03 de julho de 2019

LIVRO SOBRE DESIGUALDADE É O MELHOR EM ANOS, DIZ CELSO ROCHA DE BARROS!

(Celso Rocha de Barros – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 30) “Uma História de Desigualdade” é o melhor trabalho produzido pelas ciências sociais no país nos últimos anos. Caso seja sinal de uma tendência de conciliar rigor quantitativo com discussões teóricas historicamente relevantes, talvez estejamos prestes a assistir a uma grande era na reflexão sobre a sociedade brasileira.

O livro é fruto de tese de doutorado em sociologia defendida na Universidade de Brasília. O autor, Pedro H. G. Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea, venceu com essa pesquisa prêmios conferidos pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Por isso o livro é, fundamentalmente, uma tese. Tem gráfico, tem tabela —e grande parte de seu atrativo vem disso. Para quem estuda sociedade brasileira, trata-se de uma leitura obrigatória, embora a discussão sobre dados possa afastar alguns leitores.

O Brasil é um caso de grande interesse para os estudos sobre desigualdade. Já fomos o país mais desigual do mundo e continuamos no pelotão da frente em todas as medidas nesse quesito. Ao nosso lado nessa nada honrosa lista estão outros países da América Latina e países africanos extremamente pobres e/ou afetados por guerras civis.

Quando a desigualdade russa disparou nos anos 1990, lembro-me de pessoas dizendo: “se continuar assim, vai ficar igual ao Brasil”. Quando um pesquisador estrangeiro fala de “brasilianização”, o mais provável é que esteja se referindo a algum cenário de desigualdade crescente.

Nada disso é novidade, mas é raro o assunto ser tratado com dados novos e procedimentos estatísticos rigorosos.

O trabalho de Souza e de seu orientador Marcelo Medeiros (também pesquisador do Ipea) ganhou notoriedade, inicialmente, como contestação da reivindicação petista de que a desigualdade havia despencado na era Lula. A tese mostra uma notável estabilidade na fração da renda controlada pelo 1% da população mais rica.

Sem a utilização dos dados obtidos por Souza, o quadro anterior indicava grande queda da desigualdade, causada pela redução (aí sim, bem grande) da distância entre os pobres e a classe média, ou entre os pobres e os não tão pobres.

Na verdade, é possível resumir o lulismo em um gráfico com os dois resultados. Os pobres conseguiram se aproximar do meio da distribuição da renda, mas os governos petistas não encostaram na renda dos mais ricos. É a redistribuição sem conflito, bem descrita nos trabalhos de André Singer.

Se Souza e Medeiros tivessem só ajudado a compor metade desse quadro, já seria uma bela contribuição. Mas o livro é bem mais que isso.

Sob um certo aspecto, é a história de uma proporção: a parte da renda nacional que está nas mãos dos ricos. Souza foi atrás de dados de tabelas do Imposto de Renda que refletem melhor a renda dos ricos que as pesquisas domiciliares por amostragem, base dos estudos anteriores. Os ricos —e, em especial, os muito ricos— aparecem pouco nessas pesquisas, que, portanto, tendem a subestimar a desigualdade total.

De posse dos dados e após reconstruir a história da taxação da renda no Brasil, Souza reconta a evolução da proporção da renda dos brasileiros controlada pelos ricos, com atenção especial ao 1% mais rico, de 1926 a 2013.

A despeito dessa façanha, o livro é bem mais do que um bom trabalho de sistematização de dados. O que os números revelam é interessantíssimo. Não há espaço aqui para discutir todos os resultados, nem mesmo os mais interessantes, mas vale a pena citar ao menos um, com seus desdobramentos.

A desigualdade brasileira caiu nos períodos democráticos (tanto no período de 1945 a 1964 quanto na fase atual) e subiu durante as ditaduras (tanto no Estado Novo quanto no regime militar). Souza é o primeiro a dizer que não se deve interpretar esse fato apressadamente.

É possível que a democracia tenha reduzido a desigualdade, dando voz aos pobres que exigiram redistribuição; também é possível que as ditaduras tenham levado a um crescimento da desigualdade, pois reprimiram movimentos sociais pró-redistribuição, como os sindicatos. Mas em cada uma das conjunturas-chave (as transições para a democracia e para regimes autoritários), vários outros fatos também podem ter sido decisivos.

Enquanto lia, ocorreu-me uma hipótese bem mais pessimista: talvez a democracia brasileira só tenha sido capaz de se sustentar enquanto foi possível redistribuir renda. Espero que as descobertas de Souza inaugurem um bom debate sobre o tema.

