31 de outubro de 2019

BRIGA COM A ARGENTINA É INÚTIL!

(Elio Gaspari – O Globo, 30) Brasil e Argentina, além de vizinhos, são grandes parceiros comerciais. Ambos estão com taxas de desemprego de dois dígitos. Um torce para que o crescimento de 2019 chegue a 1%, e o outro rala uma contração da economia. Nesse cenário de ruína, Jair Bolsonaro e o presidente eleito da Argentina resolveram se estranhar. Por quê? Por nada.

Donald Trump briga com Xi Jinping, mas ambos defendem seus negócios. Já houve época em que o Brasil e a Argentina crisparam suas relações por motivos palpáveis, como aconteceu em negociações comerciais e em torno da construção da Hidrelétrica de Itaipu. Mesmo nessas ocasiões, os governos comportavam-se com elegância. Durante uma dessas controvérsias, o presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu: “Não gosto dessa coisa truculenta que não leva a nada. Já temos tantas arestas que é melhor nos pouparmos de acrescentar novas.” Agora, em torno do nada, Jair Bolsonaro e Alberto Fernández romperam a barreira da cordialidade.

Utilizando-se uma medida útil para quem observa briga de rua, foi Bolsonaro quem começou. Em junho ele disse que “Argentina e Brasil não podem retornar à corrupção do passado, a corrupção desenfreada pela busca do poder. Contamos com o povo argentino para escolher bem seu presidente em outubro.” Um mês depois, o candidato Alberto Fernández visitou Lula na carceragem de Curitiba. Domingo, no seu discurso de vitória, ele repetiu o “Lula Livre”, e Bolsonaro classificou o gesto como “uma afronta à democracia brasileira”, recusando-se a cumprimentá-lo pela vitória.

Se diferenças ideológicas justificassem tanta agressividade, os Estados Unidos e a falecida União Soviética teriam começado a Terceira Guerra Mundial no final da década dos 40 do século passado.

Não se pode saber qual é a real agenda de Fernández, mas é certo que por trás da agressividade de Bolsonaro há o nada. Pela primeira vez, desde a nomeação de José Bonifácio para a Secretaria de Negócios Estrangeiros por D. Pedro I, o Brasil não tem chanceler.

Diante do que aconteceu na Argentina e no Chile, o evangelismo bolsonarista tem razões para ficar inquieto. Estaria surgindo uma maré popular na América Latina. Uma coisa é decifrar a alma das ruas, bem outra é acreditar que o monstro da opinião pública deve ser desprezado. O PT, que menosprezou as manifestações de 2013, que o diga.

Çábios da ekipekonômica do doutor Paulo Guedes produziram um documento ensinando que “atribuir os recentes protestos sociais ocorridos no país (o Chile) a um mau desempenho econômico e social, comparativamente aos países latino-americanos, não é uma posição corroborada pelos dados”. Falta avisar aos chilenos, que moram lá.

O governo de Dilma Rousseff isolou-se quando fechou-se, alimentando teorias conspirativas. Bolsonaro faz do seu excêntrico isolamento uma plataforma realimentadora de ilusões. Veja-se uma de suas últimas tuitadas: “Chile, Argentina, Bolívia, Peru, Equador… Mais que a vida, a nossa LIBERDADE. Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!”

Bolsonaro, um mestre na arte de perder amigos e fazer inimigos, sente-se cercado por hienas e tuitou uma pequena paródia do filme “Rei Leão”, como se ele fosse o Simba. Faltou lembrar que as hienas só comeram o tio (e rei) Scar, que se aliou a elas.

30 de outubro de 2019

AMÉRICA LATINA VIVE ENTRE ELITES E POPULISTAS PREDADORES!

(Martin Wolf, analista-chefe do Financial Times – O Globo, 27) Protestos que parecem varrer o mundo, da França ao Chile, têm causas comuns, ligadas a oportunidades limitadas e ao aumento da desigualdade, na avaliação de Martin Wolf, principal analista econômico do jornal liberal britânico Financial Times. Desde a crise financeira de 2008, Wolf vem escrevendo artigos cada vez mais agudos sobre o que chama de “capitalismo rentista”, que segundo afirma põe em risco a democracia no Ocidente ao fazer com que as pessoas deixem de acreditar que podem ter acesso aos benefícios do sistema. Em entrevista ao GLOBO, ele diz que não ficou surpreso com a revolta no Chile e faz uma avaliação pessimista da situação da América Latina, que, na sua visão, ficou presa na armadilha da renda média e vive entre o que chama de “elites predadoras” e “populistas predadores”.

O mundo assiste à eclosão de revoltas populares. Há algo em comum nesses movimentos?

Eles claramente têm algumas características comuns. Provavelmente também está em curso algum efeito demonstração. Isso é parte do que aconteceu em 1968. Há causas em comum também: oportunidades relativamente limitadas, serviços públicos de má qualidade e altos níveis de desigualdades. Não obstante, esses lugares são muito diferentes entre si.

No caso da América Latina, o fim do “boom” das commodities levou os países a um novo ciclo de ajuste fiscal. Parece que a receita não está surtindo efeito. Existem alternativas?

Há poucas alternativas. Se um governo não pode tomar crédito nem aumentar os impostos, ele tem de cortar gastos. É claro que deveria tentar fazer isso de um modo que garanta o crescimento econômico.Mas isso,eis aquestão,é muito difícil de se fazer.

O Chile era considerado um exemplo por combinar uma política fiscal austera com a redução da pobreza. O que deu errado?

O Chile tem uma economia e uma sociedade altamente desiguais, apesar do seu relativo sucesso econômico. É, na verdade, a economia mais desigual entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Portanto, esses protestos não me surpreenderam em nada.

O que é o “capitalismo rentista” a que o senhor se refere e como pode ser reformado?

O capitalismo rentista é um sistema a partir do qual as elites empresariais e financeiras vivem principalmente do monopólio e da competição monopolista. Rentismo, mais precisamente, é quando a renda fica além e acima daquela necessária para atrair a oferta de mercadorias, serviços ou fatores de produção relevantes [esses fatores incluem o próprio capital, o trabalho e os meios de produção, incluindo a terra]. A ascensão do monopólio aconteceu por diferentes razões: implementação deficiente das regras de concorrência, proteção excessiva da propriedade intelectual, governança corporativa fraca e recompensas excessivas para a gerência corporativa, queda da eficácia dos sindicatos, exploração disseminada de paraísos fiscais, e, sobretudo, o crescimento do mercado financeiro predatório. Reformas serão necessárias em todas essas áreas para reverter essa situação.

Em 2008, entendeu-se que a desregulamentação dos mercados teria ido longe demais. O que faltou na resposta à crise financeira?

Certamente houve alguma “re-regulamentação”, especialmente no sistema bancário. A questão é saber se foi suficiente para torná-lo seguro. A minha visão pessoal é a de que os perigos criados pelas instituições financeiras altamente alavancadas e “grandes demais para falir” ainda existem. Também vejo um risco crescente de desregulamentação, especialmente nos EUA, o que poderia ser muito perigoso.

O senhor escreveu que as economias ricas ficaram mais parecidas com as da América Latina. É possível fazer as economias latino-americanas se parecerem mais com as ricas?

Parece pouco provável que isso aconteça. As evidências indicam que nos últimos 40 anos todos os países latinoamericanos descobriram ser impossível saltar da condição de países de renda média para países de alta renda. Isso sugere fraquezas profundas em seus sistemas econômicos e políticos. Para mim, as maiores dificuldades parecem estar no ciclo entre o controle por elites predadoras, de um lado, e o controle por populistas predadores, de outro. Entre muitos aspectos, os resultados disso foram as baixas taxas de poupança nacional, populações com baixos níveis de educação e empresas pouco competitivas internacionalmente, à exceção de alguns setores, em especial ligados às commodities.

O senhor diz que os sistemas tributários se tornaram mais regressivos, sem justificativa econômica. A questão está presente no debate europeu sobre como taxar mais as gigantes da tecnologia. O que impede mudanças?

É difícil taxar empresas cuja localização não pode ser determinada com facilidade, como é o caso das grandes companhias de tecnologia. Além disso, para tributar empresas como essas é preciso cooperação entre as autoridades tributárias. Mas esses negócios também são poderosos lobistas, o que torna essa cooperação internacional ainda mais complicada.

É possível conter as altas taxas de desemprego entre os jovens e ao mesmo tempo lidar com o impacto das novas tecnologias no mercado de trabalho?

Acredito que sim. O Reino Unido tem uma taxa de emprego razoavelmente alta, mesmo entre os jovens, e está exposto a novas tecnologias. O desempenho do mercado de trabalho é determinado principalmente pela disponibilidade de mão de obra qualificada e pela qualidade das políticas voltadas a este mercado.As tecnologias ainda poderão destruir uma grande quantidade de empregos em termos líquidos. Mas isso ainda não aconteceu. Uma questão mais grave pode ser seu impacto na desigualdade.

A internet e as mídias sociais têm relação com os protestos que estão acontecendo no mundo neste momento?

Certamente. O populismo de hoje, que é menos organizado e disciplinado do que o da década de 1930, está ligado à facilidade da disseminação de propaganda e de mentiras deslavadas a partir das mídias modernas. No entanto, a explosão da demagogia não teria acontecido se o terreno já não tivesse sido fertilizado por mudanças econômicas e culturais.

A atual guerra comercial e tecnológica entre EUA e China dificulta a tarefa de reformar o capitalismo?

Ela torna tudo mais difícil, uma vez que faz com que o que poderia ser uma energia valiosa para promover reformas vire um conflito comercial conduzido pela xenofobia. Há questões importantes a serem discutidas com a China. Mas a China não causou o mal-estar econômico e social nos EUA. Culpá-la não fará o mal-estar desaparecer. A China virou um bode expiatório. E isso é sempre um perigo.

29 de outubro de 2019

UM CENÁRIO DESFAVORÁVEL PARA O PODER POPULAR!

(Leonarco Avritzer, mestre em filosofia pela FFLCH-USP e professor do Instituto Sidarta e do Colégio Nossa Senhora do Morumbi –  O Estado de S. Paulo, 27)

Seu livro centra suas preocupações entre dois pontos de referência: o processo democratizante das instituições e seu refluxo antidemocrático no caso brasileiro. Para esse movimento pendular, o senhor elege um vértice, a distância entre a soberania popular moderna (demos) e a orientação das decisões institucionais. Como diferenciar essa distância entre os dois cortes históricos que o livro apresenta: 1946-64 e 1988-2013? Ela se comporta, mesmo que formalmente, da mesma maneira?

O argumento do meu livro é que é que tanto a conjuntura 1946-64, quanto a conjuntura a partir de 1988-2013 são conjunturas pendulares. No entanto, são conjunturas pendulares de formas diferentes. Entre 1946 e 1964, quase não se colocava a questão da autonomia do poder judiciário, enquanto ela é central entre 1988 e 2013 devido ao novo formato dado ao poder judiciário pela Constituição de 1988. Já no que diz respeito à questão dos militares, ela era muito mais relevante entre 1946 e 1964, quando o Brasil presenciou diversas tentativas de intervenção militar. Já no período atual, a questão do impeachment adquiriu uma nova centralidade. O problema, no entanto, é: ainda que certas instituições, como os militares e o poder judiciário, tenham um papel diferente na conjuntura 19882013 eles continuam tendo um papel de conseguir reverter o pêndulo democrático independentemente da soberania popular e da forma do Estado de direito no texto constitucional.

Alguns dos recursos institucionais do Executivo (de sua eficiência e relevância no cenário pós-88) são heranças de uma certa ‘vontade institucional’ da Ditadura Civil-Militar, que colocou o presidente como um orientador central, agora burocrático-legal (não mais de exceção, como na Ditadura), de políticas públicas. Como pensa esse ponto institucional de origem?

