09 de julho de 2021

O DRAGÃO E A POMBA!

(Paulo Leme – O Estado de S. Paulo, 04) Desde 1993, o Fed conseguiu reduzir a taxa de inflação de volta ou abaixo de 2%. Muitos investidores americanos nunca operaram em um ambiente de inflação e, portanto, não têm o conhecimento técnico sobre as causas e os efeitos da dinâmica inflacionária. Por um lado, isso é bom, porque ancora as expectativas de inflação. Por outro lado, é ruim, porque os investidores não sabem antecipar um ciclo inflacionário.

Os EUA têm um histórico de inflação baixa. As únicas exceções são as quatro guerras (civil, as duas guerras mundiais e Vietnã), quando déficits fiscais aumentaram a inflação (abaixo de 20% ao ano).

O ciclo inflacionário da guerra do Vietnã começou em 1968 e durou 16 anos, gerando um pico de 13,5% em 1980 e uma média de 7,1% ao ano. As cinco causas deste ciclo são: (a) o aumento excessivo do déficit fiscal causado pelos gastos com a guerra; (b) a compra da dívida do Tesouro pelo Fed; (c) a monetização desta dívida através da expansão da base monetária; (d) os dois choques de aumentos do preço do petróleo; e (e) a espiral preços-salários viabilizada pelo poder sindical. Os dois agravantes foram a desancoragem das expectativas de inflação e a inércia.

As seis lições deste ciclo são: (a) um choque temporário de preços só é inflacionário quando o governo acomoda o choque com políticas fiscais e monetárias expansionistas; (b) quando o governo aperta a política macroeconômica, ele acaba afrouxando porque não aguenta o custo político do desemprego; (c) assim que afrouxava, a inflação subia mais ainda; (d) os economistas não sabem qual é o limiar da desancoragem das expectativas de inflação; (e) os controles de preços só aumentam os custos da inflação; e (f) o custo pago para reduzir a inflação é maior do que os ganhos efêmeros gerado por programas de estímulo econômico.

Paul Volcker foi o presidente do Fed que derrotou a inflação. Ele implementou um arrocho monetário tão brutal que levou a economia mundial à recessão e à crise da dívida externa dos países emergentes em 1981. Mas só a partir de 1993 que a inflação caiu abaixo de 3%.

Este preâmbulo nos ajuda a traçar cenários para a inflação. A pandemia e a falta de investimentos causaram um choque de oferta longo e intenso de matérias-primas, aumentando a inflação nos EUA.

Em 2021, a taxa de inflação anualizada medida pelo índice de preços ao consumidor (atacado) triplicou para 6,7% (10,7%). O Fed postula a tese que este aumento é temporário e que, em breve, a inflação voltará à meta de 2,5%. O Fed tem tanta credibilidade que o mercado comprou a tese: a inflação implícita nos títulos do Tesouro de 10 anos está abaixo de 2,5%.

Hoje, a economia americana é estruturalmente diferente daquela dos anos 70. O choque de oferta de matérias-primas é temporário, mas ele vai durar mais ano ainda. O Fed está cutucando o dragão da inflação com vara curta, subestimando o risco de que a inflação será muito mais alta e por um período mais longo do que ele está prevendo.

Hoje, quatro das cinco causas da inflação registrada nos anos 70 estão presentes. O setor privado voltou agastar e, portanto, o governo não deveria seguir aumentando os gastos sem ter as fontes de receita. O governo está gerando um excesso de demanda que, dado que a oferta agregada é inelástica no curto prazo, será inflacionário.

O Fed tem de parar de comprar ativos: o mercado de renda fixa funciona normalmente, e a intervenção do Fed gera taxas reais de juros negativos. No primeiro semestre de 2021, o Fed expandiu a base monetária em US$1 trilhão: ele compra dos bancos títulos do Tesouro e os paga com reservas bancárias.

Hoje, o Fed detém 25% do estoque da dívida do Tesouro americano e 21% dos ativos lastreados por hipotecas. Como não há demanda por crédito, os bancos acumulam um excesso de reservas bancárias.

Para evitar que a taxa Fed funds fique negativa, o Fed retira estas reservas através de operações compromissadas: ele compra a liquidez dos bancos e lhes dá como garantia títulos do Tesouro. O aumento do saldo das compromissadas é comparável ao aumento da base monetária, o que é patológico.

O Fed está monetizando a expansão da dívida pública, que é um dos mecanismos de transmissão dos déficits fiscais à inflação. O excesso de oferta monetária é absorvido por um excesso de demanda por ativos financeiros, imóveis e bens e serviços, aumentando os preços. Como o governo vai seguir gastando sem aumentar impostos, eles serão financiados por emissão de dívida e base monetária.

Hoje, o equivalente ao choque do petróleo é a explosão dos preços de matérias-primas: desde o início da pandemia, o índice de preços de commodities CRB dobrou. Outros preços sofreram aumentos de 20% a até 100%. O próximo item a explodir serão os aluguéis.

Até o momento, a inflação ainda não gerou uma alta descontrolada dos salários (eles estão subindo 3% ao ano). No entanto, a pandemia e os programas de auxílio-desemprego geraram escassez de mão de obra: dado os salários atuais, alguns trabalhadores preferem ficar em casa. Se o governo seguir pressionando a demanda agregada e a procura por trabalho, os salários subirão. No entanto, à diferença dos anos setenta, hoje os sindicatos não têm o mesmo poder de barganha para pleitear aumentos contínuos de salários.

O último ingrediente que falta para deflagrar um processo inflacionário é a desancoragem das expectativas, o que está prestes a ocorrer. Quando o mercado perceber a gravidade do problema, as expectativas de inflação vão decolar. O mercado aumentará o prêmio de risco por inflação e antecipará o ciclo de alta de juros pelo Fed, deslocando para cima a curva de juros e derrubando o preço das ações.

O Fed terá de antecipar o ciclo e aumentar a taxa juros a um nível acima do que teria sido necessário caso ele já tivesse tomado medidas contracionistas. Estes aumentos fortes e inesperados da taxa de juros geralmente levam a economia a uma recessão e a um “bear market”.

A conjuntura econômica é excelente, e as perspectivas para os mercados financeiros são boas. Ainda há tempo para que o Fed e o governo encerrem o ciclo de estímulos monetários e fiscais, já que são desnecessários e nocivos à economia.

Seria ideal que o Fed iniciasse em agosto o fim do programa de compras de ativos. O governo deveria respeitar os princípios de um orçamento equilibrado e da boa gestão da dívida pública. Como aprendemos a duras penas no Brasil, um banco central jamais deve monetizar parte da dívida pública para financiar gastos públicos porque acorda o dragão e termina em inflação.