06 de setembro de 2022

SOB O REGIME DE DANIEL ORTEGA, NICARÁGUA AFUNDA NO TOTALITARISMO!

(José Fucs – O Estado de S. Paulo, 04) “Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e o Daniel Ortega não? Por que o Felipe González pode ficar 14 anos no poder? Qual é a lógica?”, disse Lula, logo após a reeleição de Ortega para o quarto mandato consecutivo, em novembro do ano passado.

Ao defender a permanência de seu amigo Ortega no cargo, porém, Lula “se esqueceu” de que Merkel e González foram reconduzidos sucessivamente aos seus postos em eleições limpas e democráticas. Enquanto isso, El Comandante, como Ortega é chamado na Nicarágua, garantiu um novo mandato num pleito manchado por acusações de fraude, contestado pela comunidade internacional e precedido pela prisão dos sete pré-candidatos da oposição, que postulavam a indicação do bloco para a disputa.

DEMOCRACIA BURGUESA. “O Daniel Ortega tem DNA stalinista”, afirmou ao Estadão o jornalista nicaraguense Carlos Chamorro, fundador e diretor do site independente Confidencial, de notícias e análises políticas. Exilado na Costa Rica há cerca de um ano, ele é irmão de Cristiana Chamorro, que pretendia concorrer à presidência, em 2021, e acabou presa por Ortega, e filho da ex-presidente Violeta Chamorro (1990-1997) e de Pedro Joaquín Chamorro, ex-publisher do jornal La Prensa, assassinado em 1978 durante a ditadura de Anastasio Somoza, cuja família governou a Nicarágua por 45 anos. “O Daniel Ortega nunca teve compromisso nem com a democracia nem com os direitos humanos. Ele quer imitar o tipo de liderança que o Fidel Castro representou em Cuba.”

Esta reportagem sobre a Nicarágua faz parte da série lançada pelo Estadão sobre o avanço da esquerda na América Latina. O caso nicaraguense revela, de forma emblemática, os riscos envolvidos na eleição de líderes esquerdistas na região, que se aproveitam das regras democráticas para chegar ao governo e depois instauram uma ditadura, perpetuando-se no poder. Foi assim na Venezuela com Hugo Chávez, que ficou 14 anos na presidência e morreu em 2013 no exercício do cargo, herdado por Nicolás Maduro, e está sendo assim com Daniel Ortega, na Nicarágua.

Ironicamente, Ortega exerce hoje um papel semelhante ao desempenhado no passado por Somoza, contra quem ele se insurgiu como um dos líderes da chamada Revolução Sandinista, que o apeou do poder em 1979. Do Ortega revolucionário só restou a retórica contra a “democracia burguesa” e o “capitalismo selvagem”, amparada em símbolos do sandinismo, que ele explora com certa habilidade. “A população não vê que o Daniel Ortega fez parte de uma luta contra outra ditadura”, diz Chamorro. “Simplesmente o vê como um ditador que está à frente de uma ditadura familiar que tem muitos pontos em comum com a dos Somoza.”

CULTO À PERSONALIDADE. Isolado pelas sanções impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia, Ortega se escora hoje, mais que nunca, em países como Cuba, Venezuela, Irã, Coreia do Norte, China e Rússia. Contra as grandes democracias ocidentais, ficou do lado de Vladimir Putin na invasão da Ucrânia pela Rússia, e expulsou a OEA (Organização dos Estados Americanos) da Nicarágua, após a entidade criticar as “eleições” realizadas em novembro de 2021.

O culto à personalidade de Ortega está presente no dia a dia da população e tornou-se parte da paisagem do país. Há cartazes e outdoors de Ortega e de sua mulher Rosario Murillo, vice-presidente e porta-voz do governo, por todo o país. Encarregada da propaganda oficial e de filtrar declarações públicas de autoridades, Murillo tem também um programa diário de rádio e TV, no qual divulga mensagens de autoexaltação do regime e de ações governamentais.

“Eles aparecem como centro de tudo, como os que decidem o destino da população”, afirma a socióloga nicaraguense Elvira Cuadra Lira, pesquisadora associada do Instituto de Estudos Estratégicos e de Políticas Públicas (Ieepp), hoje também vivendo no exílio, na Costa Rica. “Isso tem a ver com as personalidades megalomaníacas que eles têm e com suas vocações autoritárias.”

A centralização do poder e o fechamento do regime ampliaram o espaço para a apropriação de dinheiro público pelo casal Ortega-Murillo. De acordo com informações do site Confidencial, baseadas em documentos de registro público e do Instituto Nicaraguense de Seguridade Social (INSS), Ortega usou recursos do fundo da cooperação venezuelana, que chegaram a US$ 5 bilhões em dez anos, para erguer um império empresarial.

