30 de abril de 2020

FLEXIBILIZAR O TETO, JÁ!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 29) Na semana passada, o governo apresentou o plano Pró-Brasil. Tratava-se do anúncio de uma agenda de investimentos públicos em infraestrutura para o País. O plano foi duramente criticado por razões acertadas e outras não tão acertadas assim. Entre as justificadas críticas estava o fato de o plano consistir em não mais do que meia dúzia de slides sem qualquer detalhamento sobre as áreas prioritárias para obras públicas. Foi citada a cifra de R$ 30 bilhões em investimentos públicos, que muitos sabemos ser insuficiente para cobrir as inúmeras carências e os variados gargalos do Brasil. Mesmo assim, houve quem tenha resolvido chamar o plano de Segundo PND de Bolsonaro, ou de PAC do seu governo, numa clara tentativa de demonizar o investimento público.

O anúncio deu margem a respostas histriônicas da equipe econômica, verdadeiros chiliques, por exemplo quando alguns de seus membros disseram à jornalista Miriam Leitão que o plano era uma ameaça ao teto de gastos e que, fosse o teto flexibilizado, muitos deixariam o governo. Talvez seja a hora mesmo de buscarem a porta de saída. Afinal, a responsabilidade desses indivíduos deveria ser com o País, e não com uma medida que sofre de diversas falhas desde seu desenho original.

Em 2016, quando se iniciou a discussão sobre o teto, fui favorável à ideia, mas não ao desenho. Nesse espaço e em outros veículos discuti por que a formulação do teto brasileiro estava em completo desalinho com a boa prática internacional e afirmei que mais cedo ou mais tarde pagaríamos por isso. Minha visão à época, como agora, era a de que o teto era excessivamente rígido, não permitindo ao governo qualquer margem de manobra para a adoção de medidas contracíclicas, quando necessárias. Antes de a epidemia eclodir, alguns membros do Congresso já defendiam a flexibilização do teto em prol de uma retomada mais forte da economia, para que saíssemos da armadilha do crescimento de 1% ao ano. Há quem argumente que a sua adoção acabou retirando financiamento do SUS, na contramão do que se falava em 2016. No momento atual, ante a declaração de calamidade, o teto tem um dispositivo que permite a abertura de créditos extraordinários, o que na prática o suspende por tempo limitado. Formalmente esse tempo acaba no ano que vem, quando ainda precisaremos sustentar a economia diante do cenário de quarentenas intermitentes sobre o qual tenho falado.

No início de março, após a epidemia ser declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e começar a derrubar mercados e economias, disse em entrevista à Globonews que o teto precisaria ser flexibilizado para acomodar o investimento público, fundamental não para o enfrentamento da crise de saúde pública, mas para o que dela sobreviria. Alguns reputaram estapafúrdia a ideia, embora naquele momento eu já enxergasse não apenas o drama que hoje atravessamos, como também a crise crônica que haverá de seguir à atual, mais aguda. Mas, para além disso, a inclusão do investimento público no teto de gastos é anacrônica do ponto de vista da experiência internacional. Estudo publicado pelo FMI em 2015 mostra que há alguma variância entre os diferentes tipos de tetos de gastos, mas todos tendem a excluir o investimento público e/ou ter cláusulas de escape para a adoção de medidas econômicas, quando necessárias.

Queiram os técnicos do governo ou não, o teto é profundamente inadequado tanto para a fase aguda da crise de saúde e da crise econômica quanto para a fase crônica que lhe seguirá. Teremos de continuar a conviver com o vírus, e, por essa razão, tenho insistido que a recuperação será volátil e lenta. Assim seria mesmo que não tivéssemos acrescentado aos nossos problemas a atual crise política e institucional com a saída de Sergio Moro. Dada a conjunção de crises e a dinâmica da economia brasileira, inevitavelmente teremos de nos valer do investimento público durante a fase de reconstrução econômica, pois o investimento privado não retornará tão cedo em situação de volatilidade. Para tanto é preciso pensar simultaneamente em três linhas de frente: as prioridades para o investimento; o detalhamento dos projetos, para que não tenhamos os fracassos vistos em governos anteriores; e a necessária flexibilização do teto. A economia e a população brasileiras precisam mais do que nunca que tabus sejam abandonados em prol do bem maior: a atenuação da crise humanitária provocada pela epidemia e pela crise econômica.

O momento é de pensar seriamente o papel do investimento público, como estão fazendo vários países mundo afora, e de lembrar que nossas deficiências de infraestrutura não serão sanadas sem o envolvimento do Estado. A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.