O livro oferece ainda apoio parcial às teses do economista Jeffrey Williamson, que mostrou que a desigualdade na América Latina não era tão mais alta do que a europeia, no final do século 19. Nossa excepcionalidade está no fato de que perdemos a “grande equalização” que ocorreu nos países ricos durante o século 20. As comparações internacionais, a propósito, são um dos pontos fortes do livro.

Os resultados de Souza nos fazem pensar sobre o quanto a falta de democracia nos fez perder a grande equalização. Está claro, porém, que não se trata apenas disso. Afinal, a Europa passou por grandes calamidades no século 20 que acabaram por reduzir a desigualdade. As guerras mundiais, as crises econômicas e a inflação destruíram uma quantidade imensa de riqueza.

Souza chama de “Jencks-Piketty” a hipótese de que a desigualdade só cai bruscamente pela ação de grandes reviravoltas históricas (em geral, desastres). O nome é uma homenagem aos pesquisadores Christopher Jencks e Thomas Piketty.

Souza, por sinal, parece inclinado a interpretar seus resultados à luz de Jencks e Piketty, relacionando os grandes movimentos da desigualdade às grandes crises brasileiras que causaram sucessivas mudanças de regime político.

Faz sentido e é consistente com os dados, mas ainda acho que se deva dar mais uma chance à hipótese de que a democracia foi crucial para derrubar a desigualdade, tanto aqui quanto nos países ricos.

O século 20 foi uma era de calamidades, mas também dos espetaculares ganhos sociais obtidos pela social-democracia e suas variantes onde ela teve chance de se desenvolver. As duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. É difícil isolar os efeitos da democracia e os das calamidades, mas vale a pena continuar tentando.

De qualquer forma, parece claro que precisaremos levar a sério a ideia de Mangabeira Unger de que “a imaginação antecipa o trabalho da crise” e começar a pensar em soluções para o problema da desigualdade que sejam compatíveis com alguma estabilidade institucional.

Supondo, é claro, que ainda estejamos, enquanto país, interessados em reduzir nossas desigualdades. Isso já foi mais certo.

02 de julho de 2019

LEITURA DE RISCO!

(André Cáceres – Aliás – Estado de S.Paulo, 30) Quem lê com atenção a passagem do romance Anna Kariênina, de Liev Tolstoi, em que a protagonista comete suicídio, não passa incólume por essa experiência. “Os mesmos neurônios que você utiliza quando mexe as pernas e o tronco são ativados também quando você lê que Anna se jogou na frente do trem”, descreve a neurocientista cognitiva e pesquisadora da leitura Maryanne Wolf, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, em seu livro O Cérebro no Mundo Digital, lançado no Brasil pela editora Contexto. “Uma grande parte de seu cérebro foi ativada tanto pela empatia ante o desespero visceral da personagem, quanto pela ação motora de neurônios-espelho interpretando esse desespero. Quem leu essa passagem no romance de Tolstoi também se jogou.” No entanto, Wolf argumenta que somente quem leu atentamente passou por esse processo mental – e estamos perdendo a capacidade de imergir dessa forma nos livros.

Seres humanos não nasceram para ler. Diferente da linguagem, que é inata, a leitura é uma das aquisições mais importantes do Homo sapiens, característica única na natureza, que implicou em um processo de mudança da estrutura e das conexões do cérebro. Tanto que, em analfabetos, “a maior parte dos grupos de trabalho neuronais que usamos hoje para as letras e palavras são amplamente associados a tarefas visualmente semelhantes, mas funcionalmente diferentes, como a identificação de objetos ou rostos”, de acordo com Wolf.

A primeira carta de O Cérebro no Mundo Digital (o livro é dividido em epístolas e escrito com a linguagem intimista de um diálogo da autora com o leitor) se dedica a explicar didaticamente como funciona o circuito da leitura no cérebro para, nas outras cartas, detalhar como a leitura em telas de computadores, celulares, tablets – e até mesmo e-readers projetados especificamente para isso – vem perturbando esse processo intrincado e reduzindo nossa capacidade cognitiva de imergir em um texto. “A qualidade de nossa leitura não é somente um índice da qualidade de nosso pensamento, é o melhor meio que conhecemos para abrir novos caminhos na evolução cerebral de nossa espécie. Há muito em jogo no desenvolvimento do cérebro leitor e nas rápidas mudanças que caracterizam atualmente suas sucessivas evoluções.”

