29 de março de 2019

CESAR MAIA EXPLICA COMO O FILHO RODRIGO DOBROU O GOVERNO!

(Revista Época, 28) Ex-prefeito do Rio de Janeiro diz que Bolsonaro é “lider sindical de policiais e militares” e que filhos causam curto-circuito.

Na última terça-feira, Brasília assistiu a uma demonstração de força dos deputados federais insatisfeitos com os rumos do governo. Foi aprovada, em votação-relâmpago, uma proposta de emenda constitucional que engessa ainda mais o poder de gasto do Executivo, na contramão de tudo aquilo que prega a equipe econômica do ministro Paulo Guedes a favor da desvinculação das receitas. Tratou-se de mais um capítulo da crise instaurada nas últimas semanas entre Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. “Ele está brincando de presidir o país, e está na hora de parar a brincadeira”, atacou Maia.

Horas antes e a quilômetros de distância da capital, o pai do líder da retaliação parlamentar se preparava para entrar em outra sessão que poderia trazer problemas para um chefe de Executivo. “Me acompanhe ao plenário que você verá uma surpresa”, provocou o vereador Cesar Maia (DEM-RJ) depois de discorrer durante quase duas horas para ÉPOCA sobre o “amadorismo dos atuais donos do poder”. Naquele dia, por pouco — mais precisamente por apenas um voto — a Câmara Municipal não aprovara mudanças na legislação sobre impeachment, em um claro recado para o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella.

Aos 73 anos e depois de ter sido prefeito do Rio por três mandatos (1993-1997 e 2001-2009), Cesar Maia dispensa o dia a dia da política que o filho adora. Enquanto Rodrigo Maia não larga as conversas partidárias por WhatsApp nem em encontros familiares no fim de semana, o barato de Cesar é fazer análises — muitas delas contrariadas pelos fatos, mas no mínimo divertidas. São análises com muitas referências político-culturais. Durante a tarde de terça, por exemplo, em uma minúscula sala chinfrim do Palácio Pedro Ernesto, citou de François Mitterrand a Oscar Wilde. O vereador envia diariamente uma tradicional newsletter, chamada de ex-blog, para quem se cadastrar em seu site. Até o momento, contudo, ainda não tinha falado sobre as troca de farpas entre Maia e o presidente:

“Bolsonaro não me dá raiva, de verdade. Estamos em outro mundo. Sou mais acadêmico, ele tem outro estilo, mais ligado ao Exército. Nas vezes que falei sobre isso com o Rodrigo, eu disse: ‘Esquece isso, não dá bola para isso, não’. Imagina, se preocupar com Carluxo, pelo amor de Deus”, esnobou Cesar, quase blasé, em referência ao apelido de Carlos Bolsonaro, que danou-se a desancar o presidente da Câmara pelas redes sociais nos últimos dias.

A crise de Maia com o governo começou há duas semanas, a partir do congelamento da tramitação do pacote anticrime enviado ao Congresso pelo ministro Sergio Moro. “Desse jeito, o Paulo Guedes pode levar pancada. Se esses dois projetos andarem juntos, não vai ser votada a Previdência. O tema do Moro é de enorme adesão popular, o outro não”, disse Cesar, em defesa da atitude do filho de priorizar o tema econômico.

O clima azedou de vez quando o ex-juiz da Lava Jato enviou mensagens de celular para o presidente da Câmara reclamando de seu projeto ficar em segundo plano. Maia chamou Moro de “funcionário de Bolsonaro” e falou que ele estava “confundindo as bolas”. Chamou ainda a proposta de “copia e cola” do projeto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Dias depois, foi a vez de Moro alfinetá-lo com indiretas: “Talvez alguns entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro não aguenta mais”, ironizou.

Na semana passada, uma nova fase da Lava Jato colocou ainda mais lenha na fogueira. Casado com a mãe da mulher de Maia, o ex-ministro Moreira Franco foi preso preventivamente com o ex-presidente Michel Temer, acusado de corrupção. Não demorou muito para Carlos Bolsonaro, o filho-vereador-tuiteiro do presidente, fazer das suas na internet: “Por que o presidente da Câmara anda tão nervoso?”, questionou nas redes, insinuando que o deputado estaria com receio de investigações da Polícia Federal.

“Analista político frequente nas redes, Cesar Maia vê governo fraco na articulação política e cometendo equívocos na relação com o Congresso. A velha política vence sempre”

Maia, então, chamou os principais jornais do país e anunciou que estava fora da articulação política pela reforma da Previdência. Sem parecer se incomodar, Bolsonaro elevou o sarrafo da crise com um festival de ironias comparando o presidente da Câmara a uma namorada querendo terminar um relacionamento. “Bolsonaro não é um personagem capaz de segurar a liderança desse processo. Agora, será que ele faz esse raciocínio e dá importância a isso? Foi ao cinema nesta semana com a esposa… No fundo, faz isso porque sabe que pode ser aplaudido lá. Ele é um líder sindical dos policiais e dos militares, e assim continua se comportando”, analisou Cesar.

O pai de Rodrigo divide em três os núcleos do governo. O econômico, comandado por Guedes; o da justiça, simbolizado por Moro; e o administrativo, com os militares à frente. Mas e os filhos do presidente, também não são um polo de poder? “São o quarto vetor. O vetor dispersivo. Geram curto-circuito, atrapalham, mas nada grave. Um fala uma besteira, outro fala outra, o Olavo (de Carvalho), que também é desse vetor, fala mais uma… Mas não é o principal”, disse. Ponderei que um filho do presidente, “o Carluxo”, como Cesar o chamou, já havia derrubado o ministro Gustavo Bebianno após uma desavença nas redes sociais. Fui rebatido com uma pergunta: “Será que foi por causa do Carlos? Ou ele foi apenas vocalizador da vontade do pai? Como disse, não vejo organicidade nos filhos, são pessoas querendo aparecer apenas, não é relevante nada disso. Por que perder tempo com eles?”, esnobou de novo.

Erros, no entanto, Cesar já vê vários no governo. Dizer que o golpe militar não foi golpe, quando é óbvio que foi, é um deles, não só do ponto de vista do conceito, como para a própria popularidade de Bolsonaro. “Estudei durante muito tempo a ascensão da nova direita. O golpe de 1964 não é um tema popular, ele tinha de se distanciar disso. É um erro e a consequência virá depois”, disse, apesar de Bolsonaro ter ganho a eleição já defendendo gente do tipo do coronel Brilhante Ustra. “Ele venceu por causa da Lava Jato. Não foi por causa de evangélicos nem da violência, esquece.”

Questiono novamente se não basta resolver a articulação política para o governo andar. E quem recebe críticas, desta vez, é o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que trabalhou pela derrota de Maia na eleição para a presidência da Câmara. “Que articulação política? O Onyx é apenas um representante da Taurus no Congresso que espertamente tornou-se articulador da proposta de dez medidas contra a corrupção.” Cesar não se alinha aos alarmistas que afirmam que o governo pode não durar: “Mas como é que cairia? O tempo não resolve isso tão rapidamente. O PT ficou 13 anos no poder. O que pode acontecer é a crise econômica ganhar uma profundidade”, disse. No dia seguinte, a pedido de ÉPOCA, Cesar comentou as respostas que o Congresso deu durante a semana para Bolsonaro. “Os partidos estão desgastados, mas não confunda com o Congresso como instituição. Ele vai se afirmar sempre.”

28 de março de 2019

A NOVA AMÉRICA LATINA, POR CASTELLS!

(Lauro Jardim – O Globo, 25) Deve sair ainda esse ano no Brasil “La nueva America Latina”, o novo livro do catalão Manuel Castells sobre o continente e seus caminhos.

Escrita em coautoria com o sociólogo boliviano Fernando Calderon, a obra é considerada por Castells o trabalho de sua vida sobre a região.

Os direitos foram comprados pela Zahar, que lança, em junho, “Outra economia é possível”, também escrita por Castells.

Emprego no Rio de Janeiro em fevereiro.

* O Rio de Janeiro teve saldo de 9.753 postos em fevereiro de 2019. Foi o melhor saldo para o mês de fevereiro desde 2014.

* No mês de fevereiro de 2019 o estado do Rio de Janeiro teve o 6º melhor saldo entre as Unidades da Federação, com 9.753 postos, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED).

* Porém na análise da região Sudeste o Rio de Janeiro ficou com o terceiro melhor saldo, pois São Paulo e Minas Gerais foram respectivamente o primeiro e o segundo melhores saldos entre os estados. Já o Espírito Santo foi o 9º melhor saldo do país.

* O setor de Serviços puxou o saldo do Rio de Janeiro para cima com saldo de 8.263 postos, seguido pela Construção Civil com 1.837 postos.

* O setor que teve pior desempenho, assim como em janeiro, foi o do Comércio com -1.209 postos.

27 de março de 2019

O ENIGMA POPULISTA!

(O Estado de S. Paulo, 24) Descentralizar o poder é importante para dar às pessoas meios legais de resistir e de praticar desobediência civil dentro do sistema político. Jan-Werner Mueller, cientista político alemão e autor de ‘What Is Populism?’.

Referência no tema, o cientista político alemão Jan-Werner Mueller fala sobre como combater a ascensão de lideranças autoritárias.

O cientista político alemão Jan-Werner Mueller tornou-se uma referência no debate sobre a ascensão de líderes políticos populistas em vários países depois de publicar, em 2016, ano da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, o livro What Is Populism? (O Que É Populismo?). Ele veio para o Brasil a convite da Embaixada da Alemanha para uma série de conferências e debates. Ele deu entrevista ao Estado na sexta-feira, 15, após palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso. Nela, discutiu suas ideias a respeito de populismo, democracia, imprensa e redes sociais num momento em que há uma série de desafios às formas tradicionais de democracia representativa no mundo. A seguir, os principais trechos da entrevista.

P: Como distinguir um líder populista em ação? O presidente Jair Bolsonaro pode ser qualificado como um populista?

R: Sou relutante em ser uma espécie de teórico com cartão de milhagem, que viaja de um país a outro e diz que isso é assim, aquilo funciona dessa forma, quando, obviamente, as pessoas no Brasil conhecem muito mais as circunstâncias locais. O que eu posso fazer é dar uma moldura e alguns indicadores para que as pessoas possam decidir por si próprias. No meu ponto de vista, um populista é alguém que diz: “Eu e apenas eu represento o povo” – ou o “verdadeiro povo”, como tipicamente, gostam de dizer. Outros políticos são considerados por eles como ilegítimos, corruptos – e todos os cidadãos que não concordam com os populistas são basicamente excluídos do “verdadeiro povo”. Outra forma de distinguir um líder populista é que eles promovem guerras culturais. Há uma diferença entre populismo e nacionalismo. Você pode ser um nacionalista e dizer: “América em primeiro lugar” ou “Brasil acima de todos”, mas não necessariamente proclamar que “apenas eu represento o povo”. É importante ver a diferença, embora muitos populistas sejam nacionalistas. Como eles têm de proclamar quem é o “verdadeiro povo”, o nacionalismo é a melhor resposta para dizer que um bom americano é isso, um bom alemão é aquilo. Um último ponto é que os populistas, frequentemente, não têm uma política externa previsível. Há uma hostilidade em relação às organizações internacionais. Quando eles chegam ao poder, precisam dar continuidade ao discurso anti-elite – e eles recorrem ao clichê de que existe uma “sombria” elite internacional que age nos bastidores contra os interesses do “verdadeiro povo”. Por isso, frequentemente, mas nem sempre, partilham de um discurso anti-semita.

P: Em conferência, o senhor afirmou que os líderes populistas desenvolveram uma arte de governar. Da mesma forma que Trump, Bolsonaro gosta de atacar a imprensa pelo Twitter. O uso das redes contra a imprensa faz parte desse ‘kit’ populista?