Câmara do RJ aprova Lei que estabelece incentivos e benefícios para o pagamento de tributos municipais

cesar-maia

 

PROJETO DE LEI Nº 1765-A/2020

EMENTA:
ESTABELECE INCENTIVOS E BENEFÍCIOS PARA O PAGAMENTO DOS TRIBUTOS MUNICIPAIS QUE MENCIONA, CONSIDERANDO A CRISE ECONÔMICA ORIUNDA DA PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS

Autor(es): PODER EXECUTIVO
A CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO,
Decreta

Art. 1º O saldo de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU e/ou de Taxa de Coleta Domiciliar de Lixo – TCL relativos ao exercício de 2020, com cotas vencidas ou a vencer, ainda em aberto na data de publicação desta Lei, poderá ser pago sem acréscimos moratórios e com vinte por cento de desconto, mediante pagamento único e integral em data a ser fixada em Decreto.

§ 1º O saldo de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU e/ou de Taxa de Coleta Domiciliar de Lixo – TCL relativos ao exercício de 2020, com cotas vencidas ou a vencer, ainda em aberto em julho de 2020 poderá ser pago sem acréscimos moratórios em até cinco parcelas mensais, vencendo sucessivamente de agosto a dezembro, desde que respeitados esses vencimentos, observados o prazo para requerimento e o valor mínimo de parcela a serem fixados em Decreto.

§ 2º O disposto neste artigo não autoriza a restituição de qualquer quantia paga anteriormente à data de publicação desta Lei.

§ 3º O benefício disposto neste artigo se aplicará aos lançamentos ordinários ou extraordinários relativos ao exercício de 2020, neste último caso, desde que efetuados até 31 de julho de 2020.

Art. 2º Os créditos tributários de IPTU, inscritos ou não em dívida ativa, relativos a imóvel utilizado como empreendimento hoteleiro,em cada respectivo fato gerador anterior a 2020, e que não tenha logrado preencher as condições para a redução de quarenta por cento, prevista no art. 3º da Lei nº 3.895, de 12 de janeiro de 2005, de eficácia prorrogada nos termos do art. 17 da Lei nº 6.250, de 28 de setembro de 2017, poderão ser quitados com os seguintes benefícios:

I – redução de quarenta por cento no valor do imposto e redução de oitenta por cento dos encargos moratórios, desde que por meio de pagamento único efetuado até, no máximo, o último dia útil de agosto de 2020;

II – redução de quarenta por cento no valor do imposto e redução de sessenta por cento dos encargos moratórios, desde que respeitado parcelamento mensal em até doze vezes, vencendo a primeira parcela na data indicada no inciso I deste artigo, observados o prazo para requerimento e o valor mínimo de parcela a serem fixados em Decreto.
§ 1º Os benefícios estabelecidos neste artigo não são cumuláveis com aqueles previstos no art. 3º desta Lei.

§ 2º O disposto neste artigo não autoriza a restituição de qualquer quantia paga anteriormente à data de publicação desta Lei.

§ 3º Os benefícios deste artigo ficam condicionados à desistência de qualquer impugnação ou recurso ainda em curso, administrativos ou judiciais, relativos à matéria, bem como à renúncia ao direito de voltar a apresentá-los.

§ 4º Incluam-se as atividades econômicas “albergue” e “hostel” como empreendimentos hoteleiros com os mesmos direitos e prerrogativas dispostos no caput e nos incisos I e II.

Art. 3º O Poder Executivo fica autorizado a retomar o Programa Concilia Rio, criado pela Lei municipal nº 5.854, de 27 de abril de 2015, com a redação vigente após a Lei nº 6.640, de 18 de setembro de 2019, apenas para os créditos tributários, inscritos ou não em Dívida Ativa, relativos a fatos geradores do ISSQN,do IPTUe da TCL ocorridos até 31 de dezembro de 2019.

§ 1º Também poderão ser objeto da retomada de que trata o caput as dívidas de Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a Eles Relativos, Realizada Inter Vivos, por Ato Oneroso – ITBI, desde que decorrentes de fatos geradores da obrigação de pagar o imposto ocorridos até 31 de dezembro de 2019.

§ 2º A retomada do Programa de que trata o caput terá duração de noventa dias a contar da data de publicação da sua regulamentação pelo Poder Executivo, ficando vedada a cumulação com:

I – benefícios concedidos pela Lei nº 5.739, de 16 de maio de 2014, pela Lei nº 5.854, de 2015, pela Lei nº 6.156, de 27 de abril de 2017, pelo art. 6º da Lei nº 6.365, de 30 de maio de 2018, e pela Lei nº 6.640, de 18 de setembro de 2019;

II – benefícios estabelecidos no art. 2º desta Lei;
III – regimes de tributação previsto nos arts. 1º e 4º da Lei nº 3.720, de 5 de março de 2004 e com regime de tributação previsto na Lei Complementar federal nº 123, de 14 de dezembro de 2006.
§ 3º Não serão objeto de adesão os créditos referentes a parcelamentos em curso na Secretaria Municipal de Fazenda – SMF.