A escrita – e, portanto, a leitura – é uma das mais poderosas ferramentas que a humanidade já concebeu. No também recente O Mundo da Escrita, o crítico Martin Puchner mostra como ela foi sinônimo de poder ao longo dos milênios: “Os sacerdotes indianos se recusavam a escrever as histórias sagradas por medo de perder o controle sobre elas, sentimento compartilhado pelos bardos da África Ocidental, que viveram 2 mil anos depois, quase do outro lado do mundo. Os escribas egípcios adotaram a escrita, mas tentaram mantê-la em segredo, com a esperança de reservar o poder da literatura para si mesmos.” Ele perpassa a história da civilização para evidenciar como a escrita transformou o mundo irremediavelmente – até chegar à era da internet.

Os livros de Puchner e Wolf revelam, juntos, um amplo panorama do passado e um assombroso prognóstico do futuro da leitura. E ambos compartilham uma preocupação em comum: que essa ferramenta tão valiosa esteja em risco graças ao progresso tecnológico. Não que as pessoas não estejam lendo. Wolf mostra que um americano médio lê, por dia, uma quantidade de palavras equivalente à de um romance curto. “Infelizmente, é raro que essa leitura seja contínua, constante ou concentrada”, lamenta.

As telas digitais, de acordo com Wolf, oferecem obstáculos muito mais severos que o papel para alcançar a concentração, como a iluminação, a disputa pela atenção do usuário e a poluição sinestésica. E não são apenas os leitores em formação que sofrem: ao se submeter aos próprios testes, ela identificou em si mesma uma perda na capacidade de imersão.

A autora relaciona, por meio d e outros estudos, essa defasagem na qualidade da leitura à perda da capacidade de interpretação de texto e, por conseguinte, ao empobrecimento do pensamento crítico e até à redução coletiva da empatia. As sequelas para a sociedade, segundo ela, vão muito além de crises no mercado editorial, tendo efeitos práticos – e políticos – preocupantes.

Leia a seguir a entrevista que a neurocientista Maryanne Wolf concedeu ao Aliás:

Como a leitura desatenta pode afetar fisicamente a formação do cérebro a longo prazo?

A atenção inicia o resto do que acontecerá no circuito leitor. Se você está parcialmente atento, o circuito não funciona de modo ideal. Por exemplo, há uma relação entre atenção e memória. Quando você não está atento, não consolida a informação de modo que a lembre. Se não há essa consolidação, você não tem como fazer analogias, porque o cérebro está sempre comparando o que já sabe com informações novas. Se você lê com atenção parcial, não será capaz de inferir o que é verdade e fica mais vulnerável às informações falsas, menos capaz de ler crítica e analiticamente.

Um leitor experiente também pode perder sua habilidade com o tempo?

Eu testei a mim mesma e foi realmente frustrante descobrir que eu estava me tornando cognitivamente impaciente, e com essa impaciência eu não conseguia ficar tão facilmente imersa em minha leitura. Então temos de tomar cuidado.

O que mais impacta a qualidade da leitura: a mídia em que se lê ou o ambiente ao redor?

O principal impacto é o que você está conscientemente optando por fazer. Seja em um café lotado ou no conforto da sua casa, se seu propósito é realmente ir o mais profundo que puder, essa será sua prioridade. Mas nossa atenção pode ser facilmente distraída. Quando você está em um ônibus ou no metrô, pode mergulhar numa leitura profunda, mas é menos fácil de fazê-lo.

Quando a sra. afirma que a leitura profunda é mais difícil de ser alcançada por meio de telas, também se refere a dispositivos específicos para leitura, como o Kindle e outros e-readers?

Qualquer mídia tem suas vantagens e desvantagens, mas mesmo dentro do mesmo tipo há diferenças. Por exemplo, é diferente ler em uma página da internet, em um Kindle ou em seu celular. A realidade é que mesmo em um Kindle ainda há uma desvantagem em relação ao livro físico, para além dos aspectos sinestésico e tátil do papel. Dito isso, o Kindle é preferível a uma tela comum, no sentido de não oferecer a mesma competição pela atenção, o que aumenta a qualidade da concentração. As pesquisas ainda são incipientes com o e-reader, mas mostram que ele chega muito mais próximo do tipo de leitura profunda que queremos para os leitores. Porém há menos compreensão sobre a sequência das informações. Mas independentemente da mídia em que se lê, nós temos a habilidade de ler profundamente se esse for nosso propósito.

Como podemos usar a tecnologia para melhorar nossa leitura, já que não é possível regredir?