R: O que alguns desses líderes tentam alcançar é algo que paradoxalmente pode ser chamado de representação direta, uma conexão com os cidadãos, sem a mediação da imprensa profissional e dos partidos políticos. Em alguns casos, essa é uma promessa explícita. Na Itália, Beppe Grillo (comediante e blogueiro, fundador do Movimento Cinco Estrelas, hoje o maior partido da Itália) dizia que não só os políticos são corruptos, mas os jornalistas também. Ele dizia: “Você não pode confiar em ninguém, fale comigo diretamente que eu vou amplificar o que está acontecendo por meio do meu blog”. Essa é uma espécie de técnica, que acaba sendo copiada por outros. E qual pode ser a consequência disso? Tanto os partidos como a imprensa introduzem um certo grau de pluralismo na forma como as pessoas se relacionam com o sistema político. Obviamente, as pessoas têm suas identificações, mas elas se deparam com outros pontos de vista, ideias e formas de pensar quando há essa mediação. Esse pluralismo desaparece quando você tem uma relação de um para um. Outro perigo do “microtargeting” (a distribuição de mensagem, por meio das redes sociais, para públicos ultrasegmentados) é que ele pode virar uma forma de constantemente reforçar mensagens nas quais o povo deve acreditar. Uma definição básica de democracia é que as pessoas devem ter o direito de mudar de ideia e punir o governo para tirá-lo do poder. Mesmo essa definição básica pode estar em perigo se você pensar que existem hoje instrumentos para que as pessoas não recebam informações confiáveis e decidam por elas próprias.

P: Como a imprensa tradicional deve reagir quando é hostilizada dessa forma?

R: Desde o século 19, nós sabemos que há duas instituições que são cruciais para uma democracia representativa funcionar: partidos políticos e mídia profissional. Ambos estão em crise. A imprensa não deve cair na armadilha de pensar ou mesmo dizer que representa a oposição. A oposição toma assento no Parlamento. Essa é a armadilha que Trump armou para alguns órgãos de imprensa nos EUA e que pode ser muito eficaz porque coincide com a crise da mídia. Alguns veículos tendem a responder: “Nós estamos aqui para salvar a democracia”, e assim passam a se vender como se fossem partidários. É melhor simplesmente dizer: “Não somos a oposição, estamos aqui para fazer o melhor jornalismo investigativo possível nas atuais circunstâncias, vamos cobrir o que realmente acontece”. Além disso, há uma outra armadilha: o ultraje e o escândalo vendem. É muito mais fácil fazer um artigo com muitas opiniões fortes, que causam ultraje, do que fazer uma investigação de dois meses, o que, obviamente, é muito caro e difícil. Uma coisa estranha que está acontecendo na mídia de países ocidentais é que algumas organizações estão se tornando clubes para pessoas com determinadas opiniões, como se fossem organizações partidárias com determinada filiação. Isso precisa de uma reflexão para saber se é algo de bom a ser feito.

P: A democracia liberal está em perigo por causa da ascensão desses líderes populistas?

R: Especialmente após a eleição de Trump, havia uma tendência a se homogeneizar todos os casos, mas isso é um engano. As pessoas diziam que ocorreria nos Estados Unidos um processo igual ao que aconteceu na Turquia e na Hungria, mas há diferenças importantes. Para chegar ao poder, os populistas partilham certas formas de agir. Mas para serem bem-sucedidos no governo, as circunstâncias locais pesam. Essa é a resposta pedante. Talvez a resposta menos pedante seja dizer que o perigo é aumentado pelo fato de que alguns desses atores podem aprender um com o outro. Depois do fim da Guerra Fria, houve uma ilusão de que as democracias têm uma vantagem epistemológica em relação aos regimes autoritários, porque as democracias aprendem com os erros, enquanto os sistemas autoritários seriam estúpidos. Todos terminariam como a União Soviética. Nós estamos aprendendo que essa “internacional” de líderes populistas autoritários gerou um conhecimento de governar que pode ser aprendido. Essas técnicas de como reduzir o pluralismo da mídia, de como intimidar a sociedade civil podem ser desenvolvidas, sem necessariamente reproduzir as imagens das ditaduras do século 20 que nós conhecemos. Uma coisa que precisa ser dita é: sim, nós, os democratas, aprendemos com a história. Mas os autoritários também. Eles também aprenderam a exercer um grande controle sobre as sociedades sem ser opressores. Há pessoas que viajam para a Hungria e voltam de lá, dizendo: “Está tudo bem, não parece que estamos numa espécie de país fascista”.

P: Quão importante é o papel de instituições sólidas para conter o impulso autoritário dos populistas?

R: As instituições importam muito, é claro – e elas não são apenas as instituições tradicionais como o sistema judiciário e os partidos políticos, mas também incluem a mídia e organizações da sociedade civil. O que importa também é o nível de centralização ou descentralização do poder. Em alguns dos países, o poder é muito centralizado. Se você ganha controle do Parlamento, do Executivo e da Corte, e não há outras instâncias de poderes regionais, é muito difícil resistir. Houve um tempo em que Trump podia ignorar os democratas no Congresso, podia ignorar os protestos nas ruas, mas se a Califórnia dissesse que não iria implementar tal política, ele não podia ignorar, porque o governo federal não tem recursos para executar certas políticas sozinho. Na Alemanha, temos um dispositivo na Constituição que diz que certos direitos fundamentais e o federalismo não podem ser abolidos. Antigamente, achava-se que o federalismo não era tão importante, mas agora percebemos como descentralizar o poder é importante para dar às pessoas meios legais de resistir e de praticar a desobediência civil dentro do sistema político.

P: Como evitar que populistas se transformem em líderes autoritários que ameaçam a democracia?

R: É preciso proteger as instituições. É preciso ter uma oposição que saiba comunicar bem quais são as discordâncias em termos de políticas que podem ser consideradas ordinárias das discordâncias de natureza constitucional. Os populistas procuram mudar as regras do jogo para, caso ele produza resultados que não os satisfazem, possam dizer que essas regras são ilegítimas. É importante, em algumas circunstâncias, subsidiar ou mudar a forma de regulação da mídia para que informação confiável continue a ser produzida. Por último, é importante sempre fazer uma distinção entre os populistas e os eleitores, porque sabemos muito pouco a respeito desses eleitores para fazer, do alto, severas condenações a eles. Sim, alguns deles talvez sejam racistas. Sim, alguns deles são convictos anti-pluralistas. Mas há muitos sobre os quais nada sabemos.

P: Qual foi o peso das redes sociais na ascensão desses líderes populistas?

R: É uma afirmação muito plausível dizer que elas facilitaram a sugestão de representação direta feita pelos líderes populistas. Mas havia populismo antes das redes sociais. Essa experiência de conexão direta não é totalmente nova. Antigamente, você podia ir à assembleia de um partido e, por quatro horas, todo mundo ficava saudando o grande líder. Ao final, você saía da assembleia com essa sensação de conexão direta. Mas essa era uma experiência extraordinária. Agora, é uma experiência que você pode sentir 24 horas por dia pelo Twitter. Talvez essa mudança quantitativa tenha levado também a uma mudança qualitativa, mas há muitos outros fatores. A política ainda é uma questão de indivíduos fazendo escolhas. A história na Europa Ocidental e nos Estados Unidos mostra que nenhum líder populista de direita, até agora, ascendeu sem a colaboração de elites conservadoras bem estabelecidas. Relativar o peso das mídias sociais é importante para cobrar a responsabilidade dessas elites que conscientemente optaram por esse caminho.

26 de março de 2019

TUÍTES, BÍBLIAS E BALAS PARA REVOLUCIONAR MENTES!

(Angela Alonso, professora de Sociologia da USP – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 24) “Em nome da Santíssima Trindade” —assim se abre a primeira Constituição brasileira, de 1824. Seu miolo continha uma religião de Estado. Visava menos a exclusão inquisitorial que operar como meio de controle social.

A Igreja Católica tocava os serviços estatais de registrar quem nascia, casava, morria. Votava-se em paróquias e se moldavam corações e mentes cristãos em capelas e escolas. Os religiosos, mais que Deus, estavam em toda parte, a política incluída.

Ainda no Segundo Reinado, o tema foi à berlinda. Secularizar o Estado virou bordão em discursos parlamentares, artigos de imprensa e projetos de lei de modernizadores.

Um argumento caracterizava o Estado teocrático como típico de tempos de obscurantismo, a Idade Média, e advertia que a sociedade moderna se alicerçava na ciência, em vez de na fé revelada. O ministro da Educação conhece o debate: no mestrado estudou alguns de seus participantes positivistas.

Outra linha era a liberal clássica, da liberdade de consciência. A tolerância à religião dos outros seria a única maneira de se proteger da imposição da crença alheia. Liberal —e agora autodeclarado evolucionista— o ministro da Economia deveria concordar com o postulado.

O Império caiu, os dois raciocínios seguem de pé.

A República inscreveu em sua Constituição inaugural a laicidade do Estado, deixando a religião como decisão de foro íntimo. A vigente, de 1988, registrou em seu preâmbulo a expressão “sob a proteção de Deus”, mas sem impor a ninguém o exercício de uma fé particular, menos ainda o proselitismo religioso por meio de política pública.

A anunciada número dois da pasta da Educação disso diverge do texto constitucional. Em entrevista à TV Band, em 2014, Iolene Maria de Lima explicou sua pedagogia: “uma educação baseada na palavra de Deus, […] onde a geografia, a história, a matemática vai [sic] ser vista na ótica de Deus […]. O aluno vai aprender que o autor da história é Deus, o realizador da geografia é Deus. Deus fez as planícies […], Deus fez o clima, […] o maior matemático foi Deus”. Seu objetivo era ver “toda a disciplina do currículo escolar organizada da ótica das escrituras”.

Lima dirigia então o colégio Inspire, em São José dos Campos. Sendo escola privada, é escolha particular ali depositar reais e cérebros de filhos.

Na escola pública, a opção não é facultativa. A escolarização estatal beneficia sobretudo aqueles a quem faltarão recursos para fugir da doutrinação religiosa compulsória.

E, mais grave, se a escola pública seguir tais princípios ferirá de morte a laicidade do Estado.

Mesmo que Lima não tenha sido confirmada como secretária-executiva do Ministério da Educação, a simples cogitação de perfil como o seu para cargo de tamanha relevância mostra que o governo não traz sua religiosidade peculiar apenas no slogan.

Há aí um projeto de escolarizar as próximas gerações de acordo com certo credo. Uma pedagogia autoritária, capaz de penetrar órgãos governamentais e orientar nomeações, licitações e compras de material didático.

É paradoxal que os que acusam adversários da lavagem cerebral do “marxismo cultural” se empenhem em inculcar seus próprios valores nos menos habilitados para questioná-los —as crianças, que ainda estão formando convicções.

Proselitismo agressivo, que trafega para além das cartilhas. Prolonga-se em braços armados contra infiéis inimigos da pátria, como o atesta a proximidade governamental com as milícias, o empenho em armar a população e a condescendência a extermínios sumários.

Soa cacofônico falar em Deus e pregar a violência, mas a história está cheia de guerras religiosas. Nelas, ganham-se almas e vendem-se armas, o que pode rimar tanto com desígnios divinos quanto com negócios terrenos.

A questão é até quando o estrato tão alto quanto diminuto que gere os mercados vai pagar essa elevada taxa de administração para obter seu ansiado “ambiente de negócios”.

Se os bolsonaristas de coração não caírem em seis meses, como previu seu astrólogo, podem avançar no que, em Washington, Paulo Guedes chamou de revolução. Talvez o ministro tenha sido apenas irônico, crendo-se no controle do exército dos eleitos, ou tarde em admitir que, na política, como na interpretação dos textos sagrados, seus aliados são literais.

Nada garante que não visem mesmo criar sua “nova era” teológica e belicosa, missionários empenhados em revolucionar as mentes com tuítes, bíblias e balas.

25 de março de 2019

A JANELA PODE SE FECHAR! PLANALTO PARECE DAR UM PASSO PARA A FRENTE E DOIS PARA TRÁS!

(Marcos Lisboa – Folha de S.Paulo, 24) Quem sabe o susto imenso da última semana não ajude a evitar o desastre?

A expectativa de que o país conseguiria encaminhar uma agenda de reformas para interromper a degradação das contas públicas e evitar a volta da recessão foi solapada por uma proposta inoportuna e conflitos disfuncionais.