Art. 4º Os créditos objeto de conciliação na forma do art. 3º desta Lei poderão ser quitados com os benefícios do Programa Concilia Rio, admitidas também as seguintes possibilidades:

I – no caso de pagamento único, redução de dez por cento no valor, na data da publicação desta Lei, do saldo em aberto do principal do tributo monetariamente atualizado, e de oitenta por cento no valor dos encargos moratórios e multas de ofício sobre o saldo de principal de tributo atualizado já reduzido na forma deste inciso;

II – no caso de parcelamento em até doze vezes, redução de dez por cento no valor, na data da publicação desta Lei, do saldo em aberto do principal do tributo monetariamente atualizado, e de sessenta por cento no valor dos encargos moratórios e multas de ofício sobre o saldo de principal de tributo atualizado já reduzido na forma deste inciso.

§ 1º No caso do ITBI, para os créditos não inscritos em Dívida Ativa, somente se admitirá o benefício na forma referida no inciso I deste artigo.

§ 2º Os benefícios dos incisos I e II deste artigo não se aplicam às multas de que tratam os itens 6 e 7 do inciso I do art. 51 da Lei nº 691, de 24 de setembro de 1984, e às multas de que tratam o inciso III, do art. 23, da Lei nº 1.364, de 19 de dezembro de 1988.

Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Sala Virtual, 28 de abril de 2020.

 

 

29 de abril de 2020

A DEMOCRACIA NA ERA PÓS-PANDÊMICA!

(Bolívar Lamounier – O Estado de S. Paulo, 26) No século 19, a democracia liberal apenas engatinhava, mas sua morte já era dada como iminente. Um caso de mortalidade infantil.

Nunca é demais lembrar que a democracia liberal (ou representativa) só começa a se configurar no século 19. Cento e cinquenta anos atrás, com a parcial exceção do Reino Unido e dos Estados Unidos, o mundo se dividia em países desabridamente autoritários e em embriões de democracia. Estes últimos existiam em sociedades oligárquicas, nas quais o jogo político se limitava a pequenos grupos de elite – proprietários e “notáveis” –, a uma minúscula parcela da população habilitada a votar e a uma vasta maioria analfabeta, empregada em atividades rurais e completamente excluída da vida pública. Tomando a nuvem por Juno, os críticos do liberalismo julgavam estar vendo um cemitério, quando, na verdade, se tratava do início de uma construção cheia de opções e possibilidades.

Nas primeiras décadas do século 20, na esteira da Revolução Russa e da ascensão do fascismo, passou-se a entender que a causa mortis da democracia seria sua congênita debilidade. Anêmica, ela não teria como resistir à maré montante dos embates entre capital e trabalho. A 2.ª Guerra Mundial liquidou o fascismo como forma de organização política, mas fortaleceu o comunismo soviético, dando ensejo a um terceiro prognóstico para o fim da democracia. A radicalização ideológica entre direita e esquerda, engendrada internamente em cada país e turbinada de fora para dentro pela guerra fria entre Estados Unidos e URSS, seria a nova causa mortis. Esse prognóstico tinha mais substância, basta lembrar as tragédias a que sucumbimos, Brasil, Argentina e Chile, aqui mesmo, no Cone Sul latino-americano. Fato é, no entanto, que a democracia representativa, bem ou mal, ressuscitou. Atualmente, os piores casos de antiliberalismo político devem-se muito mais à propensão tirânica de certos líderes – Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela; Viktor Orbán, na Hungria; Recep Erdogan, na Turquia – do que a causas supostamente universais.

No presente momento, com o mundo engolfado na monstruosa pandemia de covid-19, ninguém se surpreenderá com o reaparecimento dessa antiga discussão. Agora, já mais que centenária, é plausível considerar que a democracia liberal integra um grupo de altíssimo risco. Não poucos autores já quebram a cabeça em busca de um título, esfalfando-se para não recair no consagrado Crônica de uma Morte Anunciada. O mais invocado é uma reversão da interdependência mundial, cada país se ensimesmando, cuidando mais de seus problemas internos e alterando o papel do Estado na economia. Em recente entrevista ao Washington Post, Henry Kissinger insistiu na perda de hegemonia dos Estados Unidos, vale dizer, na redução do poder relativo de seu país em relação às outras grandes potências – em relação à China, notadamente –, uma vez que isso significaria a debilitação do ideário liberal perante o regime ferreamente totalitário de Xi Jinping.

