DEMOCRACIA VAI BEM! POLÍTICA VAI MUITO MAL!

(Daniel Innerarity é professor de Filosofia Política e Social, e professor na London School of Economics, 28/02)

1. Uma democracia é um espaço aberto onde, em princípio, qualquer um pode fazer valer sua opinião, o que permite milhares de formas de pressão, e temos até mesmo a capacidade de mudar os governos. Isto funciona relativamente bem.

2. O que não vai tão bem é a política, isto é, a possibilidade de converter essa amálgama plural de forças em projetos e transformações políticas, dar causa e coerência política a essas expressões populares e definir o espaço público de qualidade onde tudo isso é discutido, ponderado e sintetizado. Tem a ver com isso o fato de que para aqueles que atuam politicamente, está cada vez mais difícil formular agendas alternativas.

3. Estamos em uma era pós-política, da democracia sem política. Temos uma sociedade irritada e um sistema político agitado, cuja interação não produz quase nada de novo, como teríamos o direito de esperar dada a natureza dos problemas que temos que enfrentar.

4. A cidadania hoje evita as formas tradicionais de organização. São crescentes formas de compromisso individual, um ativismo que não está ideologicamente articulado em um quadro ideológico que lhe confere coerência e totalidade, como poderia ser o caso das ideologias tradicionais abrangentes.

5. O espaço digital abriu novas possibilidades de ativismo político. Para grande parte da população, a realidade representada pelos partidos hierárquicos já não é mais atraente, enquanto que a cultura virtual da Rede permite articular confortavelmente suas ideias políticos fluidas e intermitentes, e até mesmo ficar “off line”  a qualquer momento.

6. O que não faltam são exemplos de ativismo e “soberania negativa” no espaço físico, agora também ligados à mobilização digital. Eu não questiono a bondade dessas ações de resistência cívicas ou campanhas on-line, eu me limito a apontar que, por não se “inscrever” em qualquer contexto político que lhes dá coerência, podem dar a entender que a boa política é uma mera adição de ganhos sociais. Não funciona a articulação das demandas sociais em programas coerentes que competem na esfera pública de qualidade, em suma, falha a construção política e institucional da democracia além da emoção do momento, da pressão imediata e da atenção da mídia.

7. O espaço público não se reduz à mera agregação apolítica de preferências inconsistentes, agrupados como se não houvesse nenhuma prioridade entre elas e até mesmo certas incompatibilidades. Alguém deveria organizar essas revindicações com critérios políticos e gerir democraticamente sua possível incompatibilidade.  Se a política (e os tão criticados partidos) servem para alguma coisa é precisamente para se integrar com alguma coerência e autorização democrática as múltiplas demandas que surgem continuamente no espaço de uma sociedade aberta.

8. Ao fato de que as demandas sociais estão desarticuladas, se acrescenta a circunstância de que tais reivindicações são plurais, logicamente, e, em ocasiões, incompatíveis ou contraditórias: uns querem mais impostos e outros menos, uns querem software livres e outros proteção da privacidade e da propriedade, alguns estão preocupados com menos liberdade e outros que têm muitos imigrantes… Sem uma avaliação política é difícil saber quando se trata de bloquear as reformas necessárias ou um protesto contra o abuso dos representantes.

9. Em qualquer caso, aqueles que tendem a celebrar a espontaneidade social deveriam se lembrar que a sociedade  não é o reino das boas intenções. A legitimidade da sociedade para criticar seus representantes não quer dizer que aqueles que criticam ou protestam estão necessariamente certos. O estado de indignado, crítico ou vítima, não faz de você politicamente infalível.

10. A partir dessas trincheiras apolíticas, parecem dominar as coisas com uma claridade que não dispõe aqueles que normalmente lidam com o princípio da realidade. A raiva desses grupos não se dirige tanto aos adversários como a eles mesmos, quando ameaçam rebaixar ao nível de politicamente inegociável. Propagam uma mentalidade antipolítica porque não entenderam que a política envolve sempre alguns compromissos e concessões. Os setores radicais dos partidos definem o ritmo de uma forma que provavelmente não corresponde a critérios de representatividade e dificultam certas reformas em que o acordo político com adversários é necessário.

11. Pesquisas dizem que a política tornou-se um dos nossos principais problemas e eu me pergunto, para concluir, se essa opinião expressa uma nostalgia pela política que já não existe, uma crítica diante da sua mediocridade, ou melhor, um desprezo antipolítico frente a algo cuja lógica não se entende muito bem.