Em meio às negociações sobre a reforma da Previdência, o governo enviou ao Congresso uma proposta para as carreiras dos militares que procura corrigir distorções acumuladas por mais de uma década.

Difícil imaginar momento mais inadequado. Afinal, a Câmara começava a discussão sobre a nova Previdência, que reduz benefícios de servidores públicos e aumenta o tempo de contribuição dos trabalhadores formais do setor privado.

No debate público, as percepções são tão relevantes quanto os fatos. É verdade que os salários dos militares estão defasados em comparação com outras carreiras do setor público. Também é verdade que o atual governo congrega militares nos principais cargos como não se via desde os anos 1980.

Qualquer aprendiz de político poderia antecipar que a proposta seria mal recebida. O governo parece conceder benefícios para as tropas enquanto propõe sacrifícios para os demais. Não é bem assim, mas o protagonismo na política pública cobra seu preço.

Quem lidera um país deve dar o exemplo. Se os militares querem estar à frente da política pública, então deveriam saber que têm de arcar com o ônus de não propor, neste momento, a recomposição de perdas de tantos anos.

Como se não fosse suficiente, a nova política parece jogar o bebê fora junto com a água do banho. Certamente a corrupção é inaceitável.

No entanto, tratar o presidencialismo de coalizão como equivalente à corrupção é condenar a vida cotidiana por conta das suas possíveis patologias. Algo como proibir os automóveis pela existência de motoristas psicopatas.

A boa política, a negociação sobre a agenda do governo e a nomeação dos seus gestores, permite à sociedade mediar conflitos e construir soluções. Seu benefício colateral é impedir o desastre das guerras.

O Planalto parece estar em uma estranha dança de um passo para a frente e dois para trás. Faz gestos para negociar a reforma e, ao mesmo tempo, revela-se conivente com o desprezo pela boa política.

Sabemos que o presidente foi omisso sobre as reformas na campanha e tem um histórico de defender interesses corporativos com a virulência dos sindicalistas. Pois bem, agora lidera o governo e há um país que ameaça sangrar. Gestos de boa vontade e diálogo com a oposição são fundamentais para enfrentarmos os nossos graves desafios.

Há uma janela de oportunidade, mas ela pode se fechar.

22 de março de 2019

FÓRUM YOUNG GLOBAL CHANGERS!

Relatório Inicial de Antonio Mariano, presidente J-DEM-RJ.

Hoje (20/03), terminou o fórum Young Global Changers, parte do fórum Global Solutions, em Berlim.

– Foram mais de 3500 inscrições de jovens de todo o mundo e selecionados apenas 90. Mesmo indicado pela Adenauer, tive de participar do processo de seleção que consistia em escrever um extenso projeto, em inglês, de mudança social, além de avaliação de currículo.
– Todo o fórum voltado para os jovens foi realizado na FES, fundação do SPD.
– 5 dias de atividades, indo desde palestras e debates, até escrevermos ensaios sobre temas como coesão social, equidade de gênero e formulação de políticas públicas, dente outros, que devem ser publicados no site da instituição.
– O fórum é uma preparação para a reunião do G20 e acontece todos os anos, de forma a balizar os temas que serão discutidos entre os chefes de Estado. O próximo G20 será no Japão, em junho.
– Estiveram presentes Angela Merkel e Olaf Scholz (Vice Chanceler da Alemanha e ministro das finanças, filiado ao PSD), além de outros ministros.
– Também tivemos a chance de conhecer o Prefeito de Berlim, Michael Müller, que falou exatamente sobre pontos que queremos implementar em seu mandato: uma cidade preparada para o futuro.

21 de março de 2019

QUEM DISSEMINA A IDEOLOGIA TERRORISTA SUPREMACISTA BRANCA?

(Guga Chacra – O Globo, 15) O terrorismo supremacista branco tem crescido ao longo dos últimos anos e já é considerado mais perigoso do que o jihadista em algumas nações. O atentado contra muçulmanos em duas mesquitas da Nova Zelândia, com 49 mortos e dezenas de feridos, demonstra a dimensão deste terrorismo com uma ideologia de suposta superioridade do branco ocidental e um sentimento islamofóbico e anti-imigrante.

Estes supremacistas também atacam judeus, como vimos no ataque a uma sinagoga em Pittsburgh, em outubro. E atacam negros, como vimos no ataque contra uma igreja frequentada pela comunidade negra em Charleston, na Carolina do Sul, em 2017. Também atacam jovens, como vimos na Noruega, anos atrás. Muçulmanos já foram atacados em atos terroristas no Canadá, em Londres e agora na Nova Zelândia.

A ideologia supremacista branca não é nova. Inclusive, foi maior nos tempos do nazismo. Durante algumas décadas, se tornou algo marginal. Com o advento das redes sociais, no entanto, chegou ao mainstream. No Twitter e no Facebook, alguns formadores de opinião e seus seguidores, inclusive no Brasil, pregam o tempo todo o ódio contra os muçulmanos, contra os negros, contra imigrantes e contra o que eles chamam de “globalistas”. Algumas lideranças políticas fazem o mesmo. Distorcem informações ou mesmo mentem. A maioria absoluta, claro, fica apenas nas palavras odiosas. Mas sempre haverá um grupo menor que decidirá atacar, como observamos na Nova Zelândia. Deixam seus manifestos supremacistas e, de modo cruel, filmam ao vivo seu massacre.

Estes terroristas supremacistas brancos não são diferentes dos jihadistas, que também seguem uma ideologia odiosa para cometer seus atentados. Um escritor argelino residente na França certa vez escreveu que a disseminação da jihadismo, que ocorreu em maior escala a partir dos anos 1980, radicalizou setores da sociedade islâmica. Ele avalia que há muitas similaridades com a radicalização supremacista que observamos no Ocidente.

O complicado, para as autoridades, é combater o terrorismo supremacista branco. No caso dos jihadistas, sabemos bem qual costuma ser a resposta. São as ações militares contra países distantes como o Iraque e o Afeganistão ou os bombardeios de drones no Iêmen e na Somália. A lógica é a de que os terroristas jihadistas são ligados a grupos como a Al Qaeda e o Grupo Estado Islâmico que teriam bases nestas nações, mesmo quando não há relação alguma, como vimos na invasão ao Iraque após o 11 de Setembro – Saddam Hussein era inimigo da Al Qaeda. Terroristas eram presos e levados para Guantánamo. Mas o que fazer quando o terrorista é supremacista branco? Obviamente, não sairão bombardeando nações. A saída é utilizar ações de contra-terrorismo e combater o discurso do ódio.

20 de março de 2019

CRIME ORGANIZADO NA AMAZÔNIA!

(Adriana Abdenur é coordenadora da Divisão de Paz e Segurança do Instituto Igarapé. Ilona Szabó é diretora-executiva do mesmo instituto, e Robert Muggah é diretor de pesquisa da instituição – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 17) Expansão de atividades ilegais cria vasto ecossistema do crime na região.

O futuro da mudança climática será decidido na Amazônia. Cinco milhões e meio de quilômetros quadrados de floresta, o maior rio do planeta em vazão e cerca de um quinto da água doce do mundo —sem esquecer que, em partes da região, não se sabe quase nada do que acontece debaixo das copas das árvores.

Duas coisas, contudo, são certas: a pilhagem está ocorrendo, o que acarreta a proliferação de mineradores ilegais, garimpeiros, traficantes, jagunços, grileiros, bandidos envolvidos em exploração sexual e tráfico de pessoas. A Amazônia abriga hoje um vasto ecossistema de redes de crime organizado que cresce, se espalha, ameaça a lei e a ordem e põe em risco nossa sobrevivência coletiva.

Já há sinais de que a violência organizada foge do controle. Belém (PA), Macapá (AP) e Manaus (AM) estão entre as cidades com as mais altas taxas de homicídio do mundo, alguns dos lugares mais perigosos do planeta para ativistas de direitos humanos, ambientalistas e jornalistas.

O ritmo do desmatamento voltou a crescer após significativa diminuição. Quase 20% do bioma já foi devastado —seja para abrir caminho para a insaciável demanda global por gado, soja e açúcar, seja para abastecer os mercados globais de madeira e ouro. Até 2030 uma quantidade semelhante deverá ter sido desmatada. A menos que o Brasil e os outros países amazônicos mudem de rumo, a situação pode piorar.

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) tem indicado que pretende liberar ainda mais terras protegidas —especialmente as indígenas— para gigantes da mineração. Esse processo deve ser acelerado por um pacote de infraestrutura recentemente anunciado para projetos de grande escala.

Desmatamento e extração mineral muitas vezes reforçam o submundo criminoso e estimulam um ciclo vicioso de mudança climática, subdesenvolvimento e insegurança. Isso pode, inclusive, minar uma prioridade-chave do governo federal brasileiro —redução da corrupção e da lavagem de dinheiro, do crime organizado e de crimes violentos.

A Amazônia é terreno de concessões gigantescas para a mineração. Políticos federais e locais garantiram generosos incentivos fiscais para elevar e instigar a extração de bauxita, cobre, ferro, manganês e ouro. Imensos conglomerados mineradores estão invadindo terras indígenas e poluindo solo e rios. A mineração ilegal de ouro tornou-se um negócio enorme na região, tanto por grandes empresas quanto por grupos improvisados. Existem dezenas de milhares de garimpeiros apenas no Brasil.

Em municípios como Itaituba (PA), às margens do rio Tapajós, a mineração ilegal representa de 50% a 70% da economia. Uma cidade de garimpeiros encontrada pelo Exército na Terra Indígena Ianomâmi, localizada nos estados de Roraima e Amazonas, movimentava R$ 32 milhões por mês com extração ilegal de ouro.

Na fronteira com a Guiana, há cerca de 20 mil brasileiros trabalhando em minas clandestinas. Buscam também diamantes e coltan (mistura de columbita e tantalita utilizada em aparelhos eletrônicos portáteis). Assentamentos improvisados, jogo, prostituição, tráfico de pessoas, trabalho escravo e jagunços se aglomeram nos locais onde prolifera a mineração ilegal. Povos indígenas e quilombolas são as principais vítimas dessa corrida do ouro moderna.

A mineração ilegal de ouro é muito atrativa para grupos criminosos, incluindo os do tráfico de drogas. A bacia Amazônica abrange os três produtores de coca do mundo —Bolívia, Colômbia e Peru. Cartéis e facções da cocaína diversificaram seus negócios para aquela atividade.

Em algumas circunstâncias, a facilidade de extração e venda e a fraca presença do Estado tornam o ouro mais valorizado que a cocaína. Muitos traficantes usam os locais de garimpo como centros de distribuição.

Entre Brasil e Colômbia, dissidentes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e guerrilheiros do ELN (Exército de Libertação Nacional) controlam grandes áreas de mineração. Traficantes de facções criminosas brasileiras começam a se mobilizar.  As Forças Armadas do Brasil têm realizado operações —em conjunto com suas contrapartes colombianas— para tirar esse controle das mãos das organizações nacionais e estrangeiras, com enorme dificuldade.

As consequências são terríveis: rios são dragados e dinamitados, destruindo ecossistemas locais, e o mercúrio do garimpo contamina sistemas alimentares de toda a bacia. Em aldeias ianomâmis na fronteira Brasil-Venezuela, mais de 90% dos habitantes foram contaminados pelo metal de alta toxicidade.

As organizações criminosas usam tecnologia de ponta para obter lucros ilegais. Os grupos se conectam por serviços de mensagens criptografadas, o que dificulta o monitoramento. Muitas das transações são efetuadas com criptomoedas. As polícias Federal e Civil não recebem recursos suficientes para mapear a mineração ilegal e sua articulação com outras modalidades de crime.

Por conta da imensa escala do negócio e da incapacidade das forças de segurança, os criminosos operam com impunidade e contribuem para os níveis epidêmicos de mineração ilegal. No caso da Venezuela, o regime de Nicolás Maduro vem apostando pesadamente no garimpo, à medida que a produção petrolífera do país cai.