Em relação aos setores institucionais do poder executivo, eu diria que o Brasil tem um poder executivo forte desde a Era Vargas e que a força do poder executivo no Brasil não se desfez depois da redemocratização de 1946. Nesse sentido, acho que se poderia falar de uma vontade institucional forte do poder executivo como orientador de todo o processo burocrático no Brasil desde os anos 1930. O que muda na verdade na tradição jurídico-legal brasileira são as novas prerrogativas adquiridas pelo STF e pelo Ministério Público a partir da Constituição de 1988. O problema, no entanto, é que independentemente do fato de nós termos um executivo muito forte, o Brasil continua tendo um desequilíbrio que é provocado pelo fato de o Congresso ser sempre fraco e, quando ele é forte, é capaz de derrubar o governo se o governo estiver em minoria. Ao mesmo tempo, nós temos um poder judiciário que quer se transformar no próprio elaborador das políticas públicas, o que é completamente inadequado.

Muito se diz, hoje, sobre um parlamentarismo brando que seria responsável pela ‘porção racional’ da atual configuração do governo brasileiro. O caráter dito reformista deste parlamento aparece como reação democratizante em meio aos impulsos antidemocráticos?

Não tenho dúvidas que nós temos no Brasil, nesse momento, uma configuração positiva dentro do parlamento, especialmente dentro da Câmara dos Deputados, que faz com que alguns elementos que faltam completamente ao governo Bolsonaro – como por exemplo a capacidade de negociação de suas propostas políticas ou a capacidade de articulação das propostas no centro do espectro político – tenha ocorrido no parlamento. De fato, o parlamento no caso brasileiro hoje aparece mais democratizante depois de uma gestão absolutamente desastrosa sob a direção de Eduardo Cunha. O que se espera é que esses novos impulsos democráticos no parlamento continuem.

O professor Rogério Arantes, em ‘Ministério Público e a Política no Brasil’ (Edusp, 2002), fala sobre o voluntarismo ideológico-político do Ministério Público brasileiro e como essas mudanças são essenciais para a nova configuração da burocracia do Estado brasileiro. Como essa ‘gestação’ de quase 20 anos de fortalecimento do MP surgiria na descrição dessa resultante pendular de que trata seu livro?

Nesta atual crise brasileira, não tenho dúvidas que o papel do Ministério Público volta a ser colocado em questão. O Professor Rogério Arantes, de fato, em seu livro Ministério Público e Política no Brasil, foi o primeiro a falar de um certo voluntarismo no MP, e também falar da própria ideia que Avritzer compara os períodos de 1946-64 e de 1988-2013 existe no MP uma visão acerca da hipossuficiência do eleitorado ou das formas eleitorais do País. Estas elaborações muito preocupantes em relação à organização burocrática do Estado tem se tornado cada vez mais fortes no MP. A ideia de uma autonomia do MP, que eu acho que fez muito sentido durante o momento da elaboração da carta Constitucional de 1988, era a de tentar combater a inefetividade de uma certa tradição legal pela via de atores independentes capazes de defender a legalidade e o estado de direito. No entanto, a gente vê hoje, 20 anos depois, que existe um voluntarismo total associado a uma politização indesejável. Então, o Ministério Público certamente é parte desse movimento pendular descrito no livro.

E, para finalizarmos, qual a principal interferência (se é que há em sua visão) que percebe nesse movimento pendular democrático brasileiro dos (não tão) novos desafios do capitalismo globalizado e contemporâneo que incidem sobre o Brasil e suas configurações institucionais?

Sem dúvida nenhuma não podemos deixar de lado a questão de um movimento global do capitalismo, de financeirização, e de questionamento de direitos, que não é só brasileiro e que tem presença forte nesse movimento pendular descrito. Não tenho dúvida que Donald Trump teve sua vitória em estados onde existe uma classe trabalhadora branca, bem remunerada nos EUA e que é perdedora do próprio processo de globalização no país. O caso brasileiro é um pouco diferente, porque na verdade o ator que acaba se colocando como ator antidemocrático não é uma classe trabalhadora bem remunerada, mas é uma classe média baixa que é mais perdedora de um novo processo de reorganização do estado do que um processo de reorganização do capitalismo global. De todas as maneiras, os movimentos do capitalismo global afetaram sim a crise brasileira através da diminuição do preço das commodities, do aumento do custo de políticas sociais que incide diretamente sobre a crise fiscal do estado brasileiro.

28 de outubro de 2019

REJEIÇÃO E NOVATOS NA SUCESSÃO DA CÂMARA!

(O Estado de S. Paulo, 27) Rodrigo Maia não revela nem a aliados fidelíssimos seus planos para quando o mandato de presidente da Câmara terminar. Quem o conhece bem, no entanto, observou, em conversa com a Coluna, que, se há alguma chance de reeleição para Maia, ela está baseada em três fatores: 1) a rejeição aos nomes do Centrão até agora colocados na sucessão; 2) o trânsito livre dele nos partidos; 3) a boa relação (suprapartidária) de Maia com a “turma da renovação”, que tem, entre outros, Tabata Amaral, Kim Kataguiri, João Campos, Filipe Rigoni e João Roma.

Aguinaldo Ribeiro (PB) e Arthur Lira (AL), ambos do PP (e do Centrão), estão posicionados para ocupar o lugar de Rodrigo Maia em 2021. Enfrentam forte resistência dentro e fora da Casa.

Enquanto Jair Bolsonaro virou as costas, Maia trabalhou pelo Fundo Eleitoral e por todos os projetos que fortalecem os partidos e seus dirigentes.

Da direita até a esquerda, com escala no centro, novatos estão encantados com a atenção de Maia a seus projetos. Temem retrocesso com um nome 100% Centrão.

Fora do Congresso, a pressão para a manutenção de Maia no comando da Câmara será feita, conforme essa linha de raciocínio, pelos mercados e pelo setor produtivo: é ele o fiador das reformas.

A Constituição proíbe a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado dentro de uma mesma legislatura. Mas articulações sobre uma PEC alterando a regra volta e meia emergem no Congresso.

Maia não apoia a mudança na regra. Davi Alcolumbre, presidente do Senado, sim.

No meio do tiroteios entre as alas “bivarista” e “bolsonarista” do PSL, o ministro Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) cancelou todas as agendas com parlamentares no partido nesta semana.

Achou por bem remarcar os encontros para evitar qualquer especulação sobre intervenção do Planalto. Ligou para ao menos quatro deputados, das duas “alas”, se justificando.

Os recentes sinais verdes de Lula para as candidaturas do PT a prefeito foram interpretados no bloco de esquerda como prova de que é impossível confiar no partido para formar alianças: a prioridade continua sendo usar as eleições na defesa do ex-presidente.

O PT paulista já avalia que, se Fernando Haddad não se apresentar para a eleição 2020, o partido deverá ter prévias para definir o candidato a prefeito de SP. Nenhum dos ao menos cinco aspirantes que se colocaram até aqui está disposto a abrir mão de lutar.

Tem tucano a sugerindo Joice Hasselmann (PSL) como vice de Bruno Covas na disputa do ano que vem. Como prêmio, ela ganharia a promessa de ser candidata em 2024. Se vencer, Covas não poderá mais se reeleger.

Autor de Irmã Dulce, a Santa dos Pobres (editora Planeta), o jornalista Graciliano Rocha diz o que a biografia pode ensinar para os políticos: “Tolerância. Ela conversava com a direita e a esquerda”. O senador José Serra (PSDB-SP) devorou o livro.

Chamado no Congresso de “primeiro ministro” e com o nome no jogo de 2022, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cobrou “mais responsabilidade” dos pré-candidatos à sucessão do presidente Jair Bolsonaro e disse que ninguém sobreviverá a três anos de campanha. “Não está na hora de tratar de eleição. Isso é um suicídio coletivo”, afirmou Maia ao Estado. Nos bastidores, porém, o deputado se movimenta para organizar a centro-direita em torno de uma agenda liberal e conversa com vários outros prováveis concorrentes ao Planalto, como o apresentador de TV Luciano Huck e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

A crise no PSL, partido do presidente, pode atrapalhar as votações no Congresso?

Não porque briga política acontece em todos os partidos. Agora, os deputados do PSL foram eleitos com uma agenda de modernização do Estado e ninguém vai votar contra o eleitor. Suicídio na política eu nunca vi.

A reforma da Previdência foi aprovada após oito meses de tramitação. O que vem pela frente?

O resultado da Previdência marca um novo tempo na política. A gente pode pensar em soluções para reduzir a pobreza, a desigualdade, a qualidade do ensino, da segurança pública. Então, quando a gente fala na reforma administrativa como segundo item (da pauta), já vem na cabeça de muitos: “Vai cortar salário”. E não é isso.

É possível votar uma reforma administrativa em ano eleitoral?

Não vejo problema nenhum. O eleitor que vai votar em 2020, 2022 está contra esse Estado, que cobra muito, serve pouco e ainda tira dele. Essa é a verdade. Não podemos esquecer que o salário do servidor público federal, na média, é o dobro do setor privado.

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), disse que a reforma tributária ficará para 2020…

Se ele fala pelo governo, não fala por todo o Senado. A gente é tão duro na Previdência e quer ser generoso na tributária? Não é possível que a gente, vendo o que está acontecendo no Chile, ache que a reforma tributária não seja urgente. Não é economizando R$ 800 bilhões em dez anos (na Previdência) que vamos ativar a economia. A reforma tributária estimula o investimento e é a mais importante para garantir o crescimento sustentável.

O Brasil pode enfrentar os mesmos protestos do Chile?

Nós precisamos ter uma agenda que destrave a economia. O nosso tempo não é tão longo. Não dá para dizer “Ah, não vou enfrentar o auditor fiscal nem o servidor do Congresso, do Judiciário, do Ministério Público.” Foi assim que a gente foi fazendo e deixou para brigar depois. Nós pioramos a situação do Estado brasileiro. Então, está na hora de enfrentar. Esse é o caminho para que o eleitor amanhã não coloque nas ruas os problemas e frustrações de hoje.

Uma reforma ministerial é necessária para melhorar a articulação política do governo?
Essa preocupação em construir um governo de coalizão eu tive até abril, quando vi que o presidente não tinha interesse. Estou convencido de que, para o Parlamento, tem sido muito melhor assim do que com um governo de coalizão.

Por que?

Governo de coalizão reduzia a nossa importância. Veja que hoje a nossa preocupação em não entrar em pautas-bomba é muito maior do que foi no passado. Se estamos reduzindo despesas de um lado, fica estranho votar projetos que aumentem gastos de outro.

Mas o presidente Jair Bolsonaro voltou atrás e agora quer uma aliança com os partidos. Ele cedeu à chamada “velha política”?

Quando converso com o presidente, eu não trato desses assuntos. No início do governo eu tratei e não foi bom. Eu trato da pauta. Procurar partidos para conversar não significa voltar atrás. O diálogo é fundamental.

O sr. já teve vários atritos com Bolsonaro. Passados quase dez meses de governo, entende melhor a cabeça dele?

A gente está tendo um bom diálogo, transparente, aberto. O tema das armas, por exemplo, eu sou contra, mas vou pautar. Não sei qual a maioria que o governo tem para as armas, mas vou cumprir minha palavra.

E o pacote anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro?

Será votado neste ano. Em mais uma ou duas semanas estará pronto para ir ao plenário.

Bolsonaro disse ao que pediu para o sr. pôr em votação um projeto de transformar Angra em Cancún. O que o sr. acha ?

Não é um projeto simples. Tem um impacto muito grande no meio ambiente. É preciso tomar um certo cuidado, no atual momento, com esses temas. Isso tem, inclusive, prejudicado o Brasil na tramitação do acordo Mercosul-União Europeia.

E agora ainda há o derramamento de óleo no Nordeste…

Temos de cobrar do governo a estrutura necessária para que tragédias como essa sejam evitadas. E pensar no que pode ser feito no curto prazo pelo Parlamento para reduzir o dano de famílias que vivem do turismo.

O sr. tem conversado muito com o apresentador de TV Luciano Huck. Pode sair daí um acordo para a eleição de 2022?

