10 de dezembro de 2021

CARTAS EM TUPI TRADUZIDAS PELA 1ª VEZ MOSTRAM VISÃO INDÍGENA SOBRE FORMAÇÃO DO PAÍS!

(Reinaldo José Lopes – Folha de SP, 04) “Aîmondó benhe xe nhe’enga”, ou, em português, “Envio de novo minhas palavras”: assim começa um dos documentos mais preciosos do Brasil colonial, parte de um conjunto de seis cartas no idioma tupi escritas entre agosto e outubro de 1645.

A pequena coleção de mensagens, que acaba de ser integralmente traduzida pela primeira vez, é o único registro de indígenas colocando sua própria língua no papel durante os primeiros séculos da colonização do país.

Os textos são, além disso, testemunhos de uma guerra civil que dilacerou tanto o Nordeste como um todo quanto a tribo dos potiguaras, cujo idioma materno era o tupi. Essa etnia vivia em um território litorâneo que ia da Paraíba ao Ceará, e pertenciam ao grupo os autores e os destinatários das missivas.

As cartas foram traduzidas por Eduardo Navarro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e um dos principais especialistas em tupi antigo do país.

A pesquisa de Navarro sobre os textos deve ser publicada em breve em artigo no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. “Graças a Deus terminei”, brinca ele. “Creio que dei conta de resolver 99% dos desafios dos textos, se não todos.”

As cartas foram escritas durante a Insurreição Pernambucana, revolta organizada pelos colonos de origem portuguesa no Nordeste contra a ocupação holandesa da maior parte do litoral da região, que já durava 15 anos.

Ao longo desse período, alguns dos chefes potiguaras tinham se aliado à Holanda e se convertido ao protestantismo, enquanto outros permaneciam fiéis a Portugal e à Igreja Católica. As mensagens documentam a tentativa do segundo grupo, que contava entre seus líderes o militar Antônio Felipe Camarão (1600-1648), de convencer os demais potiguaras a abandonar a aliança com os holandeses.

Os documentos foram preservados pela Companhia das Índias Ocidentais, espécie de multinacional do comércio holandês que se apossara do Nordeste. Armazenadas na Biblioteca Nacional de Haia, as cartas são conhecidas dos historiadores brasileiros desde o fim do século 19, mas só uma delas já tinha sido traduzida integralmente até hoje.

Parte do mistério tem a ver com o fato de que, durante muito tempo, o conhecimento sobre o tupi antigo no Brasil tinha sido precário, com pouco acesso aos documentos a respeito da língua produzidos na época colonial (em geral por missionários jesuítas, como José de Anchieta) e poucos estudos sistemáticos, conta Navarro, ele próprio autor do “Dicionário de Tupi Antigo”.

“A ortografia também era instável, já que era uma língua usada quase sempre oralmente, no cotidiano. Algumas palavras que deveriam ser escritas juntas estão separadas, e vice-versa. O lado paleográfico [os maneirismos da escrita da época, como letra, abreviações e pontuação] também oferece algumas dificuldades”, explica.

Outro desafio é que os autores das cartas —além de Felipe Camarão, a lista inclui Simão Soares, Diogo da Costa e Diogo Pinheiro Camarão— não devem ter sido alfabetizados em tupi, mas provavelmente em português.

Isso significa que, na hora de escrever, eles parecem ter registrado seu idioma materno “de ouvido”, usando uma ortografia puramente fonética (imagine alguém que só conhece a forma falada do português escrevendo “táxi” como “tácsi” ou “táquissi”, por exemplo).

Por que, então, adotar esse método improvisado? “Porque era a língua deles, eles pensavam em tupi”, diz Navarro. Além disso, os destinatários das mensagens, como Pedro Poti, tinham sido alfabetizados em holandês (Poti chegou a passar cinco anos na Holanda antes de voltar para o Brasil com a frota que conquistou o Nordeste).

Não adiantaria, portanto, escrever para eles em português, mas o tupi continuava a ser um meio comum de comunicação entre os dois lados da guerra civil potiguara. Ironicamente, as respostas de Pedro Poti e dos demais potiguaras aliados da Holanda não foram preservadas nos arquivos portugueses.

Em suas mensagens, não por acaso, Felipe Camarão tenta apelar para o senso de identidade comum entre todos os potiguaras. “Por que faço guerra com gente de nosso sangue, se vocês são os verdadeiros habitantes desta terra? Será que falta compaixão para com nossa gente?”, questiona ele.

“Nossas antigas terras, nossos velhos ritos, nossos parentes paraibanos, os de Cupaguaó, os de Uruburema, os de Jareroí, os de Guiratiamim, todos os antigos filhos dos habitantes da caatinga, tudo e todos estão sob as leis dos insensatos holandeses, assim como seu corpo e sua alma também estão”, declara Camarão em outra carta. “Eu novamente farei vocês estarem bem, perfeitamente de acordo com seu modo de vida de antigamente”, promete.

Além de permitir enxergar os detalhes do cenário histórico pela perspectiva dos indígenas, as cartas também são uma janela para entender a evolução linguística do tupi.

Um exemplo é o uso do gerúndio em construções equivalentes a “estou falando” em português. Navarro conta que o padrão original do tupi era inverter essa lógica. Dizia-se “falo estando”, com o mesmo significado de “estou falando”.

Nas cartas, porém, aparece uma construção seguindo o padrão da língua portuguesa, possivelmente por influência do idioma europeu.