Faz-se necessária fiscalização mais forte na mineração e nas cadeias de suprimento a ela associadas. Isso demandará maior investimento e coordenação entre Polícia Federal, promotores, inteligência e Forças Armadas para interromper a economia política da mineração ilegal.

Entidades públicas como o Ibama precisam de injeção significativa de recursos e de poderes discricionários. Investimentos socioeconômicos também são essenciais, especialmente em áreas vulneráveis, para fornecer alternativas viáveis aos jovens envolvidos em atividades ilegais.

Devido às dimensões transnacionais do crime organizado, a cooperação internacional é fundamental, o que exige uma mudança de atitude. O discurso oficial que enfatiza a soberania nacional como um valor absoluto impede uma solução eficaz e conjunta. A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica —composta por Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela— enfrenta dificuldades para avançar em sua agenda.

Apesar de esforços de cooperação, policiais e militares, procuradorias e agências de inteligência raramente compartilham informações, que dirá executarem operações conjuntas.

A única forma de desarticular as redes de crime organizado de modo sustentável na Amazônia é a adoção de uma abordagem coordenada, o que requer liderança política e capacidade técnica. Os países da região terão de superar a desconfiança mútua. São cruciais um acordo quanto às prioridades, um melhor alinhamento de objetivos estratégicos e de política e a realização de operações conjuntas. Isso deve ser acompanhado de medidas legais para combater a corrupção nas instituições do Estado.

Esses esforços exigirão alto grau de discernimento diplomático e de destreza política. Nossa sobrevivência depende disso.

19 de março de 2019

POPULISMO E INSTITUIÇÕES!

(Marcus André Melo – Folha de S.Paulo, 18) “Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos”. A afirmação é de James Madison (1751-1836), arquiteto do desenho institucional do presidencialismo. A melhor forma de exercer controles sobre governantes é maximizando —através do desenho institucional— a formação de interesses contrapostos.

O fechamento parcial do governo federal americano por 35 dias (de 22 de dezembro de 2018 a 25 de janeiro de 2019) não foi, assim, falha institucional, mas resultado antecipado. A perda de controlerepublicano na Câmara dos Representantes nas eleições de meio de mandato, em novembro, é produto do desenho institucional. Com o governo Trump amordaçado dessa forma, quiçá o livro “When Democracies Die”, de Levitsky e Ziblatt, sequer fosse lançado.

No presidencialismo madisoniano, presidentes e Legislativo são eleitos em sufrágios separados e por maiorias distintas. O primeiro, por colégio eleitoral, os senadores pelas assembleias legislativas, e os deputados federais por distritos uninominais. E, claro: membros do Legislativo têm de renunciar a seus assentos no parlamento se passam a fazer parte do gabinete.

Para aumentar a probabilidade da contraposição de forças políticas distintas —sobretudo as extremistas—, os mandatos são defasados no tempo: o dos deputados é de dois anos, o dos senadores, de seis anos, e o do presidente, quatro anos sem direito à reeleição. As eleições de meio de mandato criam a possibilidade de que a maioria que elegeu o presidente seja distinta da que elegeu o Legislativo.

O presidencialismo latino-americano nos últimos dois séculos vem se desviando do desenho original. A lista é longa: todos os países da região passaram a adotar a representação proporcional ou sistemas mistos, inaugurando o multipartidarismo como forma modal. Os colégios eleitorais, adotados em Chile, Argentina, Paraguai, foram abandonados.

Houve também extensa delegação de poderes aos presidentes. Por sua vez, a reeleição consecutiva de presidentes foi permitida em quatro países, e a não consecutiva, em seis. As eleições legislativas não simultâneas foram abandonadas —desde 1980, 60% delas são concorrentes.

A principal consequência é que instaurou-se uma dinâmica parlamentarista no sistema presidencial, porque foram criados incentivos para a formação de coalizões de governo. Sob democracias, presidentes tipicamente governam com maiorias partidárias.

O debate sobre democracia e populismo não pode fazer tábula rasa do conhecimento acumulado sobre o efeito da renda e da história sobre regimes políticos. Muito menos do desenho institucional.

18 de março de 2019

RUY BARBOSA!

(Celso Lafer – Estado de S.Paulo, 17) Ruy Barbosa, que nasceu há 170 anos, usufruiu generalizado reconhecimento como ícone intelectual, admirado orador e advogado, homem de notável cultura e excepcional conhecimento da língua portuguesa. Seu legado permanece atual, cabendo destacar sua atuação em prol da criação do espaço público democrático em nosso país.

Na Oração aos Moços, discurso de paraninfo da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – seu testamento político –, escreveu que estava encerrando seus trabalhos de vida sem os meios e as manhas do político tradicional. “Em compensação tudo envidei por inculcar ao povo os costumes da liberdade e à República as leis do bom governo, que prosperam os Estados, moralizam a sociedade e honram as nações.”

Entre seus serviços à Nação realço a ativa participação na campanha abolicionista. Sublinhou que a escravidão era a questão das questões, a que todas as outras se subordinavam, pois, “encarna em si o começo da solução de todas as demais”.

O Direito representou para Ruy o caminho do seu empenho político. Este foi o de ser “o mais irreconciliável inimigo do governo do mundo pela violência, o mais fervoroso predicante do governo dos homens pelas leis”, característica do civilismo que norteou suas duas campanhas presidenciais. A autonomia do jurista em relação ao poder é um traço marcante da sua personalidade e do sentido apostolar do seu percurso. Ele engloba na missão do advogado uma espécie de magistratura: a da justiça militante. Nisso inclui “não transfugir da legalidade para a violência”; “não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínios a estes contra aqueles”; não “quebrar da verdade ante o poder”; não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade”; “não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas.”

Sua posição em defesa da inocência de Dreyfus, cuja relevância anteviu no calor da hora, repercutiu favoravelmente na diplomacia aberta, caracterizadora da Conferência de Haia de 1907, o primeiro grande ensaio da diplomacia multilateral no século 20 e momento inaugural da presença brasileira nos grandes foros internacionais.

Nela, como chefe da delegação do Brasil, Ruy contestou a igualdade baseada na força e sustentou, no âmbito do Direito Internacional Público, a igualdade dos Estados. Foi a primeira formulação brasileira da tese da democratização do sistema internacional e uma contestação ao exclusivismo, até então preponderante, do papel da gestão da vida internacional atribuído às grandes potências.

Ele manteve em Haia a posição independente do Brasil em relação aos EUA quando estes, potência em ascensão, se alinharam à grandes potências. Em A imprensa e o dever da verdade, disse: “Não quero, nem quererá nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo ou a sombra dos EUA. Não acho que devemos nos entregar de olhos fechados à sua política internacional, se bem haja entre ela e a nossa interesses comuns bastante graves e legítimos, para nos ligarem na mais inalterável amizade, e nos juntarem intimamente em uma colaboração leal na política do mundo”.

Na sua avaliação dos resultados de Haia, fez uma observação que antecipou o tema soft power, que é de grande relevância para um mundo interdependente: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca em nossos dias os povos subsistem de sua reputação no exterior”.

Outra ação diplomática de Ruy foi a Embaixada em Buenos Aires, em 1916, onde representou o Brasil no centenário da República Argentina. Ali destacou a relevância do potencial de cooperação entre Brasil e Argentina numa vasta construção na ordem política, na ordem econômica e na ordem jurídica. É, assim, um dos importantes patronos da parceria argentino-brasileira, que veio a ser um dos temas fortes da agenda diplomática de nosso país.

Ruy foi desde o Império um defensor do federalismo. Entendia que o sistema federativo era o único adaptável ao Brasil. Avaliou que a autonomia federativa dos Estados republicanizava o País mais depressa e mais seriamente do que se imaginava, substituindo a inércia das antigas províncias. Daí a importância do seu papel na modelagem jurídica do federalismo em nosso país.

A criação e o papel do Supremo Tribunal Federal tiveram em Ruy seu grande patrono. Guiou-se pelo seu tema recorrente de “sujeitar à legalidade os governos, implantar a responsabilidade no serviço à nação” e opor-se “à razão de estado” como a “negação virtual de todas as constituições”.

Na Oração, aponta que “entre as leis ordinárias e a lei das leis, é a justiça quem decide, fulminando aquelas, quando com esta colidirem”. Também recomendou aos alunos que iriam ser magistrados “não perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito”; não cortejar a popularidade; não transigir com as conveniências.

Ruy teve grande papel na construção do alargamento da doutrina brasileira do habeas corpus como garantia constitucional, que inspirou mais adiante o mandado de segurança.

Também promoveu a separação da Igreja do Estado e a laicidade do Estado, consagrada na Constituição de 1891 e nas subsequentes. Essa sua contribuição está voltada para conter o muito presente risco do indevido transbordamento da religião para o espaço da res publica.

Concluo com uma das grandes lições de Ruy: “Os que madrugam no ler convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas ideias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas”.

15 de março de 2019

“SURGE UMA NOVA ESQUERDA LIDERADA PELOS MILLENNIALS”! 

(The Economist/Estado de S.Paulo, 14) Um novo tipo de doutrina esquerdista está surgindo, mas não é uma resposta para os problemas do capitalismo.

Após o colapso da União Soviética, em 1991, a disputa ideológica do século 20 parecia encerrada. O capitalismo havia vencido e o socialismo tornou-se sinônimo de fracasso econômico e opressão política. Hoje, 30 anos depois, o socialismo está de novo na moda. Nos EUA, Alexandria Ocasio-Cortez, deputada recém-eleita que se denomina socialista democrata, tornou-se sensação. Na GrãBretanha, Jeremy Corbyn, o líder de linha dura do Partido Trabalhista, ainda pode se tornar premiê.

O socialismo avança porque estabeleceu uma crítica incisiva sobre o que deu errado na sociedade ocidental. Enquanto os políticos de direita desistem da batalha das ideias e recuam em direção ao chauvinismo e à nostalgia, a esquerda se concentra na desigualdade, no meio ambiente e em como investir os cidadãos de poder, e não as elites. No entanto, embora renascida e tendo acertado algumas coisas, o pessimismo da esquerda em relação ao mundo moderno vai longe demais. Suas políticas sofrem de ingenuidade sobre orçamentos, burocracia e empresas.

A vitalidade renovada do socialismo é notável. Nos anos 90, os partidos de esquerda mudaram para o centro. Da mesma forma, líderes de Grã-Bretanha e EUA, Tony Blair e Bill Clinton, afirmaram ter encontrado uma “terceira via”, uma acomodação entre Estado e mercado. “Este é o meu socialismo”, disse

Blair, em 1994, ao abolir o compromisso do trabalhismo com as estatais. Ninguém foi enganado, especialmente os socialistas.

A esquerda hoje vê a terceira via como um beco sem saída. Muitos dos novos socialistas são millennials. Cerca de 51% dos americanos entre 18 e 29 anos têm uma visão positiva do socialismo, diz o Gallup. Nas prévias de 2016, mais jovens votaram em Bernie Sanders do que em Hillary Clinton e Donald Trump juntos. Quase um terço dos eleitores franceses com menos de 24 anos, em 2017, votou no candidato da extrema esquerda.

Nem todos os objetivos dos socialistas millennials são radicais. Nos EUA, uma das políticas é a defesa do sistema de saúde universal, o que é normal em outras partes do mundo rico. Os radicais à esquerda dizem querer preservar as vantagens da economia de mercado. E, tanto na Europa quanto nos EUA, a esquerda é uma coalizão ampla e fluida, como são os movimentos com ideias em fermentação.

Mas existem temas comuns. Os socialistas millennials acham que a desigualdade saiu do controle e a economia é manipulada em favor de interesses pessoais. Eles acreditam que o público deseja que a renda e o poder sejam redistribuídos pelo Estado. Eles acham que a miopia e os lobbies levaram os governos a ignorar a crescente probabilidade de uma catástrofe climática. E eles acreditam que as hierarquias que governam a sociedade e a economia não servem mais aos interesses das pessoas comuns.

Parte disso é inquestionável, incluindo a praga do lobby e a negligência com o meio ambiente. A desigualdade no Ocidente realmente disparou nos últimos 40 anos. Nos EUA, a renda média do 1% superior subiu 242%, seis vezes o aumento para os intermediários. Mas a “nova” esquerda também deixa que partes importantes de seu diagnóstico estejam erradas – e suas prescrições também.