Converso com o Luciano Huck, com o Doria (João Doria, governador de São Paulo e pré-candidato do PSDB) e com todo mundo. Não está na hora de tratar de eleição. Isso é um suicídio coletivo. Nós estamos com a desigualdade social e a pobreza aumentando e preocupados com eleição?

O que o sr. acha de uma possível fusão do DEM com o PSL?

Eu acho que o PSL tem de resolver o seu problema primeiro. Nós temos bons candidatos a governador, poderia ser uma sinergia daqui a dois, três anos. Você tem um partido (PSL) que não possui estrutura política, mas tem tempo de TV e como bancar as campanhas. Mas ninguém faria uma fusão com o PSL atropelando o presidente da República.

Só que as pessoas têm pretensões políticas…

Pretensão política é uma coisa, mas ficar dizendo “Ah, não aprovo as coisas do Bolsonaro porque ele pode ser candidato à reeleição” não dá. Se a desigualdade no Brasil estiver menor, ótimo que ele seja reeleito. Espero que o motivo de uma eventual reeleição dele seja o de que o Brasil mudou, e não a polarização com o PT, ele contra Lula. Que seja ele, que seja o Luciano, que seja qualquer um. Desculpe, mas com todo respeito a todo mundo que já está pensando em 2022, vamos colocar responsabilidade na nossa agenda.

Mas foi o próprio presidente que se lançou à reeleição…

Ele já entendeu que não está na hora de política eleitoral. Não é bom para ninguém. Quem começar agora não vai chegar ao final. Não há ser humano que sobreviva a três anos de campanha.

O sr. mencionou o ex-presidente Lula, que está inelegível. Acha que a condenação será derrubada e ele poderá ser candidato?

Acho difícil ele ficar elegível.

E em 2022 o sr. será candidato a presidente?

É tão difícil você avaliar quem vai ter condição de ser candidato a presidente. Agora, se você me perguntar se eu pretendo ser candidato a governador do Rio, eu respondo: “Não”.

Então, por exclusão…

Gosto de ser deputado.

25 de outubro de 2019

O CICLO DA FRUSTRAÇÃO!

(William Waack – O Estado de S. Paulo, 24) Crises na América do Sul têm perigoso denominador comum: frustração diante da demora em romper a estagnação.

Não é difícil encontrar um denominador comum para as sucessivas e paralelas crises que tomaram conta (por ordem alfabética) de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela, para ficar apenas com a América do Sul. O “ciclo” atual desses países é o da “era do descontentamento”. Ou da era da frustração, como preferir.

Em seu conjunto, os países desta região só se comparam aos do Oriente Médio quanto ao número de seus habitantes que declaram ter vontade de seguir a vida em outro lugar (no Brasil, alcança a faixa dos 30%; fonte é o Gallup). São os países nos quais existe a mais aguda percepção no planeta de que seus regimes políticos são tomados pela corrupção. E os de mais baixo desempenho econômico na comparação com todas as outras regiões.

Tomados individualmente, cada um desses países teria razões próprias, locais, culturais e históricas para os períodos de crise econômica, turbulência e instabilidade políticas. Mas há algo comum a todos: um sentimento difuso de frustração trazido pela demora em romper a perceptível estagnação que caracteriza um conjunto de nações preso à armadilha da renda média, e cuja distância em relação aos países mais avançados continua praticamente a mesma de uma geração atrás.

A punição a quem está no poder é quase imediata, não importa se de esquerda ou direita. Na Argentina, no Chile ou no Brasil, recentes resultados eleitorais dividem um mesmo pano de fundo: um acentuado desejo de mudança trazido menos pela esperança num futuro melhor e muito mais pela indignação com a corrupção, medo com a criminalidade e profunda desconfiança na capacidade do “sistema” de resolver problemas agudos – “sistema” passa a ser tudo, da administração pública à imprensa, passando (claro) pelo Judiciário. Ganha quem prometer derrotar o “sistema”.

Acabam sendo literalmente catapultados para o centro de decisões figuras de políticos de personalidades e biografias bastante diversas (como são Bolsonaro, Macri e Piñera, para ficar apenas nos casos de Brasil, Argentina e Chile), mas todos herdeiros de contextos políticos caracterizados, de um lado, por ausência de claras maiorias parlamentares. E pela presença, por outro lado, de bem constituídos grupos de interesses e corporações dentro da máquina do Estado (Brasil e Argentina), por delicadas situações fiscais que obrigam os governos a reduzir ou acabar com subsídios em setores como combustíveis ou transporte (Chile), no que acaba sendo entendido como afronta a uma população já atravessando graves dificuldades.

Todos apresentam um quadro muito semelhante de desequilíbrio, concentração e desigualdade de renda. É consideravelmente distinto o apego de faixas da população a postulados ideológicos quando se compara o Chile (onde há um espectro clássico de “social-democracia” versus “democracia cristã”), Argentina (e seu peronismo, que dificilmente encontra comparações) e o Brasil (no qual impera uma maçaroca ideológica). Em geral, porém, parcelas significativas da população, embora não detenham conhecimento exato das respectivas taxas de crescimento de suas economias, têm uma noção clara do fato do prometido futuro tardar tanto a chegar.

A questão, portanto, não é a do “contágio” ao qual vozes do governo brasileiro se referiram quando, finalmente, perceberam a gravidade do que acontece em vizinhos como Argentina e Chile. Muito menos se trata de alguma “conspiração” (o “esquerdista” Evo Morales está sendo contestado assim como os “direitistas” no Chile e Argentina). A questão é levar adiante reformas amplas e profundas que rompam um ciclo de estagnação.

Que, ao se transformar em ciclo de frustração, cobra altíssimo preço político.

As crises nos vizinhos sul-americanos têm poderoso e perigoso denominador comum.

24 de outubro de 2019

CHILE! UMA ANÁLISE DE UM DIRIGENTE DEMOCRATA DE CENTRO-DIREITA! SEMPRE LÚCIDO!

Don Cesar.

A coisa é muito séria aqui, mas temos que distinguir duas coisas.

Uma primeira questão é a demanda social legítima da classe média e baixa do Chile, que vive muito sufocada em um país que cresce e mostra riqueza por todos os lados, mas que tem a sensação de que essa riqueza não chega a eles.

Isso não é inteiramente verdade porque o crescimento do país também melhorou sua qualidade de vida, que é indiscutível e os números confirmam, mas eles se sentem assim, não importando os números, e contra isso não há nada a fazer. Gostaria de levá-los em uma turnê pela América Latina e deixá-los por dois meses em algum país da América Central, mas infelizmente não posso fazê-lo.

Nesse sentido, nosso governo gerou muitas promessas que não foram cumpridas e que agravam a situação. Prometemos segurança, melhor saúde, melhor educação, soluções de transporte e, se por um lado as coisas estão melhorando, nada é imediato, ainda que as novas gerações pensem assim. Antes eram os estudantes, agora são as famílias e a classe média que se cansaram. Espero que o governo faça algo concreto em breve, porque com anúncios genéricos, como ouvimos até agora, a demanda não será silenciada.

Uma segunda questão é a da extrema violência e saques que ocorreram em Santiago. 78 das 130 estações de metrô de Santiago ficaram gravemente danificadas, mais de 110 hipermercados foram saqueados ou destruídos, arrastões em todas as cidades do Chile e destruição de propriedades públicas em todos os lugares. Nisto, claramente, a esquerda, grupos subversivos e criminosos aproveitaram a oportunidade e, diante da passividade inicial do governo, tornaram a coisa incontrolável.

Mas cuidado, embora a extrema esquerda tenha sua parcela de culpa, isso não é de forma alguma mérito exclusivo dela. Eles não têm nem capacidade nem base política para fazê-lo. Por exemplo, na queima das estações de metrô, o mesmo modus operandi é identificado, configurando certa organização, mas eu entendo que são grupos subversivos que podem estar ligados à extrema esquerda, mas não são controlados por eles.

O pior de tudo é que, na minha opinião, a polícia e, com maior razão, o exército, agem apenas superficialmente, permitindo que esses grupos atuem bastante, porque sabem que seu destino é a prisão e a perseguição subsequente; portanto, em muitos casos, há um desamparo total.

Não sei onde isso vai parar, porque percebo descontrole e a ausência de um acordo político para avançar propostas concretas que possam aplacar, mesmo que em parte, a grave crise política e social que está ocorrendo.

23 de outubro de 2019

O QUOCIENTE ELEITORAL COMO REFERÊNCIA!

(Maurício Costa Romão) Duas mudanças na legislação eleitoral aprovadas na reforma de 2017 – (a) a abertura para partidos disputarem sobras de votos, mesmo que não tenham atingido o quociente eleitoral (QE), e (b) ofim das coligações proporcionais – têm suscitado discussões sobre o que representa hoje o próprio QE.

Antes de 2017 só poderiam ascender ao Parlamento e participar da distribuição das sobras de votos partidos (ou coligações) que tivessem ultrapassado o QE (aqui o quociente era uma barreira à entrada).

Agora, liberada a disputa de vagas legislativas por sobras de votos, essa ascensão é permitida a qualquer partido ainda que não haja atingido o QE(neste caso o quociente passa a ser apenas uma referência).

Dessa maneira, esse novo contexto normativoenvolve uma revisão conceitual do QE, que deixade funcionar como uma “cláusula” de barreira e torna-se um parâmetro referencial.

Temos advertido, todavia, que a abertura suscitada pelas novas regras para ascensão ao Legislativo exige do partido situado no pelotão de baixo do QEuma certa densidade eleitoral, isto é, que tenha votação próxima do próprio QE (condição necessária).

Satisfeita esta exigência preliminar, a condição suficiente para tal partido obter assento no Parlamento é a de que sua votação esteja entre as maiores médias de votos nas rodadas de distribuição de vagas por sobras eleitorais.

Tais requerimentos não são triviais. Com efeito, a evidência empírica da eleição de 2018 mostrou que são raros os casos de partidos ou coligações que não alcançaram o QE e lograram conquistar vaga por sobras de votos. A imensa maioria dos disputantes não consegue cumprir com as duas condições simultaneamente. Neste sentido, para tais partidos, o QE ainda é percebido como barreira à entrada no Parlamento.

O fim das coligações proporcionais deve que ser compreendido também nesse contexto referencialdo QE.

De fato, sem coligações, um partido, isoladamente, só consegue ascender ao Legislativo se tiver musculatura de votos para ultrapassar o QE, ou se sua votação satisfizer as condições necessária e suficiente acima aludidas.

Simulações sobre a eleição de vereadores em 2020, no Rio de Janeiro, apontam que cerca de 49% dos partidos que disputaram a eleição passada terão poucas chances de, isoladamente, eleger parlamentares no próximo ano (nas nove capitais do Nordeste esse percentual chega a 62%, em média).

É oportuno aduzir, por último, que os sistemas proporcionais têm sempre um desafio matemático a resolver: como dividir as vagas de um Parlamento entre os partidos concorrentes, de acordo com a proporção de votos por eles obtida?

São vários os métodos empregados para resolver essa divisão. No Brasil, e na maioria das democracias contemporâneas, o método utilizado é o de D’Hondt, às vezes chamado de método das maiores médias.

Pois bem, todos os métodos necessitam de um ponto de partida, uma base, uma métrica, para proceder à transformação de votos em vagasparlamentares. Essa métrica no Brasil é o QE.

A legislação recém instituída em 2017 apenas ensejou uma interpretação mais flexível para o QE. Não alterou em nada a sua essência. Ele continua existindo, sendo calculado como sempre foi, e separando pelotão de cima do pelotão de baixo.

22 de outubro de 2019

POR QUE O BRASIL FRACASSA!

