena falar em equidade. O aumento nos benefícios do Simples incentivará a pejotização. Assalariados ou prestadores de serviços já pagam 300% a mais de imposto que os sócios de empresas do Simples e do Lucro Presumido. Detalhes dessa distorção estão no Caderno nº 34 da FGV Projetos, em artigo publicado pelos diretores do Centro de Cidadania Fiscal em 2018.

O PLP 108 abusa do voluntarismo e do populismo, quando deveríamos estar construindo as bases de um projeto que ajudasse o país a crescer mais e melhor. É preciso criar soluções a partir de evidências. O projeto faz o contrário. Não há justiça social e melhora da competitividade das nossas empresas com esse projeto. Precisamos de uma racionalização do sistema tributário brasileiro a partir de uma reforma abrangente, bem pensada, focada em crescimento econômico e igualdade.

03 de novembro de 2022

BRASIL ENFRENTARÁ DESAFIOS FISCAIS NUMA CONJUNTURA ECONÔMICA ADVERSA!

(Everardo Maciel – O Estado de SP, 03) O Brasil, nos próximos anos, enfrentará grandes desafios fiscais numa conjuntura econômica internacional adversa. Foram muitas as despesas postergadas, notadamente o pagamento de precatórios por força das Emendas Constitucionais 113 e 114, de 2021, gerando uma bomba fiscal para os exercícios subsequentes.

Em artigo anterior, defendi a adoção de um programa de reestruturação do gasto público que prestigiasse a eficiência e prevenisse o despesismo. Cuido agora de suscitar a reforma no processo orçamentário como instrumento de enfrentamento daqueles desafios.

Depois de um longo período de tramitação no Congresso Nacional, em 17/3/1964 foi sancionada a Lei n.º 4.320, que se tornou uma consistente base normativa para os orçamentos públicos. O tempo, todavia, cuidou de torná-la obsoleta.

Até o Plano Real (1994), os orçamentos públicos eram ficções, porque a hiperinflação corroía continuadamente as dotações, cuja serventia era meramente formal. O orçamento era administrado no caixa.

Não há como deixar de reconhecer alguns avanços, como a extinção do orçamento monetário e a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas os retrocessos foram maiores, sendo vários deles atribuíveis à Constituição de 1988 e a alterações posteriores, como: os orçamentos autônomos dos Poderes da União não têm similares em nenhum outro país e explicam a relativa prodigalidade de gastos no Legislativo e no Judiciário; a autorização constitucional para emendas visando à correção de erros e omissões converteu-se em espúria via para aumento na previsão de receitas para a expansão das despesas; os restos a pagar, outrora inexpressivos, não só passaram a receber amparo constitucional, como assumiram valores significativos na execução orçamentária; os planos plurianuais são fantasias, e são inclusive padronizados e comercializados para municípios.

As chamadas emendas parlamentares, de início pouco relevantes, foram gradualmente se tornando vultosas, ganharam status constitucional e assumiram caráter impositivo. Mais recentemente, surgiram as emendas de relator, não transparentes, e que, em geral, representam o mau uso do dinheiro público e, não raro, corrupção.

É pouco realista o enfrentamento direto dessa disfunção. Um caminho para conferir racionalidade às emendas seria estabelecer a obrigatoriedade de vinculá-las a fundo ou despesa federal, em conformidade com uma futura lei complementar das finanças públicas (artigo 165, parágrafo 9.º da Constituição) que é, até hoje, um clamoroso caso de mora legislativa.