Comecemos pelo diagnóstico. É errado pensar que a desigualdade deve continuar a crescer inexoravelmente. A desigualdade de renda entre americanos caiu, entre 2005 e 2015, após o ajuste de impostos e transferências. A renda familiar média aumentou 10% em termos reais em três anos até 2017. Dizem que os empregos são precários, mas, em 2017, havia 97 empregados tradicionais em tempo integral para cada 100 americanos com idades entre 25 e 54 anos, em comparação com apenas 89, em 2005. A maior fonte de precariedade não é a falta de empregos estáveis, mas o risco econômico de outra recessão.

Os socialistas millennials também erram no diagnóstico sobre a opinião pública. Eles estão certos de que as pessoas sentem que perderam o controle sobre suas vidas e as oportunidades murcharam. O público também se ressente da desigualdade. Os impostos sobre os ricos são mais populares que os impostos sobre todos cidadãos. No entanto, não existe um desejo de redistribuição radical. O apoio dos americanos à redistribuição não é mais elevado do que era em 1990 e o país recentemente elegeu um bilionário que prometeu cortes de impostos corporativos.

Se o diagnóstico da esquerda é muito pessimista, o verdadeiro problema está em suas prescrições, que são perdulárias e politicamente perigosas. Tome-se a política fiscal. Alguns à esquerda propagam o mito de que vastas expansões de serviços governamentais podem ser pagas por impostos mais altos sobre os ricos. Na realidade, à medida que a população envelhece, é difícil manter os serviços sem aumentar os impostos sobre a classe média.

Ocasio-Cortez propôs uma taxa de imposto de 70% sobre rendimentos mais elevados, mas uma estimativa plausível situa a receita extra resultante em apenas US$ 12 bilhões, ou 0,3% do total de impostos arrecadados. Alguns radicais vão mais longe, defendendo uma “moderna teoria monetária”, que diz que os governos podem tomar emprestado livremente para financiar novos gastos, mantendo baixas as taxas de juros. Mesmo que os governos tenham recentemente conseguido emprestar mais do que muitos formuladores de políticas esperavam, a noção de que empréstimos ilimitados não colocam uma economia em dia é uma forma de charlatanismo.

A desconfiança nos mercados leva os socialistas millennials a conclusões erradas sobre o meio ambiente também. Eles rejeitam impostos de carbono neutros em termos de receita como a melhor maneira de incentivar a inovação do setor privado e combater as mudanças climáticas. Eles preferem planejamento central e amplos gastos públicos em energia verde.

A visão dos socialistas millennials de uma economia “democratizada” dissemina o poder regulador, em vez de concentrá-lo. Isso tem algum apelo para os interessados na priorização dos temas locais, mas o “localismo” precisa de transparência e responsabilidade, não dos comitês facilmente manipulados, favorecidos pela esquerda britânica.

O incentivo para democratizar se estende aos negócios. Os socialistas millennials querem mais trabalhadores em conselhos e confiscar ações de empresas e entregá-las aos trabalhadores. Países como a Alemanha têm tradição de participação dos funcionários. Mas o desejo dos socialistas de maior controle sobre a empresa está enraizado em uma suspeita das forças remotas desencadeadas pela globalização. Capacitar trabalhadores para resistir à mudança engessaria a economia. Menos dinamismo é o oposto do que é necessário para o renascimento da oportunidade econômica.

Eles acham que a desigualdade saiu do controle e a economia é manipulada em favor de interesses pessoais

Em vez de proteger as empresas e os empregos, o Estado deve garantir que os mercados sejam eficientes e os trabalhadores sejam o foco da política. Em vez de ficarem obcecados com a redistribuição, os governos fariam melhor se reduzissem a busca por renda pessoal, submetendo políticas públicas aos seus interesses (“rent-seeking”), melhorassem a educação e aumentassem a concorrência.

A mudança climática pode ser combatida com uma mistura de instrumentos de mercado e investimento público. Os socialistas millennials têm uma revigorante disposição de contestar o status quo. Mas, como o socialismo antigo, sofrem de uma fé na incorruptibilidade da ação coletiva e de uma suspeita injustificada do poder individual. Os liberais deveriam ser contra isso.

14 de março de 2019

COMO A RELAÇÃO RUSSO-AMERICANA AFUNDOU!

Artigo  adaptado do livro “The Back Channel: Uma Memória da Diplomacia Americana e a Razão para Sua Renovação” de William J. Burns, que trabalhou nos governos George H. W. Bush, Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama em cargos como secretário adjunto de Estado e embaixador na Rússia.

Depois de um último telefonema como líder dos EUA com o presidente George H. W. Bush, Mikhail Gorbachev renunciou em 25 de dezembro e seu país deixou de existir. Apenas algumas semanas depois, em janeiro de 1992, fui com o secretário de Estado James Baker a Moscou. Nós nos encontramos com Boris Yeltsin no Kremlin, onde a bandeira tricolor russa tremulava. Foi surreal.

O poder e a diplomacia americanos estavam no auge naquele momento. As esperanças russas se agitaram com a incerteza e a persistente humilhação. Este foi o prólogo da história emaranhada e repetitiva das relações pós-Guerra Fria entre os dois países, em que os problemas nunca foram exatamente preordenados, mas reapareceram com uma regularidade deprimente. E foi, nesse sentido, que a história da interferência russa na eleição presidencial dos EUA em 2016 começou. Eu desempenhei uma variedade de papéis neste relacionamento turbulento, na embaixada americana em Moscou e em cargos seniores em Washington.

Cheguei a Moscou como diretor-executivo da embaixada dos EUA em 1994, cerca de dois anos e meio depois do colapso da União Soviética. O senso de possibilidade já estava desaparecendo, e as dificuldades de construir algo novo para substituir o antigo sistema soviético estavam se tornando aparentes.

A mudança para uma economia de mercado não apagou os profundos problemas econômicos e sociais do país. A produção industrial havia caído pela metade desde 1991. A produção agrícola também estava caindo. Pelo menos 30% da população vivia abaixo da linha da pobreza, e a inflação eliminou as poucas economias dos aposentados. O sistema de saúde pública entrou em colapso e doenças contagiosas, como a tuberculose e a difteria, ressurgiram.

O presidente Bill Clinton se esforçou para administrar o transtorno de estresse pós-traumático da Rússia, mas seu esforço para a expansão da OTAN ao leste reforçou os ressentimentos russos. Quando saí de Moscou depois da minha primeira passagem, no início de 1996, fiquei preocupado com o eventual ressurgimento de uma Rússia fervilhando em suas próprias queixas e inseguranças. Eu não tinha ideia de que isso aconteceria tão rapidamente, ou que Vladimir Putin – então um burocrata obscuro – emergiria como a personificação daquela peculiar combinação russa de qualidades.

No início de seu mandato no Kremlin, Putin testara, com o presidente George W. Bush, uma forma de parceria adequada à sua visão dos interesses e prerrogativas russos. Ele imaginou uma frente comum na Guerra do Terror pós 11 de setembro, em troca da aceitação da influência especial da Rússia na antiga União Soviética, sem influência da OTAN além do Báltico e sem interferência na política interna da Rússia. Putin fundamentalmente interpretou mal os interesses e a política dos EUA. O governo Bush não desejava – e não via motivo – para trocar qualquer coisa por uma parceria russa contra a al-Qaeda. Tinha pouca inclinação a conceder muito a um poder em declínio.

Em pouco tempo, os excessos do Putinismo começaram a consumir seus sucessos. A corrupção se aprofundou, à medida que Putin procurava lubrificar o controle político e monopolizar constantemente a riqueza dentro de seu círculo. Suas suspeitas sobre os motivos da América também se aprofundaram. A promoção da democracia era, para ele, um cavalo de Troia projetado para promover os interesses geopolíticos americanos às custas da Rússia e erodir a esfera de influência que ele via como um direito de grande poder. Quando a Revolução Laranja na Ucrânia e a Revolução das Rosas na Geórgia derrubaram líderes pró-russos, a neuralgia de Putin se intensificou.

Com Medvedev no Kremlin, Obama teve dificuldades de manter contato com Putin, cujas suspeitas nunca diminuíram, e que ainda estava inclinado a pintar os EUA como uma ameaça para legitimar sua tendência repressiva em seu país. Nós chegamos a uma série de realizações tangíveis: um novo tratado de redução de armas nucleares; um acordo de trânsito militar para o Afeganistão; uma parceria sobre a questão nuclear iraniana. Mas as revoltas da Primavera Árabe enervaram Putin; há relatos de que ele assistiu ao vídeo horripilante da morte do líder líbio Muammar Kadafi – apanhado escondido em uma tubulação de esgoto e morto por rebeldes apoiados pelo Ocidente – repetidas vezes. Internamente, à medida que os preços do petróleo caíam e sua frágil economia dependente de commodities diminuía, ele temia que fosse difícil sustentar seu antigo contrato social, pelo qual exercia controle total sobre a política em troca de garantir padrões de vida crescentes e certa prosperidade.

Quando Putin decidiu voltar à presidência após o término do mandato de Medvedev em 2012, ele foi surpreendido por grandes manifestações de rua, o produto do ressentimento da classe média pelo agravamento da corrupção e das eleições parlamentares fraudulentas. Em um discurso na Europa, a então secretária de Estado Hillary Clinton criticou duramente o governo russo. “O povo russo, como pessoas de todos os lugares”, disse ela, “merece o direito de ter suas vozes ouvidas e seus votos contados”. Putin levou isso para o pessoal e culpou Clinton publicamente por enviar “um sinal” que levou os manifestantes às ruas. Putin tem uma capacidade notável de guardar insultos e ofensas, e reuni-los para encaixar em sua narrativa de que o Ocidente tenta manter a Rússia por baixo. As críticas de Clinton ficaram no topo de sua litania – e ajudariam a gerar um animus que levou diretamente a intromissão de Putin contra sua candidatura na eleição presidencial dos EUA em 2016.

O arco do relacionamento entre os EUA e a Rússia já estava se dobrando em uma direção familiar, assim como, após momentos de esperança, durante o governo Bush e a administração de Bill Clinton antes disso. Em 2014, a crise na Ucrânia arrastou-o para novas profundidades. Depois que o presidente pró-russo da Ucrânia fugiu durante protestos generalizados, Putin anexou a Crimeia e invadiu o Donbass, no leste da Ucrânia. Se ele não podia ter um governo deferente em Kiev, ele queria arquitetar a próxima melhor coisa: uma Ucrânia disfuncional. Durante vários anos, Putin havia desafiado o Ocidente em lugares como a Geórgia e a Ucrânia, onde a Rússia tinha uma participação significativa e um alto apetite por risco. Em 2016, um ano depois de eu deixar o governo, ele viu uma oportunidade para um desafio mais direto ao Ocidente – um ataque à integridade de suas democracias.

Quem perdeu a Rússia? É uma discussão antiga que não entende o ponto. A Rússia nunca foi nossa para perdê-la. Os russos perderam a confiança em si mesmos após a Guerra Fria, e só eles poderiam refazer seu estado e sua economia. Na década de 1990, o país estava em meio a três transformações históricas simultâneas: o colapso do comunismo e a transição para uma economia de mercado e democracia; o colapso do bloco soviético e a segurança que proporcionara à historicamente insegura Rússia; e o colapso da própria União Soviética, e com ela um império construído ao longo de vários séculos. Nada disso poderia ser resolvido em uma única geração, muito menos em alguns anos. E nada disso poderia ser resolvido por pessoas de fora; um maior envolvimento americano não teria sido tolerado.

A sensação de perda e indignidade que veio com a derrota na Guerra Fria era inevitável, não importando quantas vezes nós e os russos tivéssemos dito que o resultado não tinha perdedores, apenas vencedores. Dessa humilhação e da desordem da Rússia de Yeltsin, cresceu a profunda desconfiança e a agressividade latente de Putin.