(Claudio Adilson Gonçalez – O Estado de S. Paulo, 21) Na obra Why Nations Fail (Por que as Nações Fracassam), que já se tornou um clássico, os economistas Daron Acemoglu (MIT) e James A. Robinson (Universidade de Chicago), baseados em detalhadas pesquisas e análises históricas, mostram por que algumas nações prosperam, enquanto outras se mantêm na pobreza, com profundas desigualdades sociais. Para eles, a causa principal está na qualidade das instituições políticas. Países onde determinados grupos se apropriam do Estado tendem a praticar políticas voltadas aos interesses dessas elites, não em benefício do conjunto da sociedade. As oportunidades de ascensão econômica dos cidadãos são mínimas e se inibem a criatividade, as inovações, os investimentos e o crescimento econômico. É isso que os autores chamam de políticas excludentes, contrariamente às políticas inclusivas, praticadas nos países que alcançaram a prosperidade econômica.

No último dia 15, em evento promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo, em parceria com o Broadcast, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, afirmou que o Estado brasileiro – incluindo o atual sistema tributário – tem funcionado, nos últimos 30 anos, para atender a interesses individuais, e não coletivos. “Construímos um Estado que foi capturado pelas corporações públicas e segmentos do setor privado, com muitos incentivos fiscais. O Estado que construímos custa muito e atende apenas uma parte da sociedade.” Essas afirmações foram cirúrgicas e ressaltaram a espinha dorsal do baixo crescimento econômico brasileiro.

Há muita coerência entre o que disse Maia e as conclusões de Acemoglu e Robinson. O Estado brasileiro, mesmo antes da República, foi capturado por elites que detêm o poder econômico e por corporações, como a dos altos funcionários públicos. Até a 2.ª Guerra Mundial, predominou a aristocracia rural. Posteriormente, este espaço político passou a ser dominado por grandes empresas, com maior capacidade de pressionar as autoridades no Legislativo e no Executivo para atender a seus interesses. Os escândalos de corrupção da era petista foram só a ponta desse imenso iceberg.

Isso nos levou a criar um Estado caro, ineficiente e incapaz de atender às necessidades da maioria da população, ou até mesmo pouco interessado em assim proceder. Distribuímos incentivos fiscais a quem tem maior poder de pressão, sem qualquer análise dos seus custos e benefícios. Nosso sistema tributário é complexo, gerador de litígios, distorce a alocação eficiente de recursos, inibe os investimentos, além de ser extremamente regressivo.

Reformas como a administrativa e a tributária, por exemplo, são cruciais para corrigir essas distorções, mas encontram enormes resistências para progredirem porque contrariam os interesses das elites favorecidas. O enfrentamento de tais resistências só seria possível se os Poderes Legislativo e Executivo trabalhassem em conjunto e guiados por um programa de governo focado nesse objetivo.

Nada disso se vê no governo de Jair Bolsonaro. O presidente parece pouco consciente dessas questões e foca sua atenção na caça de comunistas, na pauta de costumes, nas tentativas frustradas de armar a população e no atendimento de seus interesses familiares.

Mesmo o Ministério da Economia, onde encontramos quadros técnicos de alta competência, tem mostrado pouca capacidade de gerar propostas concretas e de manter um diálogo produtivo com o Legislativo. Medidas mirabolantes são anunciadas de forma açodada, sem que tenham sido devidamente estudadas e elaboradas. O Legislativo, principalmente a Câmara dos Deputados, tenta assumir o protagonismo das reformas, mas, sem um forte envolvimento do Executivo, a tarefa torna-se extremamente difícil.

Enquanto o Brasil não realizar uma profunda reforma do Estado, capaz de construir um sistema político inclusivo, continuará fracassando.

21 de outubro de 2019

‘GRUPOS NÃO ESTÃO RENOVANDO OS PARTIDOS’!

(O Estado de S. Paulo, 20) Estudioso do sistema eleitoral brasileiro, o cientista político Jairo Nicolau, pesquisador do FGV CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), atribui a ascensão dos chamados grupos de renovação da política à crise enfrentada pelos partidos tradicionais que, segundo ele, estão se transformando em “instituições paraestatais”, tamanha a “dinheirama” que recebem dos cofres públicos. Autor de livros como Representantes de Quem? Os (Des)caminhos do seu Voto da Urna à Câmara dos Deputados, Nicolau lamenta, nesta entrevista ao Estado, que esses movimentos estejam renovando a política, mas não os partidos, imprescindíveis em qualquer democracia. Confira os principais trechos da entrevista:

Os grupos de renovação estão ocupando o espaço dos partidos?

Os partidos sempre foram os formadores dos políticos. A carreira clássica de um político se faz pelos canais partidários. Eu não estaria errado em dizer que esses movimentos desconfiam desse processo, que tem formado quadros incompetentes, despreparados. E nós precisamos preparar as pessoas com cursos, bolsas, processos de formação e impulsionar a carreira dessas pessoas. Mas a única forma no Brasil, e em quase todas as democracias, de ser um ator legítimo numa corrida eleitoral é estar filiado a um partido.

O ideal para esses grupos seria então a candidatura avulsa?

Há muita fantasia em relação a isso. As candidaturas avulsas são totalmente marginais no processo global. Mas aqui acho que o sonho deles era ter as candidaturas avulsas, que resolveriam um problema. Querem cumprir seus mandatos, sendo bons gestores, mas preferencialmente fora dos partidos. Mas os partidos estão aí e não tem jeito. Muitos partidos deram um falso mandato avulso. Emprestou-se a legenda para eles concorrerem, dizendo que dariam autonomia.

Qual a consequência de se emprestar uma legenda?

Quando esses movimentos não optam por criar uma legenda ou fortalecer um partido que já existe geram um território cinzento em que não está bem definido o que é o espaço de cada um. Se o partido foi só uma barriga de aluguel, emprestou a legenda e deu autonomia. Acho que há um risco, uma visão na praça difundida em certos segmentos de fazer de seu mandato uma espécie de ONG. Eu recruto por concurso, eu consulto os eleitores online, eles decidem onde eu vou botar o dinheiro, daí presto contas a eles.

Como o senhor classifica esse mandato?

Para mim, isso é um novo tipo de clientelismo. Você tem uma clientela que contorna a relação partidária. É o mesmo que faz um pastor, por exemplo, ou um sindicalista. A ideia de que eu devo o mandato a um segmento dos eleitores e presto conta a eles é uma coisa característica do sistema representativo brasileiro. Mas o ideal é que essas figuras entrem nos partidos e tentem renovar os partidos. Essas figuras estão renovando a política, certamente, mas não estão renovando os partidos. Esse me parece o grande paradoxo.

Qual o prejuízo a longo prazo?

Estamos num processo em que, no final das contas, os partidos brasileiros estão virando instituições paraestatais, donos de uma dinheirama. Quase R$ 1 bilhão para funcionamento anual (Fundo Partidário), mais quase R$ 2 bilhões para campanhas (Fundo Eleitoral). Os partidos são controlados pelo Estado, são parquinhos, digamos assim. Por outro
lado, a renovação dos partidos não acontece.

Mas aqui, quando há renovação, boa parte dos eleitos é de família de políticos.

Acho natural que uma parte da renovação aconteça por pessoas que têm a profissão dos pais. A questão central para mim é que os jovens estão abandonando as legendas. Estão entrando na política, mas não para a vida partidária. Isso não tem como dar certo. O ideal é que essas pessoas seguissem o exemplo do grupo Momentum, do Reino Unido, que adotaram uma legenda, o Partido Trabalhista. O Livres tentou fazer isso. Pena que, quando largaram o PSL, não optaram por outra legenda.

Os movimentos deveriam ter as mesmas regras dos partidos?

Não, são organizações. Nesse sentido, não se diferem tanto de igrejas evangélicas ou sindicatos que querem suas lideranças na política. Fantasias de renovação fora dos partidos não prosperam. Mesmo na Espanha, onde os movimentos ganharam força, eles foram para a vida partidária. Lamento que esses grupos tenham uma visão tão negativa da vida partidária.

A relação do presidente Jair Bolsonaro com o PSL é mais um exemplo da crise dos partidos?

Isso é singular. Grandes líderes populistas têm um grande partido atrás. Aqui, temos um líder sem vontade de organizar uma legenda. Ele não é um homem de partido, nunca foi. O que mais me chama atenção é um presidente da República não conseguir dominar um partido político. Jair Bolsonaro, com a força política dele, está praticamente sendo mandado embora do partido. Seria muito mais simples se ele tivesse feito um esforçozinho para controlar a legenda.

Isso é reflexo de quê?

Ele nunca foi comprometido com a legenda. Ele é uma pessoa que pouco deve conhecer da vida partidária. Um ano depois da vitória nas urnas, não fez nenhum movimento para fortalecer o PSL nem para dominá-lo com o grupo dele. Deixou na mão de um aliado, em (que) provavelmente ele confiava. Uma situação ambígua. Seria mais fácil o (Luciano) Bivar ser expulso.

Mas o partido é dele.

O partido era do Bivar quando ele era o único deputado. Agora, quando você tem uma maré, como foi a vitória do Bolsonaro, ele só não dominou o partido porque não quis. Agora está falando em sair porque essa sempre foi a estratégia dele. De todas as legendas com que Bolsonaro não quis se relacionar ele saiu. É sintomático que o presidente queira sair de um partido e não tenha potência para colocar para fora um político, um burocrata, digamos assim. Isso mostra uma fragilidade total do presidente nesse aspecto.

18 de outubro de 2019

INSPIRAÇÃO DA ESPANHA!

(William Waack – O Estado de S. Paulo, 17) Poderosas, as memórias de olfato nas noites desta semana na esplêndida capital da Catalunha jogam a gente de volta para junho de 2013 em São Paulo. É o cheiro de lixo queimando nas ruas, plástico se derretendo no calor das chamas, sirenes das tropas de choque correndo de um canto para o outro das ruas atrás de bandos de mascarados que improvisam barricadas, provocam a polícia, mandam selfies e stories nas redes sociais enquanto “lutam”, dispersam, correm e se juntam no próximo quarteirão.

Um bocado de gente está ali nas ruas do centro só para olhar. Há alguma simpatia com a causa geral, ainda que o público se mantenha a prudente distância do fogaréu e dos jovens encapuzados brigando com a polícia. No caso de Barcelona, as manifestações foram convocadas para protestar contra as penas de prisão impostas segunda-feira última pela Justiça espanhola a nove líderes e articuladores da tentativa de separar a Catalunha do resto do país, há uns dois anos. A independência da região, afirmam os juízes na condenação, nunca passou de uma “quimera”, criada e explorada por políticos.

Talvez seja uma boa descrição do que aconteceu, mas o ponto relevante é o fato de que o “independismo”, como é chamado aqui o separatismo catalão, já tinha sido derrotado politicamente antes da sentença condenatória. O principal fator que circunscreveu a aventura política articulada na Catalunha foi o funcionamento do sistema político partidário espanhol, a grande participação popular em várias eleições subsequentes apesar da crise fiscal e de representatividade que esfacelou forças políticas tradicionais e seus grandes nomes.

A Justiça espanhola precisou de menos de dois anos para o “processo”, como ficou conhecido no país a perseguição, julgamento e condenação dos acusados de violar a constituição ao promover o separatismo da Catalunha. E foi tudo, a julgar pela grande maioria dos comentaristas espanhóis, dentro da lei, do devido processo legal e com a participação direta dos líderes dos principais partidos. De fato, é só mesmo o cheiro do lixo queimando nas ruas, ateado por jovens encapuzados, que lembra São Paulo de 2013.

No Brasil, o esfacelamento do PSL numa disputa entre o presidente e os “donos” da agremiação é antes de mais nada um retrato perfeito da deterioração do sistema partidário brasileiro, seu fracionamento em siglas de aluguel, sua incapacidade de representar diretamente interesses legítimos de grupos definidos (profissionais, regionais, econômicos, culturais, etc.), sua dedicação em converter pedaços da máquina pública em ferramenta para uso próprio. Difícil esperar impulsos políticos de horizonte amplo de agremiações partidárias desse tipo, populares ou não. É um aspecto no qual o Brasil está muito atrás de uma Espanha.