Parece-me fora de dúvida que o mundo pós-pandêmico passará por grandes transformações, mas não necessariamente desafios que ponham em xeque a própria sobrevivência da ordem liberal-democrática. Os autores que cogitam de uma forte presença do Estado e certa ressurreição do nacionalismo precisam se lembrar de que nenhuma democracia e nenhum sistema político jamais se configurou como um embate entre massas “equipotentes”, iguais em peso e massa, como bolas numa mesa de bilhar. Entre o tosco clientelismo da política local (quem nomeia a professora rural, o agente dos correios, etc.) e o topo, no qual grandes organizações públicas e privadas fixam prioridades e executam as medidas necessárias à acumulação de capital, a distância é imensa. No Brasil, por exemplo, minha intuição é de que tal estrutura permanecerá, mas pela primeira vez teremos uma ótima chance de liquidar o patrimonialismo (o sistema dos “amigos do rei”) e alterar decisivamente a estrutura do investimento público. Em vez de desperdiçar recursos de maneira criminosa – na construção de estádios, por exemplo –, haveremos de entender que nossas prioridades “acumulativas” terão que ver com ciência e tecnologia, biotecnologia, saneamento básico, ampliação dos serviços de saúde e, naturalmente, educação básica. Chance, também, de levarmos a sério o imperativo da reforma política. No quadro dessa reorientação, a transparência e as divergências próprias da democracia serão uma grande alavanca, e não um obstáculo, como cinicamente afirmam os pregoeiros do autoritarismo.

Muitas vezes o barato sai caro. Atentando apenas para os ínfimos custos de produção chineses, o mundo deixou a cargo daquele país praticamente toda a produção de insumos médicos. Se os governantes dos países democráticos tiverem alguma coisa entre as duas orelhas, tratarão de alterar o quanto antes esse modelo.

28 de abril de 2020

FMI PROJETA AUMENTO DA DESIGUALDADE!

(O Estado de S. Paulo , 27) Projeções do FMI mostram que países ricos estão investindo quase 6% do PIB em planos de estímulo à economia, enquanto entre os emergentes, como o Brasil, a média é de 3,5%. Com isso, segundo analistas, EUA e zona do euro, fortemente atingidos pela covid-19, devem retomar o crescimento de forma mais acentuada em 2021. Em outra frente, o Banco Mundial prevê que de 40 milhões a 60 milhões de pessoas engrossem o contingente dos que vivem em situação de extrema pobreza.

Quando o coronavírus começou a se alastrar pelo mundo, a sensação de que qualquer pessoa poderia ser atingida igualmente parecia consenso. A realidade, no entanto, tem se mostrado diferente. Países com capacidade de ampla testagem e bons sistemas de saúde têm se saído melhor do que os outros. As discrepâncias entre a população infectada também merecem atenção: em Nova York, o vírus é duas vezes mais mortal entre negros e latinos, na comparação com brancos, pelas diferenças estruturais de acesso à saúde na sociedade.

Como resultado dessas diferenças, dados recentes de organismos internacionais têm alertado que a pandemia pode aprofundar o desequilíbrio entre nações ricas e nações pobres. Outra consequência: o aumento da extrema pobreza, na primeira alta global do índice desde 1998.

As projeções do Fundo Monetário Internacional mostram que países ricos estão investindo mais do que emergentes e pobres nas respostas ao coronavírus. Enquanto os sete países mais industrializados do mundo investem quase 6% do PIB nos planos de estímulo, os integrantes do G-20, que inclui emergentes como o Brasil, investem em média 3,5%.

Só nos EUA, o pacote do governo Trump para manter a economia aquecida chega a US$ 2 trilhões – o equivalente a mais de R$ 11 trilhões –, ou 10% do PIB. No Japão, o socorro anunciado no início do mês equivale a 20% da economia do país. Já no Brasil, o FMI estima em 2,9% do PIB a resposta, similar à da Malásia (2,8% do PIB).

Pobreza. Já o Banco Mundial prevê que a tendência de redução da pobreza mundial, registrada nos últimos cinco anos, vai se reverter em 2020. A estimativa é que, na comparação com 2019, de 40 milhões a 60 milhões de pessoas passem a engrossar o contingente da população vivendo em condições de extrema pobreza – o equivalente a menos de US$ 1,90 por dia. E a tendência é de que isso se acentue nos lugares que já são os mais afetados. “A crise vai ter impacto desproporcional nos pobres, através da perda de emprego, alta nos preços e disrupções severas na educação e sistema de saúde”, diz o banco.