O padrão nas relações entre os EUA e a Rússia algumas vezes indicava a imutabilidade histórica, como se fossemos obrigados à uma rivalidade e à uma suspeita interminável. Essa visão pode conter um quê de verdade; a história é importante e é difícil de se escapar. Mas a verdade toda é mais complicada e mais prosaica. Cada um de nós teve suas ilusões. Os Estados Unidos pensavam que Moscou acabaria por se acostumar a ser nosso parceiro júnior e, relutantemente, acomodaria a expansão da OTAN até a fronteira com a Ucrânia. E a Rússia sempre assumiu o pior em relação aos motivos americanos e acreditava que sua própria ordem política corrupta e economia não reformada eram uma base sustentável para o poder geopolítico real. Nós tendíamos a alimentar as patologias do outro. Muitas vezes falávamos algo diferente pensando falar a mesma coisa.

Hoje, é claro, o relacionamento americano com Moscou é mais bizarro e mais problemático do que em qualquer outro momento desde o fim da Guerra Fria. Em Helsinque, no verão passado, o presidente Donald Trump esteve ao lado de Putin, absolveu-o da interferência eleitoral e duvidou publicamente das conclusões dos serviços de inteligência e policiais dos Estados Unidos.

O narcisismo de Trump, o desprezo desconcertante pela história, e o desarmamento diplomático unilateral são um triângulo trágico em um momento em que a Rússia representa ameaças inimagináveis há um quarto de século. Ele parece alheio à realidade de que “se dar bem” com rivais como Putin não é o objetivo da diplomacia, onde é tudo sobre a promoção de interesses tangíveis.

Gerenciar as relações com a Rússia será um longo jogo, conduzido dentro de uma faixa relativamente estreita de possibilidades. Navegar por uma rivalidade de grande poder exige diplomacia com tato – manobrando na área cinzenta entre a paz e a guerra; demonstrando uma compreensão dos limites do possível; construindo influências; explorando motivos em comum onde podemos encontrá-los; e pressionando com firmeza e persistência onde não podemos.

O caminho à frente com a Rússia ficará mais tortuoso antes de ficar mais fácil. Devemos percorrê-lo sem ilusões, atentos aos interesses e sensibilidades da Rússia, sem culpa de nossos valores e confiantes em nossas próprias forças duradouras. Não devemos ceder a Putin – ou desistir da Rússia além dele.

13 de março de 2019

“VOX”: A NOVA DIREITA NA ESPANHA!

(Lucas Neves – Folha de S.Paulo, 11) Fundado em 2013 com um discurso anti-imigrantes, em prol do Estado mínimo e da recentralização do poder em Madri (em oposição à delegação de prerrogativas às comunidades autônomas), o Vox assentou acampamento em uma espécie de terra de ninguém do espectro espanhol. Depois de estrear no Parlamento andaluz, deve conquistar cadeiras no Legislativo federal pela primeira vez em abril.

Para o cientista político Pablo Simón, professor na Universidade Carlos 3º (Madri), o Vox surfa na onda da insatisfação de uma parcela do eleitorado conservador com a maneira como o Partido Popular (PP), que encarna o establishment de direita na Espanha e estava no poder central em 2017, conduziu a crise secessionista catalã.

“Esse grupo acha que o PP foi muito brando, teria gostado de um pulso mais firme [com movimento de independência]”, afirma ele. “Por outro lado, quando os socialistas voltam ao governo [em junho de 2018], depois de aprovarem uma moção de censura contra o premiê Mariano Rajoy com a ajuda dos separatistas, reabrem o diálogo com estes, o que também melindra os direitistas mais radicais.”

A réplica não tardou. Em dezembro passado, os 400 mil votos do Vox na eleição da Andaluzia se traduziram em 12 deputados no Legislativo regional e, mais importante, no fim de uma hegemonia socialista de 36 anos no comando local. O neófito agora dá suporte à dobradinha governista PP-Cidadãos (centro), mas não é parte integrante da gestão andaluza.

O fiel escudeiro não é assim tão fiel. Uma pesquisa realizada após o pleito regional mostrou que mais de 50% dos eleitores do Vox haviam votado no PP nas eleições gerais (nacionais) de 2016. Outros 23% tinham escolhido o Cidadãos dois anos antes.

Em outros países europeus, a chegada maciça de imigrantes no meio da década tem sido apontada como mola para agremiações de ultradireita. Mas os analistas divergem sobre o peso desse fator na Espanha.

“Cabe lembrar que o Vox teve seus melhores desempenhos na Andaluzia nas áreas em que há mais imigrantes”, aponta Peres. “Voltamos a ver barcos desembarcarem às praias espanholas coalhados de migrantes. Pedro Sánchez [premiê socialista] até recebeu embarcações para as quais outros países, como a Itália, tinham fechado seus portos.”

Simón discorda. “A Espanha é a porta de entrada, mas não o destino final de muitos dos migrantes, que seguem até a Europa central. A imigração não ocupa lugar de destaque no debate público. Trata-se de um tema de verão, quando a imprensa está sem assunto.”

Além disso, segundo ele, a maior parte dos viajantes vem da América Latina, região que inspira no Vox certa “simpatia cultural, que passa pela identificação com o reacionarismo católico”.

Onde os dois comentaristas convergem é na avaliação de que a situação econômica do país (que cresceu 3% em 2017 e 2,5% em 2018, níveis invejáveis no circuito europeu) não influi no ganho de musculatura da ultradireita ibérica. O programa do Vox nessa rubrica, aliás, é enxuto, consistindo basicamente na promessa de redução da carga tributária.

“O eleitor padrão do partido é de classe média, classe média alta, ou seja, não está nos grupos mais atingidos pela crise iniciada em 2008, ao contrário do que vemos em outros países em que a direita radical cresce”, explica Simón. “Na Espanha, os mais afetados tendem a votar nos socialistas e no Podemos [esquerda radical].”

Nos costumes, a legenda mira reverter as leis que permitiram o aborto e o casamento gay, além de colocar em questão o espaço ocupado na sociedade espanhola pelo debate em torno da igualdade de gênero, que seria dominado por um feminismo sectário de viés esquerdista—o Vox, por sinal, não se associou às manifestações, na sexta (8), pelo Dia Internacional da Mulher.

No fim de fevereiro, a dois meses da eleição que deve garantir seu ingresso na Câmara de Deputados madrilena, o partido oscilava entre 10% e 12% das intenções de voto, segundo a pesquisa. Aparecia atrás de socialistas, PP, Cidadãos e Podemos, nesta ordem.

Mas tudo indica que terá papel central na nova legislatura, seja pautando o endurecimento da oposição a uma eventual coalizão governista de esquerda, seja na pele de aliado providencial de uma frente conservadora. Não vai faltar voz ao Vox.

12 de março de 2019

THEODORE ROOSEVELT!

(Marcos Lisboa, presidente do Insper – Folha de S.Paulo, 10) No fim do século 19, os Estados Unidos viviam entre o céu e o inferno. Havia uma democracia consolidada, com eleições regulares e independência do Judiciário. Ao mesmo tempo, a corrupção se disseminara e os partidos eram financiados por razões nada republicanas.

A riqueza proporcionada pelo capitalismo contrastava com as degradantes condições de trabalho da grande maioria.

Entre 1880 e 1910, houve muitas reformas. Foram aprovadas normas para regular os contratos de trabalho, proibiu-se a nomeação política de servidores públicos e passou-se a combater as práticas anticoncorrenciais das grandes empresas.

Theodore Roosevelt foi um dos protagonistas desse período. Filho de um rico comerciante de Nova York, republicano e conservador, adorava colecionar animais abatidos em caçadas. Secretário-adjunto da marinha, foi o principal instigador da guerra contra Espanha, tornando-se celebridade pela sua participação no conflito em Cuba.

Roosevelt sintetiza as contradições da época. O caçador contumaz também foi um eficaz defensor da preservação do meio ambiente e dos animais em extinção. Governador eleito com o apoio da máquina partidária contaminada, combateu a corrupção com arte e porrete.

Para desespero dos reformistas, negociava com as lideranças da política tradicional. Por vezes, porém, encurralava com maestria a cúpula partidária e aprovava medidas que limitavam o poder das corporações ou que protegiam os trabalhadores. “Gritos e ameaças” não teriam conseguido dez votos, afirmou.

Roosevelt fazia questão de estar próximo da imprensa. Governador, organizava reuniões semanais para apresentar seus objetivos e as razões da sua escolha. Ele impressionava por conhecer detalhadamente os temas em debate. Eventuais divergências não o incomodavam.

“Não preciso dizer-lhe que nenhuma crítica sua pode alterar em nada minha estima por você… Sei que discorda porque honestamente acredita que deva fazê-lo”, escreveu a um jornalista.

Certa vez, um colunista fez uma resenha irônica e devastadora do seu livro sobre a guerra em Cuba. O governador reagiu com um convite: “Lamento declarar que minha família e amigos íntimos estão encantados com a sua resenha… Acho que você me deve uma; e vou cobrar que venha me visitar… Há muito queria ter a chance de conhecê-lo”.

Roosevelt tornou-se presidente dos EUA e continuou sua agenda de reformas. Negociou o fim da guerra entre Rússia e Japão e recebeu o Nobel da Paz, não sem controvérsias.

Teddy —ele detestava o apelido— podia ser valentão, mas conhecia o ofício da política, dialogava com a imprensa e sabia do que falava.

11 de março de 2019

AFINAL, O QUE É A VIDA?

(BBC, 07) Essa pergunta é tão antiga que parece estranho que alguém dos dias de hoje consiga uma resposta tão radicalmente inovadora a ponto de influenciar áreas do conhecimento tão díspares como a neurociência, a sociologia, a informática, a literatura e a filosofia.

O biólogo chileno Humberto Maturana conseguiu. Sua teoria, desenvolvida há quase 50 anos com seu ex-aluno e compatriota Francisco Varela, chama-se “autopoiesis” e influenciou muita gente.

“A pergunta básica que me fiz foi o que é estar vivo e o que é estar morto, o que precisa acontecer em sua interioridade para que eu, olhando de fora, possa decidir o que é um ser vivo”, disse Maturana à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.

Sua teoria, publicada em uma série de trabalhos no início da década 1970, foi “revolucionária porque deu uma solução para uma pergunta que até então não tinha resposta”, diz.

Não à toa, Maturana foi um dos 23 pesquisadores convidados pela Fundação Nobel para uma conferência há duas semanas, em Santiago do Chile.

Maturana foi ovacionado quando subiu ao palco. O neurocientista Anil Seth, com quem o chileno dividia o painel, agradeceu a oportunidade de estar perto do “lendário biólogo”.

“Li suas obras pela primeira vez há mais de 20 anos, quando fazia doutorado na Universidade de Sussex, na Inglaterra, e me inspirei em seu trabalho desde aquela época, como muitos outros cientistas no mundo”, disse Seth.

O trabalho de Maturana, afirmou, “é um maravilhoso exemplo do legado da ciência chilena”.

Crie a si mesmo

A obra de Maturana se concentra em um termo que ele cunhou unindo duas palavras gregas: “auto” (para si mesmo) e “poiesis” (criação).

“Os seres vivos são sistemas autopoiéticos moleculares, ou seja, sistemas moleculares que se autoproduzem, e a realização dessa produção de si mesmo como sistemas moleculares constitui a vida”, afirmou o biólogo.

Segundo sua teoria, todo ser vivo é um sistema fechado que está continuamente se transformando, recuperando-se e se mantendo igual quando necessita.

Uma alegoria mais simples para essa ideia seria a de uma ferida que se cura sozinha.

A prestigiada Enciclopédia Britânica, que lista a autopoiese como uma das seis principais definições científicas para a vida, explica assim a teoria dos chilenos: “Ao contrário das máquinas, cujas funções de controle são inseridas por projetistas humanos, os organismos governam a si próprios”.

“Os seres vivos”, acrescenta, “mantêm sua forma mediante o contínuo intercâmbio e fluxo de componentes químicos”, que são criados pelo próprio corpo.

Além de uma definição para a vida, Maturana e Varela também explicam o que é a morte.

A autopoiesis, diz Maturana à BBC, “tem de ocorrer continuamente, porque quando ela para, nós morremos”.