Considere-se também o julgamento “definitivo” que o STF faz da confusão que ele mesmo criou sobre a prisão de condenados em segunda instância. É a expressão acabada do fato da mais alta corte do País ter se transformado numa das grandes fontes da insegurança jurídica. A percepção que se generalizou de um lado (o da Lava Jato) e de outro (quem cobra da Lava Jato respeito aos preceitos legais) é a de que as decisões do Supremo são sempre políticas, ao sabor do momento – como aconteceu em 2016, quando respondia ao ímpeto da Lava Jato, e agora, quando responde ao ímpeto de frear a Lava Jato.

A Espanha andou relativamente rápido no tratamento de um problema político difícil mesmo enfrentando severa crise fiscal e de desemprego. Foi pelo funcionamento de partidos, sistemas políticos e judiciário respeitado. Os mais veteranos vão se lembrar que a experiência espanhola de saída de um regime ditatorial para uma democracia já havia sido uma inspiração para um general presidente do Brasil em 1977 – Ernesto Geisel e sua abertura lenta, gradual e segura. Quem sabe a Espanha acaba sendo uma inspiração mais uma vez.

Ao contrário do que acontece no Brasil, partidos e Judiciário enfrentaram a grave crise.

17 de outubro de 2019

4 QUESTÕES SOBRE O FUTURO DA SÍRIA!

(O Globo, 16) > Quem vai controlar o Nordeste da Síria?

Há pouco mais de uma semana, uma fatia triangular no Nordeste da Síria (cerca de um terço do país) era controlada por uma milícia síria liderada por curdos e apoiada pelos EUA. As Forças Democráticas Sírias (FDS) foram a principal força terrestre responsável pela derrota do Estado Islâmico no país. Mas, em 6 de outubro, Donald Trump deu à Turquia luz verde para cruzar a fronteira e lançar uma ofensiva. A liderança da milícia tem ligações com um grupo curdo que luta na Turquia há anos e que Ancara considera uma organização terrorista. O governo turco quer estabelecer uma zona de segurança expulsando as FDS em uma faixa que se estende até 30 quilômetros para o interior da Síria ao longo da fronteira. Sem o apoio dos antigos aliados, a milícia buscou a ajuda do governo sírio, inimigo tanto da Turquia quando dos EUA. No fim de semana, os curdos anunciaram ter chegado a um acordo para que forças sírias reentrassem em áreas que haviam cedido às forças curdas há anos à medida que uma rebelião varria o país. Ancara utiliza combatentes opositores sírios, a maioria árabes e turcos, como força terrestre. Isso tem o potencial de alimentar um conflito étnico. Integrante da Otan, a Turquia está lutando por território com um governo sírio apoiado pela Rússia. Isto também eleva a possibilidade de um conflito entre Otan e Rússia.

> Como isso vai terminar para os curdos?

Sem o apoio dos EUA, os curdos enfrentam um enorme golpe na esperança de manter algum grau de autonomia. E ainda há questões sobre qual é exatamente o acordo fechado com Damasco. As FDS sugeriram que ele envolve permitir a entrada das forças sírias, ou impedir os ataques da Turquia. Dizem que manterão a estrutura militar e o controle dos conselhos locais de governo. Mas o governo sírio diz que vai exigir a dissolução das FDS e a integração dos combatentes em formações lideradas por russos. Damasco tem um histórico de repressão aos curdos, e o governo de Assad não é conhecido por negociar acordos. O clima é de medo. E abre caminho para o ressurgimento da oposição armada.

> Como os civis serão afetados?

Cerca de 100 mil civis já fugiram da zona de fronteira. As rotas para a Turquia estão bloqueadas. Alguns tentam fugir para as regiões curdas no Iraque, enquanto outros rumam para territórios das FDS mais ao sul. Mas ambas as regiões estão exauridas e destruídas por anos de guerra contra o EI, e têm poucos recursos a oferecer aos deslocados. Para piorar a situação, grupos humanitários estão se retirando do Nordeste da Síria. Baixas civis têm sido relatadas, algumas atribuídas aos bombardeios turcos. Civis também têm sido mortos em cidades turcas por bombardeios das FDS. A Turquia tem dito que quer enviar muitos dos 3,6 milhões de refugiados sírios que estão no país para o outro lado da fronteira, na zona de segurança que está tentando criar na Síria, numa ação que violaria o direito internacional.

> O Estado Islâmico ressurgirá?

O caos abriu a porta para duas possíveis ameaças do EI: a fuga de combatentes detidos e a reativação de células militantes adormecidas. Milhares de suspeitos estão em centros de detenção no território das FDS. Entre eles, ao menos 2 mil estrangeiros, cujos países se recusaram a recebê-los de volta.

Há relatos de fugas, e as forças americanas foram incapazes de remover dezenas de prisioneiros de alto valor antes do início das hostilidades. Há também o temor de que células adormecidas do EI se reativem. O grupo já reivindicou responsabilidade por um ataque suicida em Qamishli.

16 de outubro de 2019

TUDO QUE CAPITANIAS HEREDITÁRIAS TINHAM DE RUIM VINGOU!

(Eduardo Bueno – Ilustrissima – Folha de S.Paulo, 13) Se o plano consistia em lançar as bases do futuro país do pretérito, então ele não poderia ter dado mais certo. Tudo que as capitanias hereditárias tinham de ruim —e não era pouco—, vingou, cresceu e multiplicou-se no solo fértil do Brasil, como se a justificar o imorredouro vaticínio de Pero Vaz de Caminha: nessa terra, em se plantando, tudo dá.

Cerca de 500 anos depois de sua fracassada implantação nos tristes trópicos, as capitanias hereditárias estão vivas e passam bem, obrigado. Floresceram no latifúndio improdutivo, na monocultura da cana, no trabalho escravo ou mal pago, na invasão das terras indígenas, no desmatamento desenfreado, no compadrio, no clientelismo e, é claro, no coronelismo —ou seria mais apropriado dizer “capitanismo”?

Afinal, os donatários foram os primeiros “capitães do Brasil”; para o capitalismo aquele sistema, de fato, não servia —sendo até definido, por certos historiadores de antanho, como um regime feudal, apesar do evidente anacronismo.

A partilha do Brasil em vastos lotes denominados “donatarias” ou “capitanias hereditárias” deu-se entre março de 1534 e fevereiro de 1536, embora a decisão tenha sido tomada cerca de um ano e meio antes, em agosto de 1532.

O modelo colonizatório era bem conhecido e já fora testado anteriormente, não só nas ilhas do Atlântico (Açores e Madeira), mas dois séculos antes no próprio território continental de Portugal, especificamente no Alentejo e no Algarve, após essas regiões do sul terem sido retomadas aos mouros durante a dita reconquista cristã.

Ao contrário do que ocorreu no reino e nas ilhas atlânticas, porém, não houve interesse da alta nobreza lusitana em se associar ao projeto no Brasil, embora os lotes doados fossem literalmente incomensuráveis: eles tinham, em média, cerca de 350 quilômetros de largura (ou de costa), prolongando-se, de fundo, até a linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas, algures nas lonjuras ainda desconhecidas do continente.

As donatarias possuíam, portanto, dimensões similares, por vezes até superiores, às de vários reinos europeus.

Não foram infantes, duques ou condes, contudo, os agraciados com esses vastos e selvagens sertões. Como eles deveriam ser colonizados com recursos próprios, quem pôde cedo declinou do convite. Afinal, da Coroa os donatários não recebiam mais do que a própria terra e os poderes para colonizá-las —embora tais poderes pudessem ser “majestáticos”, como os definiu o historiador Francisco de Varnhagen, a tarefa cedo se revelaria virtualmente inexequível.

Ninguém descreveu melhor as agruras e os reveses dos capitães do Brasil do que o único bem-sucedido dentre eles. Em dezembro de 1546, em carta ao rei dom João 3º, Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, disse: “Somos obrigados a conquistar polegadas a terra que Vossa Alteza nos fez mercê por léguas”.

Dos 12 capitães donatários agraciados com 15 lotes no Brasil, oito eram, como o próprio Coelho, militares com folha corrida, a maioria com serviços prestados no Oriente —ou que então haviam “fincado lança em África”. Os quatro restantes podem ser chamados de “criaturas do rei”: membros da alta burocracia estatal (tesoureiros, vedores ou fiscais da Fazenda) responsáveis pela administração dos negócios ultramarinos, nomeadamente a cobrança de impostos.

Dessa uma dúzia, quatro jamais puseram os pés no Brasil, apesar de essa ser a exigência real. Não chega a ser surpresa o fato de terem sido os burocratas os que se revelaram capazes de burlar a ordem régia.

De todo modo, postos em prática pessoalmente ou à distância, os projetos de colonização estavam fadados a ser rotundo fracasso, e os donatários que não pagaram por seus erros com a própria vida perderam (e jamais recuperaram) as fortunas que haviam adquirido nas antessalas do poder ou com saques na Índia.

O destino foi mais cruel, é claro, com os capitães que tiveram que empreender a perigosa viagem até o Brasil e empregaram todos seus recursos na empresa colonizadora. A única recompensa obtida foi o silêncio régio, a desolação completa de seus lotes e o gosto amargo de um revés pessoal e coletivo.

O laborioso Duarte Coelho, por exemplo, morreu de desgosto, tamanho era o desprezo que o rei, que nunca respondeu dezenas de suas cartas suplicantes, lhe devotou. Pero do Campo Tourinho (de Porto Seguro), acusado de heresia, foi preso por seus próprios colonos e enviado para a Inquisição. Francisco Pereira (da Bahia), vulgo Rusticão, capturado pelos tupinambás da Bahia, foi por eles devorado.

E Vasco Coutinho (do Espírito Santo), viciado em tabaco e em “bebidas espirituosas”, perdeu o controle sobre sua capitania e ao morrer, em Portugal, “nem uma mortalha que o cobrisse tinha” e sua mulher e filhos acabaram desamparados num hospital de caridade.

O gênio da língua João de Barros, autor de uma das primeiras e melhores gramáticas portuguesas, sobreviveu só porque não veio ao Brasil, porém ficou sem um tostão. Seu sócio Fernão Álvares também perdeu muito dinheiro, mas, como era o tesoureiro-mor do reino, a grana perdida tinha vindo de um poço que não secaria.

Já outro sócio de ambos, Aires da Cunha, que completava a chamada “tríade de donatários” a qual coube dois lotes no Maranhão, foi tragado pelo mar quando chegava ao Brasil à frente da opulenta frota de 13 navios armada pelo trio.

Jorge Figueiredo, escrivão da Fazenda, amigo íntimo do rei, também não se abalou para vir colonizar a capitania de Ilhéus, mas os aimorés acabaram com tudo o que ele havia erguido lá.

E o donatário do Ceará, o futuro provedor-mor do Brasil, Antônio Cardoso de Barros, não perdeu nada do que havia surrupiado da Casa dos Contos de Lisboa, da qual era fiscal. Não que fosse bom administrador ou contasse com melhor sorte; ele simplesmente nunca empreendeu a colonização de seu lote.

Cardoso de Barros viria para o Brasil em 1549, na companhia do governador-geral Tomé de Sousa, quando o regime das capitanias, feito para durar “para todo o sempre”, já havia falido. Foi ele, grosso modo, o primeiro ministro da Fazenda na colônia. Meteu-se em ladroeiras indizíveis e, enxotado de volta para o reino junto com o famigerado bispo Sardinha, naufragou nas Alagoas —como o bispo, virou repasto dos caetés.

Dessa turma toda, só quem se deu bem foi o fidalgo Martim Afonso de Souza, embora tenha ignorado solenemente suas duas capitanias: São Vicente ficou nas mãos de traficantes de escravos, como João Ramalho; o Rio de Janeiro, à mercê dos franceses.

Martim Afonso foi fazer fortuna no Oriente, onde se notabilizou como um dos mais desonestos vice-reis da Índia. Como era amigo de infância do rei dom João 3º e primo-irmão de dom Antônio de Ataíde, o mais proeminente dentre todos os conselheiros régios, jamais foi punido e terminou seus dias na abastança, retirado numa mansão palaciada no coração de Lisboa.

