30 de outubro de 2019

AMÉRICA LATINA VIVE ENTRE ELITES E POPULISTAS PREDADORES!

(Martin Wolf, analista-chefe do Financial Times – O Globo, 27) Protestos que parecem varrer o mundo, da França ao Chile, têm causas comuns, ligadas a oportunidades limitadas e ao aumento da desigualdade, na avaliação de Martin Wolf, principal analista econômico do jornal liberal britânico Financial Times. Desde a crise financeira de 2008, Wolf vem escrevendo artigos cada vez mais agudos sobre o que chama de “capitalismo rentista”, que segundo afirma põe em risco a democracia no Ocidente ao fazer com que as pessoas deixem de acreditar que podem ter acesso aos benefícios do sistema. Em entrevista ao GLOBO, ele diz que não ficou surpreso com a revolta no Chile e faz uma avaliação pessimista da situação da América Latina, que, na sua visão, ficou presa na armadilha da renda média e vive entre o que chama de “elites predadoras” e “populistas predadores”.

O mundo assiste à eclosão de revoltas populares. Há algo em comum nesses movimentos?

Eles claramente têm algumas características comuns. Provavelmente também está em curso algum efeito demonstração. Isso é parte do que aconteceu em 1968. Há causas em comum também: oportunidades relativamente limitadas, serviços públicos de má qualidade e altos níveis de desigualdades. Não obstante, esses lugares são muito diferentes entre si.

No caso da América Latina, o fim do “boom” das commodities levou os países a um novo ciclo de ajuste fiscal. Parece que a receita não está surtindo efeito. Existem alternativas?

Há poucas alternativas. Se um governo não pode tomar crédito nem aumentar os impostos, ele tem de cortar gastos. É claro que deveria tentar fazer isso de um modo que garanta o crescimento econômico.Mas isso,eis aquestão,é muito difícil de se fazer.

O Chile era considerado um exemplo por combinar uma política fiscal austera com a redução da pobreza. O que deu errado?

O Chile tem uma economia e uma sociedade altamente desiguais, apesar do seu relativo sucesso econômico. É, na verdade, a economia mais desigual entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Portanto, esses protestos não me surpreenderam em nada.

O que é o “capitalismo rentista” a que o senhor se refere e como pode ser reformado?

O capitalismo rentista é um sistema a partir do qual as elites empresariais e financeiras vivem principalmente do monopólio e da competição monopolista. Rentismo, mais precisamente, é quando a renda fica além e acima daquela necessária para atrair a oferta de mercadorias, serviços ou fatores de produção relevantes [esses fatores incluem o próprio capital, o trabalho e os meios de produção, incluindo a terra]. A ascensão do monopólio aconteceu por diferentes razões: implementação deficiente das regras de concorrência, proteção excessiva da propriedade intelectual, governança corporativa fraca e recompensas excessivas para a gerência corporativa, queda da eficácia dos sindicatos, exploração disseminada de paraísos fiscais, e, sobretudo, o crescimento do mercado financeiro predatório. Reformas serão necessárias em todas essas áreas para reverter essa situação.

Em 2008, entendeu-se que a desregulamentação dos mercados teria ido longe demais. O que faltou na resposta à crise financeira?

Certamente houve alguma “re-regulamentação”, especialmente no sistema bancário. A questão é saber se foi suficiente para torná-lo seguro. A minha visão pessoal é a de que os perigos criados pelas instituições financeiras altamente alavancadas e “grandes demais para falir” ainda existem. Também vejo um risco crescente de desregulamentação, especialmente nos EUA, o que poderia ser muito perigoso.

O senhor escreveu que as economias ricas ficaram mais parecidas com as da América Latina. É possível fazer as economias latino-americanas se parecerem mais com as ricas?

Parece pouco provável que isso aconteça. As evidências indicam que nos últimos 40 anos todos os países latinoamericanos descobriram ser impossível saltar da condição de países de renda média para países de alta renda. Isso sugere fraquezas profundas em seus sistemas econômicos e políticos. Para mim, as maiores dificuldades parecem estar no ciclo entre o controle por elites predadoras, de um lado, e o controle por populistas predadores, de outro. Entre muitos aspectos, os resultados disso foram as baixas taxas de poupança nacional, populações com baixos níveis de educação e empresas pouco competitivas internacionalmente, à exceção de alguns setores, em especial ligados às commodities.

O senhor diz que os sistemas tributários se tornaram mais regressivos, sem justificativa econômica. A questão está presente no debate europeu sobre como taxar mais as gigantes da tecnologia. O que impede mudanças?

É difícil taxar empresas cuja localização não pode ser determinada com facilidade, como é o caso das grandes companhias de tecnologia. Além disso, para tributar empresas como essas é preciso cooperação entre as autoridades tributárias. Mas esses negócios também são poderosos lobistas, o que torna essa cooperação internacional ainda mais complicada.

É possível conter as altas taxas de desemprego entre os jovens e ao mesmo tempo lidar com o impacto das novas tecnologias no mercado de trabalho?

Acredito que sim. O Reino Unido tem uma taxa de emprego razoavelmente alta, mesmo entre os jovens, e está exposto a novas tecnologias. O desempenho do mercado de trabalho é determinado principalmente pela disponibilidade de mão de obra qualificada e pela qualidade das políticas voltadas a este mercado.As tecnologias ainda poderão destruir uma grande quantidade de empregos em termos líquidos. Mas isso ainda não aconteceu. Uma questão mais grave pode ser seu impacto na desigualdade.

A internet e as mídias sociais têm relação com os protestos que estão acontecendo no mundo neste momento?

Certamente. O populismo de hoje, que é menos organizado e disciplinado do que o da década de 1930, está ligado à facilidade da disseminação de propaganda e de mentiras deslavadas a partir das mídias modernas. No entanto, a explosão da demagogia não teria acontecido se o terreno já não tivesse sido fertilizado por mudanças econômicas e culturais.

A atual guerra comercial e tecnológica entre EUA e China dificulta a tarefa de reformar o capitalismo?

Ela torna tudo mais difícil, uma vez que faz com que o que poderia ser uma energia valiosa para promover reformas vire um conflito comercial conduzido pela xenofobia. Há questões importantes a serem discutidas com a China. Mas a China não causou o mal-estar econômico e social nos EUA. Culpá-la não fará o mal-estar desaparecer. A China virou um bode expiatório. E isso é sempre um perigo.