O cientista filósofo

“Antes, se você perguntasse a um biólogo o que é um ser vivo, ele não sabia o que responder”, diz Maturana. No entanto, depois da teoria, “viver passou a ter uma explicação”.

“É um fenômeno de uma dinâmica molecular que constitui entidades discretas que são os seres vivos”, diz o biólogo, que também se define como filósofo.

De fato, as palavras de Maturana muitas vezes parecem mais uma reflexão intelectual sobre a vida do que uma definição científica e objetiva dela.

O eixo de sua obra aborda um tema tão amplo que falar com Maturana necessariamente implica exceder o estritamente científico e entrar em questões bastante filosóficas.

Sobre a educação, ele opina: “O fundamental na educação é a conduta dos adultos em relação às crianças, não somente no espaço relacional e material, mas também no psíquico”. Ele também explica seu pensamento sobre a linguagem: “Não é um sistema de comunicação ou transmissão de informações, mas um sistema de coexistência na coordenação de desejos, sentimentos e ações”.

Maturana também dá consultorias de recursos humanos e relações interpessoais para empresas e indivíduos por meio do Instituto de Formação Matríztica, que há algumas décadas ele fundou com a professora Ximena Dávila.

É justamente essa diversidade e combinação de saberes de Maturana que atraíram a simpatia do Dalai Lama.

‘Você tem razão’

Há cinco anos, Maturana e a Ximena Dávila visitaram o Dalai Lama, líder religioso e político que vive na Índia, cuja extensa oposição à ocupação do Tibet por parte da China lhe rendeu o prêmio Nobel da Paz em 1989.

Em seu site, Dalai Lama descreve Maturana como um “cientista cuja santidade sempre cito, uma pessoa que disse preferir não se ater apenas ao seu campo de pesquisa porque atrapalha a objetividade”.

Embora tenham conversado sobre temas variados como o funcionamento do cérebro, a linguagem e os sentimentos de plantas e animais, Maturana lembra de um diálogo particular sobre a vida.

“A conversa foi essencialmente sobre como vivemos, que tipo de vida estamos levando e como estamos atuando como seres humanos”, contou. “Nesse sentido, foi uma conversa filosófica e também biológica”.

Maturana detalhou: “Ele disse que havia aprendido comigo o tema do desprendimento, porque em algum momento havíamos conversados sobre isso”.

“Com Ximena mostramos que, nas relações humanas, o fundamental é ouvir um ao outro, mas para isso temos que deixar o outro aparecer sem prejulgar preceitos, premissas ou exigências. Isso é desprendimento, segundo o Dalai Lama”, explicou.

De acordo com o biólogo, o líder tibetano lhe disse: “Você tem razão”. E, em caráter filosófico, ainda acrescentou: “A coisa central na coexistência é ouvir um ao outro para poder fazer as coisas juntos com respeito mútuo.”

08 de março de 2019

POR UM RENASCIMENTO EUROPEU!

Emmanuel Macron, Presidente da República francesa, dirige-se aos cidadãos europeus num artigo publicado em vários jornais, nas mais diversas línguas, incluíndo o Diário de Notícias, em exclusivo para Portugal, e também, entre outros, o britânico Guardian, o alemão Die Welt e o espanhol El País.

Emmanuel Macron
04 Março 2019

Cidadãos da Europa, se tomo a liberdade de dirigir-me diretamente a vós, não é somente em nome da história e dos valores que nos unem. É porque a situação é de urgência. Dentro de algumas semanas, as eleições europeias serão decisivas para o futuro do nosso continente.

Nunca desde a Segunda Guerra mundial se afigurou tão necessária a Europa. No entanto, nunca a Europa esteve em situação tão perigosa.

O Brexit é o símbolo desse perigo. Símbolo da crise da Europa, que não soube responder às necessidades de proteção dos povos face aos grandes choques do mundo contemporâneo. Símbolo, também, da armadilha europeia. Não é a pertença à União europeia que é a armadilha; são a mentira e a irresponsabilidade que a podem destruir. Quem disse a verdade aos Britânicos sobre o seu futuro após o Brexit? Quem lhes falou da perda do acesso ao mercado europeu? Quem evocou os riscos para a paz na Irlanda com a reposição da fronteira do passado? O recuo nacionalista nada propõe; apenas rejeita, não projeta. E esta armadilha ameaça toda a Europa: os exploradores da ira, sustentados pelas falsas informações prometem mundos e fundos.

Face a essas manipulações, devemos manter-nos de pé. Orgulhosos e lúcidos. Dizer, antes de mais, o que é a Europa. É um sucesso histórico: a reconciliação de um continente devastado, num projeto inédito de paz, de prosperidade e de liberdade. Nunca o esqueçamos. E esse projeto continua a proteger-nos hoje: que país pode enfrentar, sozinho, as estratégias agressivas de grandes potências? Quem pode almejar ser soberano sozinho perante os gigantes do setor digital? Como resistiríamos às crises do capitalismo financeiro sem o euro, que é uma força para toda a União? A Europa significa também milhares de projetos do quotidiano que transformaram a face dos nossos territórios: este liceu renovado, aquela estrada construída, o acesso rápido à Internet a chegar, por fim. Este combate exige um compromisso a cada dia, pois a Europa e a paz não são dados adquiridos. Em nome da França, travo este combate sem descanso para fazer progredir a Europa e defender o seu modelo. Mostrámos que aquilo que era considerado inalcançável, a criação de uma defesa europeia ou a proteção dos direitos sociais, era possível.

Mas é preciso fazer mais, mais depressa. Pois existe a outra armadilha, a do status quo e da resignação. Perante os grandes choques do mundo, os cidadãos tantas vezes nos dizem: “Onde está a Europa? O que faz a Europa?”. Para eles, ela transformou-se num mercado sem alma. Ora, a Europa não é meramente um mercado, é um projeto. Um mercado é útil, mas não deve fazer esquecer a necessidade de fronteiras que protegem e de valores que unem. Os nacionalistas enganam-se quando afirmam defender a nossa identidade com o recuo da Europa, pois é a civilização europeia que nos reúne, que nos liberta e nos protege. Contudo, aqueles que não querem que nada mude também se enganam, pois negam os receios que os nossos povos sentem, as dúvidas que assolam as nossas democracias. Estamos a viver um momento decisivo para o nosso continente; um momento em que, coletivamente, devemos reinventar política e culturalmente as formas da nossa civilização num mundo em transformação. Chegou a hora do Renascimento europeu. Por isso, resistindo às tentações do recuo e das divisões, proponho-vos construirmos, juntos, este Renascimento em torno de três ambições: a liberdade, a proteção e o progresso.

Defender a nossa liberdade

O modelo europeu assenta na liberdade humana, na diversidade das opiniões, da criação. A nossa liberdade primeira é a liberdade democrática, a de escolher os nossos dirigentes apesar de potências estrangeiras procurarem, a cada eleição, influenciar os nossos votos. Proponho a criação de uma Agência europeia de proteção das democracias que providenciará peritos europeus para cada Estado membro para proteger o seu processo eleitoral contra os ciberataques e as manipulações. Neste espírito de independência, também devemos proibir o financiamento dos partidos políticos europeus por potências estrangeiras. Devemos banir da Internet, com regras europeias, todos os discursos de ódio e de violência, pois o respeito pelo indivíduo é o alicerce da nossa civilização de dignidade.

Proteger o nosso continente

Fundada com base na reconciliação interna, a União europeia esqueceu-se de olhar para as realidades do mundo. Nenhuma comunidade é capaz de suscitar um sentimento de pertença se não possuir limites que ela protege. A fronteira representa a liberdade com segurança. Logo, devemos repensar o espaço Schengen: todos os que querem ser parte desse espaço devem cumprir obrigações de responsabilidade (controlo rigoroso das fronteiras) e de solidariedade (a mesma política de asilo, com as mesmas regras de acolhimento e de recusa). Uma polícia de fronteiras comum e um serviço europeu de asilo, estritas obrigações de controlo, uma solidariedade europeia para a qual contribui cada país, sob a autoridade de um Conselho europeu de segurança interna: acredito, face às migrações, numa Europa que protege ao mesmo tempo os seus valores e as suas fronteiras.

As mesmas exigências devem aplicar-se à defesa. Foram realizados importantes progressos nos últimos dois anos, mas precisamos de um rumo claro: um tratado de defesa e de segurança deverá definir as nossas obrigações indispensáveis, em cooperação com a OTAN e os nossos aliados europeus: aumento das despesas militares, cláusula de defesa mútua operacionalizada, Conselho de segurança europeu associando o Reino Unido para preparar as nossas decisões coletivas.

As nossas fronteiras também devem garantir uma concorrência equitativa. Que potência no mundo aceita continuar as suas trocas com quem não respeita nenhuma das suas regras? Não podemos suportar sem nada dizer. Devemos reformar a nossa política de concorrência, repensar a nossa política comercial: punir ou proibir na Europa as empresas que prejudicam os nossos interesses estratégicos e os nossos valores essenciais, como as normas ambientais, a proteção dos dados e o justo pagamento do imposto; e assumir, nas indústrias estratégicas e nos nossos concursos públicos, uma preferência europeia, tal como o fazem os nossos concorrentes americanos ou chineses.

Resgatar o espírito de progresso

A Europa não é uma potência de segunda categoria. A Europa toda é uma vanguarda: sempre soube definir as normas do progresso. Por isso, ela deve propugnar um projeto de convergência mais do que de concorrência: a Europa, onde foi criada a segurança social, deve construir, para cada trabalhador, de Leste a Oeste e de Norte a Sul, um escudo socialque garanta a mesma remuneração no mesmo local de trabalho e um salário mínimo europeu, adaptado a cada país e discutido coletivamente a cada ano.

Resgatar o progresso significa também liderar o combate ecológico. Como poderemos encarar os nossos filhos se não reduzirmos também a nossa dívida climática? A União europeia deve determinar a sua ambição – 0 carbono em 2050, reduzir para metade os pesticidas em 2025 – e adaptar as suas políticas a essa exigência: um Banco europeu do clima para financiar a transição ecológica; uma força sanitária europeia para reforçar os controlos dos nossos alimentos; contra a ameaça dos lobbies, uma avaliação científica independente das substâncias perigosas para o ambiente e a saúde… Esse imperativo deve nortear toda a nossa ação; desde o Banco central até a Comissão europeia, desde o orçamento europeu até o plano de investimento para a Europa, todas as nossas instituições devem inserir o clima no âmago do seu mandato.

O progresso e a liberdade significam poder viver dos proventos do seu trabalho: para criar empregos, a Europa deve antecipar. Por isso é que ela deve, não só regulamentar os gigantes do setor digital, com a criação de uma supervisão europeia das grandes plataformas (sanções aceleradas em caso de violação da concorrência, transparência dos seus algoritmos…), mas também financiar a inovação dotando o novo Conselho europeu da inovação com um orçamento comparável ao dos Estados Unidos, para conduzir as novas ruturas tecnológicas, como a inteligência artificial.

Uma Europa que se projeta no mundo deve estar voltada para África, com a qual devemos formar um pacto de futuro. Assumindo um destino comum, apoiando o seu desenvolvimento de maneira ambiciosa e não defensiva: investimento, parcerias universitárias, educação das raparigas…

Liberdade, proteção, progresso. Devemos construir sobre esses alicerces um Renascimento europeu. Não podemos deixar os nacionalistas sem solução explorar a ira dos povos. Não podemos ser os sonâmbulos de uma Europa amolecida. Não podemos permanecer na rotina e nas proclamações. O humanismo europeu é uma exigência de ação. E por toda parte os cidadãos exigem participar na mudança. Até ao fim do ano, com os representantes das instituições europeias e dos Estados, organizemos uma Conferência para a Europa a fim de propor todas as mudanças necessárias para o nosso projeto político, sem tabu, nem mesmo a revisão dos tratados. Esta Conferência deverá associar painéis de cidadãos, auscultar os académicos, os parceiros sociais, os representantes religiosos e espirituais. Definirá um roteiro para a União europeia traduzindo em ações concretas essas grandes prioridades. Haverá divergências, mas será melhor uma Europa parada ou uma Europa que progride por vezes em ritmos diferentes, mas permanecendo aberta a todos?