Portanto, disparar um tuíte —como fez o general Hamilton Mourão, vice-presidente do Brasil— saudando o suposto empreendedorismo dos donatários, sugerindo que eles deram início à construção de um dos maiores países do mundo, é tão equivocado, retrógrado e incongruente quanto mencionar, digamos, “a indolência do branco, a malandragem do índio e o privilégio do negro”, ou algo assim, fora de propósito e de foco.

De todo modo, se Mourão quiser usar as capitanias hereditárias como metáfora, eu, como autor de um livro de quase 400 páginas só sobre esse assunto, recomendo-lhe que poste o seguinte: “Na primeira vez na qual o Brasil decidiu deixar seu governo na mão de capitães, a vaca foi pro brejo. Mas pelo menos ela não estava fardada”.Tem exatos 140 caracteres e dá para entender fácil, fácil.

15 de outubro de 2019

ECOS DE PORTUGAL!

(Cida Damasco – O Estado de S. Paulo, 14) O Partido Socialista de Portugal, que há uma semana venceu de novo as eleições e renovou o mandato do primeiro-ministro Antônio Costa, decidiu governar sozinho o país e não renovar o acordo informal com parceiros do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, batizado como Geringonça – a intenção é negociar caso a caso, e não ceder às pretensões do Bloco de Esquerda, de fechar um acordo por escrito, com horizonte de toda a legislatura. Mas isso não esvaziou o debate sobre o que permitiu à Geringonça superar a crise econômica de Portugal e o que pode ser replicado em outros países, como o Brasil. A pergunta que mais se ouve por aqui é: “dá para fazer uma geringonça na economia brasileira?”

Os bons resultados de um programa econômico não identificado com “tudo pela austeridade fiscal” se transformaram, como já era de se esperar, em mais um motivo para a polarização que há bom tempo caracteriza a vida do País. De um lado, estão os adeptos da tese de que Portugal mostrou que é possível reativar a economia, sem adotar a receita fiscalista em vigor em vários países. De outro, os defensores da ideia de que a centroesquerda portuguesa tem demonstrado forte preocupação com o equilíbrio fiscal, o que no Brasil continua patrimônio da centro-direita.

Não é por outra razão que a vitória de Costa e, por tabela, da equipe liderada pelo festejado ministro Mário Centeno ganhou espaço nas redes sociais, como se não estivesse ocorrendo do outro lado do Atlântico. E alimenta posts irônicos contra os brasileiros que estão se mudando para Portugal, em busca de melhores oportunidades de trabalho e maior segurança – grande parte deles atribuindo o quadro desfavorável no Brasil ao domínio da “esquerda” nos últimos anos, traduzido nos governos petistas.

Quando se olha para a economia dos dois países, é até compreensível o interesse despertado pela Geringonça. Não que os governos do Brasil tenham conseguido impor a austeridade na dimensão prometida – está à mostra, para quem quiser ver, a dramática situação financeira dos Estados, como o Rio, apesar dos compromissos assumidos para obter ajuda federal. Mas o discurso do momento é de linha dura no combate aos gastos públicos. Dia sim, outro também, a equipe econômica anuncia alguma medida da reforma administrativa que está em finalização, com foco na compressão das despesas com pessoal: limitações de reajustes salariais, promoções, contratações, e assim por diante.

O lado real da economia, por sua vez, também não manda boas notícias. Os indicadores antecedentes de PIB que serão divulgados nesta semana, IBC-Br e Monitor do PIB, devem confirmar o quadro de uma economia ainda em slow motion. Não é por outro motivo que setembro trouxe de volta uma deflação – pequena, é fato, mas um alerta de consumo fraco. Todas as esperanças de alguma reanimação da atividade econômica a curto prazo dirigem-se para os saques das contas do FGTS e PIS-Pasep e para as novas rodadas de baixas nos juros. Há, além disso, uma torcida para que o BC reforce a aposta “estimulativa” e libere dinheiro dos depósitos compulsórios.

Lá em Portugal, objeto de “inveja” dos brasileiros, é certíssimo que o primeiro-ministro terá desafios no seu novo mandato, que começa em clima de desaceleração da economia mundial. Especialmente a melhora da infraestrutura, que foi sacrificada em nome do corte de despesas do governo. Mas é inegável que ele já mostrou serviço anteriormente.

O governo de Costa tomou a direção contrária das recomendações de entidades financeiras internacionais, ao reduzir impostos sobre alimentação e aumentar o salário mínimo, entre outras medidas. Em quatro anos, reduziu o desemprego à metade, para 6,3%, derrubou o prêmio de risco dos títulos do país, e o PIB, que cresceu 2,4% no ano passado, vem se sustentando em níveis superiores aos da União Europeia, principalmente por causa do turismo – o que permitiu ao país atingir um nível recorde de renda per capita. Tudo isso sem se afastar das metas dos programas de estabilidade.

Claro que o Brasil é o Brasil e ainda não virou um imenso Portugal, como dizia Chico Buarque. Mas toda e qualquer experiência que, antes e tudo, fuja de extremos e busque a conciliação é uma luz num cenário escuro.

14 de outubro de 2019

INSANIDADE SERIAL!

(Gustavo Loyola – O Estado de S. Paulo, 13) “Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.” Esta frase atribuída a Albert Einstein, embora batida, não deixa de vir à mente quando se lê a respeito de sugestões de alguns economistas defendendo o afrouxamento imediato da política fiscal para acelerar a recuperação da economia brasileira.

Deve-se ao experimento fracassado da “nova matriz macroeconômica”, conduzido durante a administração de Dilma Rousseff, grande parte da responsabilidade pela maior recessão das últimas décadas, da qual a economia brasileira ainda não conseguiu se desvencilhar totalmente.

Entre 2013 e 2014, biênio em que a “nova matriz” ia a todo vapor, a economia brasileira se desacelerou, apesar de o gasto público ter experimentado uma forte expansão, fato que por si só deveria desencorajar os apologistas do relaxamento fiscal.

A consequência do abandono da responsabilidade fiscal foi o aumento do endividamento do setor público, tendo a dívida bruta passado de 51% do PIB, em 2013, para quase 80% hoje. A situação seria bem pior não fossem as medidas de ajuste adotadas a partir de 2016, com destaque para a aprovação da emenda constitucional que limitou o crescimento real dos gastos públicos.

Com a provável aprovação da reforma da Previdência Social, abre-se uma perspectiva mais concreta de reversão dos déficits primários nos próximos anos, assim como de redução da proporção da dívida bruta em relação ao PIB. Porém os problemas fiscais estão longe de estarem resolvidos. Na melhor das hipóteses, está-se apenas no fim do começo de um processo que ainda necessita de várias medidas adicionais para sua consolidação.

Em particular, pouco se fez até aqui para reduzir a rigidez estrutural da despesa pública derivada, entre outros fatores, das vinculações orçamentárias compulsórias e das regras automáticas de correção de salários e benefícios de servidores. Sem reformas adicionais, e não havendo espaço para elevação da carga tributária, o equilíbrio das contas públicas implicará necessariamente o aumento das carências da sociedade em relação à provisão dos serviços típicos do Estado.

O afrouxamento intempestivo da política fiscal apenas viria agravar esse quadro, jogando para as calendas reformas que de há muito são urgentes.

Além disso, outro grave equívoco que cometem os defensores do aumento do gasto público é se esquecerem da conexão que existe entre o cenário benigno de inflação e de juros de hoje e os esforços feitos até aqui para reversão do déficit primário e do crescimento do endividamento. Ausente a política austera nos últimos três anos, os juros reais não teriam caído a seu mínimo histórico e a política monetária não poderia estar agora exercendo um papel de estímulo sadio à recuperação da demanda agregada. Aumentar o gasto público implicaria reduzir o espaço para redução da taxa Selic.

Além disso, a política macroeconômica ora em prática – expansão monetária combinada com redução do gasto público – traz outros efeitos positivos para a economia, no médio e no longo prazos. O principal deles é substituição do setor público pelo setor privado, como motores do crédito e do investimento, o que contribui para a melhor alocação de recursos e para o crescimento da produtividade.

Não custa lembrar, a propósito, que a expansão do investimento estatal e do crédito do BNDES durante o interregno petista teve como consequência final a queda do PIB potencial do País, num evidente desperdício de recursos escassos.

É compreensível a impaciência com a demora da recuperação econômica. Mas a solução do problema não é injetar na economia o mesmo veneno que a trouxe até a crise atual. Desta vez, que se faça algo diferente!

11 de outubro de 2019

‘CAMPANHAS DE DESINFORMAÇÃO ESTÃO MAIS PROFISSIONAIS’!

(Alessandra Monnerat  – O Estado de S. Paulo, 10) Estudo da Universidade de Oxford mapeou campanhas de manipulação da opinião pública na internet em 70 países. No Brasil, pesquisadores identificaram sinais de uso de estratégias para atacar adversários, confundir o debate político e provocar divisões na opinião pública. “Questionar a autenticidade das urnas eletrônicas foi uma estratégia repetida no Brasil, na Argentina e no México. São campanhas cada vez mais fortes e com mais recursos”, disse o pesquisador da Universidade de Oxford Caio Machado, brasileiro que participou do levantamento e realizou estudos sobre notícias falsas nas eleições de 2018.

Qual é a tendência no Brasil em termos de campanhas de desinformação?

É a institucionalização do que chamamos de propaganda computacional. Em países como China, Rússia e EUA, existem superpoderes que já têm um aparato estatal muito desenvolvido para fazer propaganda política digital e usá-la como estratégia de interferência em outros países. Não temos registro de que o Brasil esteja interferindo em outros países, mas o aparato está crescendo muito. Passou a ter uma estrutura física, com empresas privadas e contratos caros. E isso é uma tendência na América Latina inteira, sair do amadorismo e se tornar algo estatal profissional. Isso é preocupante. Por exemplo, questionar a autenticidade das urnas eletrônicas foi uma estratégia repetida no Brasil, na Argentina e no México. São campanhas cada vez mais fortes e com mais recursos.

Quais plataformas estão sendo usadas nessas campanhas?

Já havíamos identificado no ano passado, e voltamos a ver neste ano, a desinformação passar a aplicativos de mensagem, fechados. O WhatsApp é um exemplo, mas não é exclusivo. Olhando para o resto do mundo, identificamos desinformação em todas as plataformas: Telegram, Line, WhatsApp, Instagram. Até no Tinder. Não é um problema de uma plataforma só.

O Facebook continua a ser a principal plataforma para desinformação, segundo a pesquisa.

O Facebook ainda é a plataforma principal, mas detectamos outras muito relevantes, como Instagram e YouTube. As iniciativas que o Facebook tem feito (de combate à desinformação) são insuficientes, mas talvez seja a plataforma mais fácil de resolver, porque é um ambiente aberto. É mais fácil usuários e autoridades identificarem o que está acontecendo ali. Um ambiente muito mais difícil de compreender é o YouTube, que não é uma rede social, é um acervo de vídeos. A pesquisa recente mostra que tem gente se aproveitando do algoritmo de recomendação do YouTube para promover radicalização, algo muito difícil detectar. É a mesma coisa para o Instagram, onde as pessoas costumam ter mais contas fechadas. É muito difícil ver o que está acontecendo.

O número de países mapeados pela pesquisa com campanhas de manipulação aumentou 150% nos últimos dois anos.

Qualquer país que olharmos vai usar desinformação. Isso prova que é um fenômeno global. Há uma variação, de país a país, de institucionalização, de estratégias. Mas o preocupante é que é uma prática que se disseminou no mundo inteiro, que passou de algo completamente amador para algo profissional, institucional, permanente. Esse grau de especialização preocupa muito.

A pesquisa diz que o Brasil tem uma “tropa virtual” de capacidade média. O que isso significa?