Muitas pessoas estão compreendendo que não podemos voltar atrás no progresso tecnológico. Então eu acredito que precisamos educar nossas crianças para que elas aprendam a ler profundamente em papel, mas que sejam ensinadas a ler conscientemente em telas com o máximo de propósito. Eu creio que possamos fazer isso. E acredito que há aspectos da tela que sejam muito benéficos. Trabalho com dislexia, e é maravilhoso que algumas de nossas crianças disléxicas possam usar as características das telas para ajudá-las a ler, aumentando as fontes ou o espaçamento entre as palavras. Há também empresas de tecnologia que estão tentando usar o conhecimento de pesquisadores como eu para aprimorar suas telas. Todos nós estamos em um momento de transição. Se eu puder aconselhar as pessoas, diria para ler o máximo possível em papel até que apareçam telas que permitam mais facilmente a leitura profunda. Independente do quão dominantes as telas sejam em nossas vidas, não deixe que elas sejam tudo.

01 de julho de 2019

EM LIVRO, SOCIÓLOGA EXPLICA DOMÍNIO CONSERVADOR NA WEB!

(O Estado de S. Paulo, 30) Jen Schradie é socióloga e professora do Observatório Sociológico da Mudança, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), e lançou um livro para explicar como os grupos conservadores se beneficiam mais das redes sociais.

O livro The Revolution that Wasn’t: How Digital Activism Favors Conservatives (“A revolução que não houve: como o ativismo digital favorece os conservadores”, em tradução livre) aponta que o uso das redes sociais é desigual – e essas desigualdades são determinantes para o sucesso do ativismo digital.

Mestre por Harvard e PhD pela Universidade da Califórnia Berkeley, Schradie analisou 30 grupos políticos na Carolina do Norte, nos EUA, para identificar quais tendem a ser mais bem-sucedidos na internet. Ela questiona o quanto a internet abre portas para uma sociedade mais plural.

Segundo a pesquisadora, desigualdades, ideologias e instituições moldam a participação na nova sociedade da informação. Em 2010 e 2011, segundo ela, o foco no estudo de ativismo digital estava nos grupos de esquerda, impulsionados pela Primavera Árabe e pelo movimento Occupy Wall Street. Schradie decidiu olhar para o outro lado.

“Vejo a internet neutra, similar a outras formas de comunicação como telefone, rádio ou jornal, se você pensar na tecnologia de forma genérica. Mas havia uma ideia, num tempo mais utópico, de que a internet permitiria um movimento político social porque, diferentemente dos jornais, por exemplo, poderia ser feita por muitas pessoas para muitas pessoas, numa comunicação ao mesmo tempo. Mas, como as outras ferramentas, ela exige recursos para gerar conteúdo online”, disse Schardie, em entrevista ao Estado.

Em seu estudo, a pesquisadora identificou que os grupos com maior infraestrutura tendem a ter um ativismo digital mais persistente.

“Não é apenas uma questão de conservadores terem mais recursos financeiros, mas também de haver uma conexão entre os conservadores e a forma de organização”, afirmou Schradie. Ela menciona, por exemplo, que o sucesso do ativismo digital exige grupos com habilidade e conhecimento de uso da internet, para criar conteúdo, o que novamente remete a uma parcela da sociedade que tem mais acesso a recursos financeiros.

“Outra parte desse quebra-cabeça é que os conservadores estavam sentindo como se a mídia não os estivesse representando e estiveram muito focados nessa ideia de liberdade de informação. Já a esquerda estava preocupada em ter diversas vozes envolvidas, discutir questões trabalhistas, ambientais e de gênero”, afirmou.

Segundo Schradie, nem sempre o alcance na internet é tão amplo quando se tenta incluir várias mensagens diferentes – mais um fator que deixa os conservadores à frente. “Conservadores tendem a focar em questões de forma mais simples”, disse.

Ao analisar os gastos dos grupos, a pesquisadora indica que os grupos conservadores tendem a investir em patrocínios de postagens com artigos, enquanto grupos de esquerda preferem focar em imagens de encontros com grupos que mostrem diversidade.

Para ela, a pesquisa com foco na Carolina do Norte partiu de uma hipótese que, atualmente, tem mostrado descobertas ainda mais importantes sobre o papel dos conservadores no ativismo das redes sociais. “O uso do WhatsApp nas eleições no Brasil, por exemplo, é particularmente interessante. É uma ferramenta que muitas pessoas com menos recursos também podem usar.”