Como revelou a apuração, ele detém o controle de pelo menos 22 empresas nas áreas de petróleo e energia, imóveis, comunicações e publicidade, por meio de familiares e “testas de ferro” (veja o quadro ao lado). “Os Ortega se tornaram milionários”, diz o ex-ministro da Educação na gestão de Violeta Chamorro, Humberto Belli, que vive nos Estados Unidos desde junho de 2021.

JULGAMENTOS DE FACHADA. A escalada autoritária, que já vinha se insinuando por meio do controle da Assembleia Nacional e do “aparelhamento” da Suprema Corte, do Tribunal Eleitoral, da Procuradoria, do Exército e da polícia, intensificou-se após os protestos de 2018 contra a reforma da previdência proposta por Ortega, que deixaram um saldo de 355 mortos, segundo a Comissão Interamericana de Diretos Humanos. “O que aconteceu em 2018 determinou a evolução de uma ditadura institucional para uma ditadura sangrenta”, afirma Carlos Chamorro.

A imprensa independente foi silenciada. Os partidos de oposição tiveram os registros cassados. Seus líderes foram presos e condenados em julgamentos de fachada, feitos na própria prisão. Hoje, há 190 presos políticos no país, de acordo com entidades de defesa dos direitos humanos.

Num movimento que já levou o papa Francisco a expressar sua “preocupação” com a situação, o regime desencadeou também uma onda repressiva contra autoridades da Igreja Católica, que culminou com a prisão do bispo Rolando Álvarez e de seus auxiliares, em meados de agosto, depois de eles ficarem duas semanas confinados no arcebispado de Matagualpa (a 131 km de Manágua). “O regime está tentando silenciar a Igreja porque ela tem sido a única voz independente na Nicarágua”, diz Belli.

Nem mesmo ex-companheiros de Ortega – que deixaram o partido da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e fundaram o Movimento de Renovação Sandinista (MRS), hoje rebatizado de União Democráti

ca Renovadora (Unamos) – escaparam das garras do regime.

O general aposentado Hugo Torres, um dos líderes da guerrilha sandinista , morreu na prisão em fevereiro, enquanto aguardava “julgamento”. Num vídeo gravado em junho de 2021, antes de ser detido, ele declarou: “Há 46 anos, arrisquei a vida para tirar Daniel Ortega e outros políticoscolegas da prisão. Hoje, tenho 73 anos. Nesta fase da vida, nunca pensei que estaria lutando contra outra ditadura mais brutal, mais inescrupulosa e mais autocrática que a de Somoza”.

FAKE NEWS. Para amparar suas ações autoritárias, Ortega atuou para aprovar uma série de leis que cerceiam os direitos e as liberdades desde 2018. Uma delas, aprovada em 2020 pela Assembleia Nacional, criminalizou a divulgação de conteúdo que o governo considera como fake news. O dispositivo vem sendo usado para embasar processos contra críticos de Ortega e mostra os riscos de se adotar medidas do gênero, que alguns defendem no Brasil, para conceder às autoridades o poder de definir o que é ou não informação falsa.

Antes de sua posse, em 2007, Ortega já trabalhava para viabilizar seu retorno ao poder, depois de duas tentativas frustradas, em 1996 e 2001. Graças a um acordo firmado com o então presidente Arnoldo Alemán, do Partido Liberal Constitucional (PLC), de centro-direita, ele conseguiu aprovar uma alteração na legislação eleitoral feita sob medida para ele.

Com a mudança, o candidato que alcançasse 35% dos votos no primeiro turno das eleições, justamente o teto de Ortega, seria declarado vencedor. Só assim, em 2006, auxiliado também pelo “racha” da oposição, ele conseguiu, enfim, ganhar o pleito.

Cumprida essa etapa, Ortega passou a trabalhar para permanecer no cargo por tempo indeterminado. Em 2009, conseguiu com que os magistrados da Suprema Corte derrubassem o dispositivo que proibia a reeleição, viabilizando sua candidatura nas eleições de 2011. Em 2014, conseguiu acabar com o limite à reeleição, pavimentando o caminho para disputar o pleito de 2016.

Como se pode observar, mesmo tomando medidas que parecem respeitar as regras do jogo, Ortega minou a democracia e deu um jeito de ficar no poder até quando quiser ou puder. A melhor vacina contra essa chaga, que no Brasil também tem seus adeptos, é rechaçar candidatos que se identifiquem com ditaduras como as da Nicarágua, de Cuba e da Venezuela. Depois, como se vê, não adianta chorar.