Nos países de alta capacidade, como China e Estados Unidos, você tem o uso institucional de “guerra informacional”. A escala nesses países é impressionante: tem uma estrutura permanente de produção de desinformação, múltiplos contratos (de empresas) e o uso dessa estratégia com fins bélicos, seja na política interna, seja para influenciar outros países. No Brasil, não identificamos o uso para influência externa nem nenhum documento para comprovar que a estrutura de campanha fosse permanente ou com estrutura organizacional refinada. Aqui, é algo grande, custoso, mas não é uma operação militar. Essa pesquisa tem que ser entendida como o mínimo, a ponta do iceberg. O que está embaixo é muito maior, mas só olhando a ponta a gente consegue entender que o problema é muito grave.

10 de outubro de 2019

AS DERROTAS DA ULTRADIREITA!

(The Economist – O Estado de S. Paulo, 07) Lembre como há um ano a política europeia parecia preocupante. Matteo Salvini, de longe o político mais popular na Itália, e a igualmente xenófoba Marine Le Pen, na França, se uniram a Steve Bannon, que foi estrategista de Donald Trump, participando do grupo O Movimento, iniciado por Bannon.

Essa aliança de partidos nativistas de direita logo adquiriu uma “escola de gladiadores” com sede em um monastério perto de Roma, cujo objetivo era vencer arrasadoramente as futuras eleições europeias e afastar a política do continente do campo do centro liberal. Eles tiveram problemas, naturalmente. Os eurocéticos e o partido alemão Alternativa para a Alemanha (AfD) decidiram se manter afastados de Bannon. Mas com ou sem o Svengali americano, os populistas estavam em ascensão. Na França, os coletes amarelos, que tinham apoio da direita e da esquerda radicais, tomaram as ruas.

O cenário hoje é diferente. As eleições de maio para o Parlamento Europeu frustraram as esperanças de Bannon. A Liga do Norte de Matteo Salvini se saiu bem, mas em todos os lugares os partidos da extrema direita retrocederam ou marcaram passo. Salvini hoje está fora do governo da Itália, depois de armar equivocadamente uma tentativa para garantir um poder sem nenhuma oposição, e perder nas urnas. Na Hungria, o partido populista de Viktor Orbán, no governo, enfrenta a ameaça de perder o controle da capital do país, Budapeste, e talvez de outras cidades, nas eleições locais marcadas para o final deste mês. Os coletes amarelos foram amansados por Emmanuel Macron.

Todos esses retrocessos são parciais e podem ser revertidos. Mesmo onde foram derrotados, os políticos de direita estão longe de ser uma força desgastada. Na Polônia, por exemplo, o Partido da Lei e Justiça, outro exemplo de direita populista, deve ser reeleito em 13 de outubro. O AfD da Alemanha também teve um bom desempenho nas eleições estaduais no país no mês passado.

Viena. Os liberais podem ser desculpados pela pequena satisfação que sentem ao examinar os eventos recentes. É o caso da Áustria, para começar. Em maio, o governo caiu depois de dois jornais alemães revelarem cenas de um vídeo gravado dentro de uma vila em Ibiza, em 2017, mostrando o vice-chanceler austríaco Christian Strache discutindo negócios escusos com uma mulher posando como sobrinha de um oligarca russo. Na esteira do escândalo, a eleição em 29 de setembro foi um desastre para o Partido da Liberdade (FPO), que obteve apenas 16% dos votos, quase 10 pontos menos do que no escrutínio de 2017, e perdeu 20 assentos no Parlamento. Muitos eleitores se inclinaram para o partido de centro-direita OVP, que até o “Ibizagate” era o principal parceiro do FPO no governo. Seu jovem líder, Sebastian Kurz, agora vem sondando os Verdes, o outro grande vencedor nas eleições, para parceiro numa coalizão. Strache abandonou a política.

Kurz fez uma coalizão com o FPO em 2017, declarando aos líderes europeus que conseguiria domar os piores impulsos daquele partido extremista. Ao que parece, foi muito otimista. Seu curto governo foi marcado por escândalos que abrangeram desde incidentes racistas envolvendo políticos do FPO até batidas ilegais na agência de inteligência interna orquestradas por Herbert Kickl, membro radical do FPO que ocupou o Ministério do Interior.

Mesmo fora do governo, isso não significa que o FPO desapareceu. O partido espera se recuperar na oposição. A história sugere que o conseguirá. Há mais de 60 anos, na política austríaca é adotada uma estratégia permanente de explorar a frustração popular com o longo duopólio do OVP e dos social-democratas. O país ainda não fez seu acerto de contas com o nazismo, como ocorreu na Alemanha. Quando um ou outro partido estabelecido se cansa de coalizões, ele se volta para o FPO.

Budapeste. O mesmo ocorre na Hungria. O partido Fidesz de Orbán ainda é todo-poderoso nos vilarejos e nas pequenas cidades, mas enfrenta um forte desafio da oposição (quase) unida em Budapeste e em cidades maiores, nas eleições de 13 de outubro. A máquina do Fidesz tem reagido com batatas e ameaças. No 11.º Distrito de Budapeste, sacos de 10 quilos de batatas foram vendidos por menos de um euro, com a imagem do prefeito local, que é do Fidesz, ao lado e uma receita do “rakott krumpli”, um prato à base de linguiça, ovos e batata. Também tem feito ataques furiosos contra Gergely Karacsony, candidato da oposição para prefeito, que está competindo de igual para igual com Istvan Tarlos, o prefeito apoiado pelo Fidesz, segundo as pesquisas. Depois de assumir o poder em 2010, Orbán mudou a lei eleitoral da Hungria para criar um sistema que favorece seu partido, com as demais agremiações políticas, de direita e esquerda, se debatendo e lutando internamente até que se deram conta de que a única maneira de desafiá-lo era se unirem usando eleições primárias, e agora levaram a estratégia a cabo. Se forem bem-sucedidos, terão uma plataforma útil para concorrer com Orbán nas próximas eleições parlamentares marcadas para 2022.

Roma. É na Itália que o revés dos populistas foi o mais relevante. A eleição europeia foi um sucesso estrondoso para Salvini. Seu partido obteve mais de um terço dos votos na Itália. Sua campanha ininterrupta e sua posição intransigente na questão da imigração auxiliaram seu partido a alcançar porcentuais sem precedentes nas pesquisas. Mas no início de julho, o nível de apoio chegou a 37,5% em média, o que incitou Salvini a tomar uma decisão equivocada no mês seguinte para derrubar o governo do qual fazia parte, esperando com isso forçar uma nova eleição.

O efeito, pelo contrário, foi lançar seus parceiros de coalizão, o Movimento Cinco Estrelas (M5S) nos braços do partido Democrático (PD) de centro-esquerda, o que criou uma maioria parlamentar que respaldou um segundo governo de Giuseppe Conte. Desde que foi investido, Salvini vem perdendo envergadura. O apoio à Liga caiu para menos de 32%. Mas ela ainda é o maior partido da Itália, com mais de 10 pontos à frente de do PD ou do M5S nas pesquisas. Embora em queda, Salvini não está liquidado. Em 30 de setembro, o novo governo aprovou um documento de base que propõe um aumento do déficit orçamentário para 2,2% do PIB, o que poderá ser considerado exagerado por Bruxelas e causar novo confronto.

As perspectivas de Salvini dependerão de dois fatores. O primeiro é a imigração. O novo governo anulou sua política de fechamento dos portos italianos para as ONGs que resgatam imigrantes no mar Mediterrâneo. E espera ampliar um programa acertado no mês passado com a França, Alemanha e Malta para uma redistribuição voluntária de refugiados que chegam às costas italianas. Um aumento no número de pessoas que chegam poderá impulsionar a popularidade de Salvini. Embora ainda baixo, o número de pessoas chegando ao país cresceu bruscamente desde que ele deixou o governo.

Por mais popular que ele seja, a Liga não voltará ao poder, salvo se a atual coalizão fracassar. Portanto, o modo como o governo administrará as tensões entre os grupos que o compõem será decisiva. O PD e o M5S têm um histórico de animosidade mútua e a uma divisão no PD causada pelo anterior primeiro-ministro Matteo Renzi não foi boa. O novo governo vem tentando mudar um sistema eleitoral que, graças ao grande número de deputados eleitos por maioria simples, favorece a Liga. Muita coisa depende de a nova coalizão durar o tempo suficiente para isso.

09 de outubro de 2019

RIO BRANCO E O PRATA!

(José Alfredo Vidigal Pontes, historiador, autor dos livros ‘A Política do Café com Leite: Mito ou História?’ E ‘1932: O Caráter Nacional de um Movimento Democrático’ – O Estado de S. Paulo, 07) “Um diplomata não serve a um regime e sim a um país” Barão do Rio Branco

Nada mais atual e oportuno do que essa frase em epígrafe de José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como barão do Rio Branco. Monarquista convicto, serviu a cinco presidentes republicanos. Graças a ele resolvemos exemplarmente nossos problemas fronteiriços, propiciando boa coexistência e frutíferas relações.

No sul do País as trocas entre os povos antecederam o próprio estabelecimento das fronteiras, numa época em que eram apenas domínios espaciais ainda indefinidos dos impérios coloniais ibéricos. O comércio platino fortaleceu tanto os hispânicos como os lusobrasileiros, numa relação mútua de prosperidade, em meio a pontuais conflitos armados.

Apesar de seu passado monarquista, o barão foi convidado em 1893 por Floriano Peixoto a defender o Brasil numa querela fronteiriça com a Argentina, a qual envolvia boa parte da região oeste dos atuais Estados do Paraná e Santa Catarina. Em alguns meses preparou um estudo de seis volumes, A Questão de Limites Entre o Brasil e a República Argentina, e o enviou a Grover Cleveland, o então presidente norte-americano e árbitro da questão. Esse litígio, conhecido na época com a Questão de Palmas, foi decidido inteiramente a favor do Brasil por decisão de Cleveland, acatando os sólidos argumentos de Rio Branco. Pois ele não só conhecia profundamente os termos do Tratado de Madri (1750), como também a minuciosa e sigilosa cartografia hidrográfica luso-brasileira acumulada sucessivamente pelos brilhantes diplomatas Luís da Cunha e Alexandre de Gusmão.

O barão demonstrou claramente que não existe diplomacia eficiente sem conhecimento histórico, nem História sem embates diplomáticos.

Outra questão tratada na época por Rio Branco, ainda como embaixador especial, foi a do condomínio de acesso dos uruguaios ao Rio Jaguarão e à Lagoa Mirim, com civilizadas concessões da parte do Brasil. Três anos depois, em 1902, o barão era convidado a assumir o Ministério das Relações Exteriores, no governo Rodrigues Alves, sendo confirmado por todos os presidentes até sua morte, em 1912.

Como ministro, resolveu satisfatoriamente as questões do Acre e do Amapá, mas, anteriormente, ainda como advogado, deu prioridade às questões pendentes no Prata, pois tinha plena consciência de sua vital importância geopolítica para o Brasil. A partir da independência das antigas colônias sulamericanas, no século 19, foram realizadas as últimas grandes definições de fronteiras platinas mediante conflitos armados: a Questão Cisplatina, que resultaria na formação do Uruguai, e a Guerra do Paraguai. Na última década ainda restavam a Questão de Palmas, citada cima, e a da Lagoa Mirim para resolver e nesse momento Rio Branco foi convocado dado seu notório saber acerca dos antecedentes históricos das relações platinas.

A partir de 1580 houve um grande fluxo de comércio entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro, durante a união das coroas ibéricas. Os luso-brasileiros levavam açúcar, tabaco, tecidos e escravos africanos em troca de prata e couros. Porém, a partir de 1640, com a restauração da independência portuguesa, essas transações diminuíram. O império português estava vulnerável e descapitalizado, tendo como inimigos os espanhóis e os holandeses. Foi dentro desse contexto de penúria monetária que, em 1680, o Conselho Ultramarino, em Lisboa, decidiu fundar Colônia do Sacramento, atrevida cidadela na banda oriental do Prata, bem defronte a Buenos Aires, a qual procurava retomar o fluxo de comércio com a América espanhola e o consequente acesso a pagamentos em moeda.