Nesta Europa, os povos reassumirão verdadeiramente o controlo do seu destino; nesta Europa, o Reino Unido, tenho a certeza, encontrará o seu devido lugar.

Cidadãos da Europa, o impasse do Brexit é uma lição para todos. Devemos sair dessa armadilha e dar um sentido às eleições vindouras e ao nosso projeto. Cabe-vos, a vós, decidirem se a Europa, os seus valores de progresso, devem ser mais do que um parêntese na história. Eis a escolha que vos proponho, para traçarmos juntos o caminho rumo a um Renascimento europeu.

07 de março de 2019

COLAPSO CHAVISTA ARRASTA CASAL DE DITADORES ASSOCIADOS NA NICARÁGUA!

(Editorial de O Globo, 05) Derretimento da Venezuela de Maduro corta oxigênio de Daniel Ortega e de Rosario Murillo

O colapso da ditadura venezuelana tem reflexos diretos na Nicarágua. Sem o fluxo de petrodólares mantido por Caracas, durante duas décadas, e cercado pelas sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos, o casal Daniel Ortega, presidente, e Rosario Murillo, vice, esgotou as possibilidades de continuar com seu regime despótico e, comprovadamente, corrupto.

As punições ao casal de ditadores foram adotadas como resposta à ferocidade da polícia e de grupos paramilitares na repressão aos protestos de civis em todo o país, nos últimos dez meses. Contam-se mortos às centenas, presos aos milhares — muitos torturados, segundo a Igreja Católica e organizações de direitos humanos. Uma estudante brasileira foi fuzilada na capital nicaraguense.

Ortega e Murillo perderam não apenas o rumo, e agora tentam uma saída negociada com a oposição, algo que vinham rechaçando.

Eles transformaram a Nicarágua, um dos países mais pobres, em Estado falido. A administração opera com alto nível de corrupção. O sistema financeiro se deixou contaminar por suspeitas de lavagem de dinheiro vinculado ao narcotráfico.

Há um déficit fiscal estimado em 15% do PIB. Desapareceram os suprimentos de petróleo e de dólares chavistas. Estão bloqueadas as fontes externas de financiamento, inclusive as do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Ao governo Ortega-Murillo restou a alternativa de um apelo por socorro a Taiwan. Conseguiram crédito de US$ 100 milhões, o que é absolutamente insuficiente para cobrir o rombo fiscal deste ano.

Até agora, a família, que administra o país como se fosse uma de suas fazendas, sustentava o poder — e o visível enriquecimento — com base na “cooperação financeira” venezuelana. Receberam um total de R$ 4,9 bilhões nos últimos 11 anos. Foi o preço pago por Hugo Chávez e seu sucessor Nicolás Maduro pelo alinhamento da Nicarágua, como coadjuvante, no jogo de influência de Caracas na América Central.

Esses recursos fluíram para os cofres da Alba de Nicarágua S.A. (Albanisa), empresa binacional de petróleo e derivados. A fortuna do casal Ortega-Murillo se multiplicou na apropriação de parte dos lucros da revenda de óleo bruto e de combustíveis no mercado caribenho.

As sanções à Venezuela congelaram US$ 11 bilhões em exportações do governo Maduro. Imobilizaram a PDVSA, a filial americana Citgo e a subsidiária nicaraguense Albanisa. O castelo de cartas chavista desmorona, arrastando o casal de ditadores associados Ortega-Murillo.

06 de março de 2019

ESCOLAS DE SAMBA!

Artigo de Cesar Maia para Folha de S.Paulo em 13/02/2010.

As rodas de samba do Rio, no início dos anos 30, eram discriminadas como caso de polícia, por estarem dentro de favelas e pela proximidade com o jogo do bicho. O plano Agache (arquiteto francês que cunhou “urbanismo”) para o Rio (1928-32) considerava as favelas provisórias.

Pedro Ernesto (1931-36) foi o primeiro prefeito a subir uma favela. E institucionalizou as rodas de samba. A legislação não permitia subsidiá-las. Pedro Ernesto pediu que todas elas mudassem o nome para uma nomenclatura comum: Grêmio Recreativo Escola de Samba…. A adoção do termo “escola” permitiu a Pedro Ernesto subsidiá-las, e elas passaram a contar com recursos públicos para o seu desenvolvimento. O primeiro desfile oficial, com julgamento, foi em 1935.

Vencido pela Portela, teve como porta-bandeira uma menina prodígio: Dodô. Dodô faleceu em 2015, com 95 anos.

Os desfiles nos carnavais eram basicamente uma apresentação da classe média, com os corsos, os ranchos e as alegorias. O Carnaval incluía enorme diversidade de expressões, como o frevo, o maracatu, as pessoas fantasiadas nas ruas, os blocos de sujos, o concurso de fantasias, os bailes nos clubes e nos teatros…

No início dos anos 60, com a entrada da equipe de Fernando Pamplona no Salgueiro, iniciou-se um processo de radical transformação dos desfiles. O samba enredo era sincopado, os passistas desfilavam soltos, sem alas agrupadas, não havia carros alegóricos, os destaques desfilavam no chão…

A partir daí, as demais expressões do Carnaval começaram a ser incorporadas às escolas de samba e foram desaparecendo. Assim foi com os superblocos (Bafo da Onça, Cacique de Ramos), que rivalizavam com as “escolas”. Corsos, ranchos, fantasias de luxo e alegorias passaram a integrar os grandes carros alegóricos. Os enredos históricos foram abertos.

As “escolas” passaram a desfilar como ópera popular (alas e seus carros como atos, coro dos que desfilam, os atos móveis, apresentados na frente da plateia num auditório latitudinal).

Com a ascensão de Joãozinho Trinta (da equipe de Pamplona, depois na Beija Flor), as “escolas” ganham a característica que têm hoje. As alas desfilam agrupadas como blocos. O samba-enredo passa a ser samba-marcha. E se invertem os papéis. Antes, os corsos, onde o povo olhava a classe média desfilar. Agora desfila o povo, e a classe média assiste.

A venda de ingressos, nos dois dias de desfile e das campeãs, equivale a três anos de venda de ingressos no estádio de futebol brasileiro que mais fatura.

01 de março de 2019

O GLOBO (28/02) ENTREVISTA O PRESIDENTE DA CÂMARA, DEPUTADO RODRIGO MAIA!

P: Os governadores têm pedido um projeto de ajuda aos estados. É possível?

RM: Acho que dá para construir uma grande pactuação na votação da Previdência para que, dentro dela, a gente organize o sistema previdenciário próprio também dos estados, e que a gente possa construir com os governadores uma saída de fluxo de caixa. Vai ter que se chegar a um acordo entre partidos de direita e partidos de esquerda. Eles querem um fundo onde eles possam antecipar receitas futuras. Até 2022, tenho certeza que todo mundo está de acordo. Mas eles precisam ser sócios do Parlamento e do governo na aprovação da Previdência.

P: Pode ser uma proposta votada junto com a reforma?

RM: O que for de emenda constitucional pode ser até dentro. O projeto está pronto. A crítica começou a ser feita. Está na hora de, depois do Carnaval, procurar os governadores e ver em que condições eles querem participar. E temos que discutir no Parlamento e no Executivo se as condições são possíveis de viabilizar ou não.

P: O senhor almoçou hoje (ontem) com Paulo Guedes. Passou a ele a preocupação dos deputados com a votação?

RM: Tenho feito isso publicamente, para que todos tenham a informação correta e ninguém possa dizer que levou um susto se algo fora do planejamento acontecer. Os parlamentares ainda não conseguiram compreender nesse quebra-cabeça qual é o papel deles para que, depois, se possa pensar em projetos de investimento em todas as áreas. Às vezes, as pessoas ficam olhando cargo, orçamento, e não é isso. Tem uma coisa muito maior, como ‘Onde é que eu estou dentro desse projeto de país que o Bolsonaro começou a construir a partir de primeiro de janeiro?’.

P: O que passa na reforma?

RM: O que gera insegurança são pontos muito claros: o Benefício de Prestação Continuada e a aposentadoria rural. E do servidor público há dois grandes debates que vão ser feitos: a não transição dos servidores que entraram antes de 2003 e as alíquotas progressivas. Acho que a alíquota progressiva tem apoio da sociedade. Mas esses são os quatro pontos que mobilizam mais.

P: Nos casos de BPC e aposentadoria rural, já há consenso de que não passa?

RM: Tem que discutir se o impacto fiscal dessas medidas compensa a contaminação da reforma. Do ponto de vista político, é um grande risco, sem dúvida nenhuma. Do BPC eu tenho quase certeza de que o impacto é pequeno porque o Leonardo Rolim já disse. Agora, a aposentadoria rural tem que pegar os números.

P: O senhor acha que o regime de capitalização será aprovado?

RM: A capitalização é um sistema que não tem desequilíbrio, há um futuro melhor para as próximas gerações. Há alguns economistas que dizem que esse sistema não pode ser um sistema de capitalização puro, porque alguns não conseguirão nunca ter uma renda mínima. Mas essa é uma equação que a gente vai ter que discutir, os técnicos vão ter que nos apresentar formulações.

P: O governo já respondeu quando chega o projeto dos militares?

RM: Vai chegar nos próximos dias, depois do Carnaval.

P: Não se discute nada antes de chegar?

RM: Isso os líderes já avisaram. É um dado da realidade.

P: O ministro Paulo Guedes está tendo um choque de realidade?

RM: O ministro nunca tinha tido a oportunidade no setor público, que tem regras diferentes do setor privado. Se você é dono de uma empresa, você implementa um projeto no tempo que você quiser. Para ganhar ou perder. Ele tem uma agenda liberal, eu tenho uma agenda liberal, mas você não tem 308 deputados que chegaram ao parlamento com uma agenda liberal.

P: Há inexperiência do governo em lidar com o parlamento?

RM: O Brasil viveu uma mudança de ciclo, precisamos perceber que a sociedade mandou um recado muito claro. Tudo que representa um momento novo é um aprendizado para todos. O presidente ganhou a eleição com uma narrativa. Ele não pode da noite para o dia dizer que aquela narrativa estava errada. Ele está imobilizado nesta narrativa. E não está errado de estar assim. Ele precisa fazer a narrativa virar realidade, compreendendo que todos os 513 deputados também estão legitimados pelo voto como ele está. E que o governo, para fazer grande reformas, precisa governar com o parlamento.

P: É possível pautar a desvinculação total do Orçamento como quer o ministro Paulo Guedes?

RM: Não estou defendendo a proposta dele porque não está no papel. Mas a ideia de mudar o pacto federativo e inverter a pirâmide, ter um orçamento com mais liberdade, não sei se para a União, mas talvez para estados e municípios, é um debate que fortalece o parlamento.

P: O senhor pretende apresentar o projeto de reforma do serviço público?

RM: Acho que cabe ao Executivo apresentar, pois tem mais servidores. Mas temos que debater. Servidor público, no meu ponto de vista, não tem que ter gratificação. Ele precisa ter carreira. Mas hoje nas carreiras mais importantes do Estado brasileiro, após cinco a oito anos, quase todos os servidores já estão no teto. Aí, o que os estimula são as gratificações. O objetivo de um servidor público nunca pode ser ganhar acima do teto. No Exército, qual é o grande estímulo para um soldado? É chegar a ser general de quatro estrelas. O Itamaraty ainda tem um pouco disso. Mas, fora eles, não tem.

P: É uma discussão mais difícil do que a Previdência?

RM: Eu não acho, porque eu sempre trato daqui pra frente, para construir um estado menos custoso para a sociedade e mais eficiente.

P: Executivos da OAS acusam o senhor de ter recebido caixa dois. Recebeu?

RM: Não recebi. Mas a vida do homem público é assim, nunca pode ficar incomodado quando algum delator, para se salvar, tenta usar a nossa reputação. Cabe a cada um de nós fazer a sua defesa e trabalhar para mostrar à sociedade e à Justiça que a informação não é verdadeira.