Enfrentamentos bélicos nessa região começaram a partir de então, mas também um próspero comércio entre as duas praças. Nessa época Buenos Aires era um pequeno porto com cerca de 8 mil habitantes, atrofiado pelo centralismo de Lima, que monopolizava a aduana da prata de Potosí.

Quase um século depois, quando Colônia do Sacramento passou para o domínio espanhol, o censo de 1778 apontou 24 mil habitantes em Buenos Aires, o triplo. Era então uma cidade bem equipada de serviços, cuja atividade comercial havia favorecido a expansão urbana.

De outro lado, a existência de Colônia do Sacramento contribuiu para a formação de uma identidade local portenha, a qual seria o embrião de um sentimento regional, aumentando a importância relativa de Buenos Aires no império espanhol e resultando na criação do Vice-Reinado do Prata.

A cidadela portuguesa do Prata, além de ter criado condições geopolíticas para a assinatura do Tratado de Madri, estimulou a ocupação dos atuais Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul: gado selvagem dos pampas começou a ser levado para o abastecimento de Minas Gerais e Rio de Janeiro por tropeiros paulistas. O tropeirismo passou, então, a se constituir num fator estrutural no desenrolar de nossa história econômica, tornando viável a ocupação do sul do País, o abastecimento das minas de ouro e acumulando capital privado em São Paulo, que se imbricaria posteriormente com o açúcar, o café, as ferrovias e a indústria.

É curioso registrar que essa contribuição é originária inicialmente de muares, equinos e bois soltos pelos hispânicos que haviam retornado à vida selvagem. Rio Branco era ciente de todo esse histórico do processo de ocupação da Bacia do Prata, no qual o comércio foi o grande protagonista.

Uma reflexão sobre esse passado nos remete à importância da saudável integração econômica entre países vizinhos sem barreiras tarifárias.

O barão demonstrou que não há diplomacia eficiente sem conhecimento histórico…

08 de outubro de 2019

PAX LUSITANA!

(Mathias Alencastro – Folha de S.Paulo, 06) Teve de tudo nas eleições portuguesas: a passagem de um furacão pelos Açores, a morte de Diogo Freitas do Amaral, um dos fundadores do regime democrático, uma acusação grave contra um ex-ministro da Defesa, e uma tentativa de agressão da candidata de direita Assunção Cristas.

E, apesar disso, se comparada à brasileira, a campanha pareceu um passeio no parque numa tarde de domingo.

A Pax Lusitana, ou a resiliência da coesão social, do respeito às instituições, e das formações sociais-democratas em Portugal no contexto de uma Europa em estado de implosão iminente, é objeto de fascínio.

Explicações para esse fenômeno vão da coesão territorial —Portugal possui as mesmas fronteiras europeias desde 1297— à estabilidade social —a integração dos imigrantes dos países de língua portuguesa é um caso de sucesso—, passando pela memória recente —o pesadelo fascista só terminou em 1974.

Talvez ainda mais importante, os portugueses continuam recorrendo aos meios tradicionais —televisão, rádio e jornais— como fonte de informação política. O papel irrelevante das redes sociais, e a consequente ausência de fake news, é, sem dúvida, um dado essencial para entender a qualidade da democracia portuguesa.

No entanto, os resultados da eleição deste domingo (6) apontam para uma pista inteiramente nova: o dinamismo da esquerda. Os eleitores plebiscitaram a geringonça, a coalizão inédita entre três formações da esquerda que governa o país desde 2015.

Juntas, elas conquistaram mais de 50% dos votos. A temida direita populista, representada pelo Chega!, de André Ventura, ficou abaixo dos 2%.

A campanha mostrou a espantosa versatilidade da geringonça. Os socialistas colocaram na linha da frente Mário Centeno, o ministro da Fazenda admirado pela União Europeia, que chegou a ser cogitado para diretor do FMI.

Notável gestor das contas públicas, Centeno é simplesmente o político mais popular entre os eleitores conservadores.

Espécie de PSOL local, o Bloco de Esquerda desempenha na perfeição o papel de rebelde anti-sistema, arregimentando os jovens das zonas periurbanas. Forte o suficiente para pautar o debate nacional, o Bloco ainda é fraco demais para a aderir à tese do sorpasso —segundo a qual os partidos tradicionais da centro-esquerda devem ser atropelados.

Idealizada pelo Podemos, essa doutrina aventureira tem comprometido a governabilidade na Espanha.

Inesperados campeões do pragmatismo, os comunistas, sempre aliados aos verdes, souberam manter o seu eleitorado cativo, que em outros países europeus forma o núcleo duro dos movimentos populistas.

Capazes de exaltar os revolucionários norte-coreanos de manhã e aprovar uma medida exigida pelos tecnocratas da União Europeia à tarde, eles também são conhecidos como excelentes administradores municipais nas regiões mais humildes do Centro-Sul.

Com os resultados deste domingo, a geringonça vai necessariamente evoluir. Próximos da maioria absoluta, os socialistas vão entrar no próximo Parlamento de salto alto.

Mais cedo ou mais tarde, o Bloco de Esquerda, nova terceira força política nacional, vai tentar voos mais altos e romper com o governo. Nada disso afetará a imagem de Portugal como uma terra tranquila e alegre, onde a esquerda é forte e o populismo não prospera.

07 de outubro de 2019

PAPA CONSAGRA NOVOS CARDEAIS E MOLDA FUTURO DA IGREJA!

(The New York Times  – O Globo, 06) O Papa Francisco consagrou ontem 13 novos cardeais, escolhidos para refletir seu estilo pastoral e prioridades em uma gama de questões, incluindo imigração, mudanças climáticas, a inclusão de gays católicos, o diálogo inter-religioso e a transferência de poder na Igreja Católica de Roma para os bispos de regiões “periféricas” como África, Ásia e América do Sul. As consagrações são um marco para Francisco, que agora atinge um ponto de inflexão para moldar a futura Igreja à sua imagem. Isso porque, depois de ontem, o Papa terá nomeado mais da metade dos votantes no Colégio dos Cardeais, onde uma maioria de dois terços daqueles com menos de 80 anos é necessária para eleger seu sucessor. E, quanto mais longevo for Francisco, mais seu pontificado terá influência nos possíveis rumos da Igreja. — Quanto mais ele viver, mais cardeais teremos com o espírito do Papa Francisco — disse o arcebispo Jean-Claude Hollerich, de Luxemburgo, um dos clérigos consagrados cardeais ontem. Francisco completa 83 anos em dezembro e, dada sua idade, desde o início de seu papado, há seis anos, ele encara o papel com um sentimento de urgência, frequentemente reconhecendo a própria mortalidade. E, embora críticos liberais digam que o Papa não tem avançado rápido o bastante nas mudanças na Igreja —especialmente no que diz respeito ao papel das mulheres —, seus apoiadores destacam que ele ao menos está disposto a discutir e reconsiderar a política da Igreja com relação a clérigos casados e sua posição sobre homossexualidade e celibato. Mais concretamente, Francisco está reformatando o Colégio de Cardeais, tornando-o menos branco, menos italiano e menos representativo da cúria romana, a burocracia que governa a Igreja. Em seu lugar, o Papa tem voltado os olhos para “franquias” mais novas da Igreja. Ele está tornando o Colégio de Cardeais mais latino-americano, asiático e africano. Entre os novos nomeados cardeais ontem estão, por exemplo, prelados do Marrocos, Indonésia, Guatemala e República Democrática do Congo. — Creio que o Papa quer tornar mais visíveis igrejas que eram quase invisíveis — resumiu o agora cardeal Cristobal Lopez Romero, de Rabat, capital do Marrocos, país majoritariamente islâmico. Outro nome de destaque no novo grupo de cardeais é Michael Czerny, 73 anos, um jesuíta canadense nascido na República Tcheca. Colaborador próximo de Francisco, Czerny é um dos líderes do chamado Sínodo para a Amazônia, que começa hoje e discutirá temas polêmicos como a possibilidade de ordenação de homens casados, o que romperia a milenar tradição de celibato do clero católico.

 

04 de outubro de 2019

NÃO É SIMPLES!

(Everardo Maciel, consultor tributário, foi secretário da Receita Federal – O Estado de S. Paulo, 3) Ainda que timidamente, começa a ser desvelada a natureza da PEC 45, autodesignada reforma tributária. Já se reconhece que os pequenos e médios prestadores de serviço e a incorporação imobiliária terão aumento desproporcional de carga tributária, sob a alegação de que são subtributados (como se existisse uma tributação “normal”) e de que consultas médicas, mensalidades escolares, prestações da casa própria, aluguéis, passagens de ônibus, diárias de hotéis, etc., são gastos “de ricos”, o que para a classe média pode parecer ofensivo. De igual modo, já se admite que os maiores beneficiários da brutal redistribuição de carga decorrente da PEC seriam as instituições financeiras, que provavelmente devem estar reclamando de seus modestos lucros.

Os profissionais autônomos, os produtores rurais, qualificados como pessoas físicas equiparadas às jurídicas, e os pequenos e médios comerciantes e industriais ainda não entenderam claramente que estão no rol das vítimas potenciais. Suas pequeníssimas margens seriam tragadas pela proposta, o que inviabilizaria seus negócios, mesmo sabendo que são justamente serviços e agronegócio a sustentação dos raquíticos crescimentos do PIB brasileiro. Quando se aperceberem da tragédia, é pouco provável que fiquem felizes.

Pude perceber que o principal elogio à proposta se concentra na sua índole simplificadora, porque reduz o número de tributos. Seria isso realmente uma simplificação?

O Simples, instituído em 1996, era apurado pela singela aplicação de uma alíquota sobre uma base de cálculo, substituindo praticamente a arrecadação de todos os tributos federais incidentes sobre micro e pequenas empresas. Com ele coexistiam harmonicamente sistemas estaduais simplificados (Simples Caipira, Simples Candango, etc.). No bem-intencionado propósito de torná-los ainda mais simples, a Emenda Constitucional n.º 43, de 2003, previu a instituição do Simples Nacional, abrangendo todas as entidades federativas. Paradoxalmente, o sistema se tornou complexo, a ponto de a Lei Complementar n.º 123, de 2006, que implementou o Simples Nacional, admitir, em seu artigo 18, parágrafo 15, a indispensabilidade de um sistema operacional para possibilitar a apuração de um tributo presumidamente simples. Era um pedido de desculpas do legislador.

Hoje, o Simples Nacional precisa ser reformado, antes que se torne alvo dos “simplificadores”.

Imagine reunir num só tributo incidências sobre a receita, como PIS-Cofins, e sobre o consumo, como ICMS, IPI e ISS, com administração compartilhada por todas as administrações tributárias dos entes federativos.

Como é constitucionalmente vedado converter o País num Estado unitário, seria instituída uma ciclópica administração tributária, com ares de um hipopótamo trôpego, sem falar na expansão descomunal da Justiça Federal, considerando que o tributo seria incluído em sua jurisdição.

PIS e Cofins têm praticamente a mesma legislação. Fundi-los implica tão somente abrir um contencioso sobre suas respectivas destinações (Fundo de Amparo ao Trabalhador e orçamento de seguridade social). Para o contribuinte, nenhuma vantagem. É, portanto, mero simplismo, e não simplificação.

Se a inclusão do IPI nesse bolo se volta para extinguir a Zona Franca de Manaus, a do ISS e do ICMS é ofensiva ao pacto federativo.

O aumento de carga tributária sobre os optantes do lucro presumido, sob a égide da simplificação, é, paradoxalmente, um preconceito contra os regimes simplificados.

Seguramente, nenhum dos mais de 850 mil contribuintes optantes do lucro presumido, os incorporadores com regime do patrimônio de afetação e os produtores rurais equiparados a pessoas jurídicas, tem qualquer queixa quanto à complexidade de seus respectivos modelos de incidência. Mas o que sabem eles sobre tributos, quando pessoas pretensamente mais informadas optam por trotar sobre suas preferências?

Não é demais lembrar a lição do jornalista Henry Mencken (1880-1956): “Todo problema complexo tem uma solução simples, fácil e errada”.