Países como Uganda tem uma UTI para cada 1 milhão de habitantes, e metade dos países de baixa renda não possui dados que permitam aos pesquisadores saber a real situação do sistema de saúde local.

Estudo do International Food Policy Research Institute mostra que, com o recuo de 1% da atividade mundial – mais otimista do que as projeções recentes de queda de 3% na economia global –, o número de pessoas vivendo na pobreza extrema poderia crescer até 3%. A pesquisa aponta ainda que, em termos absolutos, o maior impacto seria na África Subsaariana, que concentraria quase metade da extrema pobreza mundial.

27 de abril de 2020

PARA CESAR MAIA, FALTA HOMOGENEIDADE AO CENTRÃO PARA VIRAR BASE!

(Valor Econômico, 24) RIO – Num momento em que seu filho e presidente da Câmara dos Deputados é alvo dos mais pesados ataques do bolsonarismo, o vereador do Rio Cesar Maia (DEM) afirma que a tentativa de Jair Bolsonaro de isolar a influência do parlamentar nesta ou na próxima legislatura não é necessariamente factível.

Cesar Maia sugere que, sem uma boa interlocução com a presidência da Câmara, a articulação política de Bolsonaro diretamente com as legendas do Centrão não lhe facilitará a governabilidade. O varejo das conversas, sem a delegação de poder a um líder que vertebre as diferentes siglas ligadas ao bloco, pode ser infrutífero.

“Não sei bem o que é Centrão. As reuniões recentes do presidente [Bolsonaro] com partidos mostra isso. Claramente não há homogeneidade garantida. Cada voto no Parlamento dependerá do fato que se vota”, diz.

Para Cesar Maia, o movimento de Bolsonaro em busca de uma aliança com partidos do Centrão é mais fruto de uma surpresa do governo federal com a grande crise da pandemia da covid-19 do que uma guinada nas relações entre Executivo e Legislativo.

“O que mudou foi a crise do coronavírus, que surpreendeu o governo. Excluindo os carimbos partidários, nada mudou politicamente. Os grupos intragoverno desde a eleição, mesmo não tendo a chancela partidária, são grupos políticos”, afirma.

Para Maia, muito do que virá depende da resposta do governo federal à crise do coronavírus. Inclusive a reação da base de simpatizantes radicais do presidente. Bolsonaro é apoiado por eleitores movidos sobretudo pela antipolítica. Nas redes sociais, já demonstram incredulidade ou recorrem a malabarismos retóricos para negar um estelionato eleitoral.

O presidente se aproxima de figuras tradicionais da velha política como Roberto Jefferson, Valdemar Costa Neto e Ciro Nogueira, dirigentes, respectivamente, de PTB, PL e PP, trinca um dia chamada de “os três porquinhos” do fisiologismo nacional.

Para o ex-prefeito do Rio, não há como prever se a aliança levará à queda de popularidade de Bolsonaro. “A taxa de sucesso ou insucesso na área de saúde deve balizar as tendências”, afirma.

A procura pelo Centrão ocorre depois de seguidas tentativas de Bolsonaro de dobrar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), contra os quais jogou sua militância. O enfrentamento culminou com a presença e discurso do presidente em ato com cartazes que pediam a intervenção militar, em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, no domingo. Para Cesar Maia, a possibilidade de Bolsonaro promover um autogolpe é zero. “De nenhuma forma. As instituições pós-1988 são muito sólidas”, diz o ex-prefeito.

Em sua opinião, o prejuízo ao país provocado pelo grupo antidemocrata que pediu a edição de um novo Ato Institucional nº 5 (AI-5) – norma que suspendeu direitos individuais e endureceu a ditadura militar em 1968 – deve ser ponderado.

“O STF se antecipou a estes problemas. A partir disso há sinais positivos”, aponta. Nesta semana, o Supremo aceitou o pedido feito pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, para se investigar quem organizou e financiou os atos pelo país.

Para o vereador, a participação de Bolsonaro na manifestação não configura crime de responsabilidade. O pai de Rodrigo Maia, responsável por acolher pedidos de impeachment contra o presidente da República, também não vê condições políticas para que um processo de afastamento prospere.

Cesar Maia, que costuma dizer que o filho tem um perfil muito diferente ao seu, com mais paciência para a costura política, segue a mesma linha de cautela e diz ser “um fã e liderado do Rodrigo”. Nega se sentir atingido pelos ataques de Bolsonaro, como na insinuação, feita na semana passada, de que o presidente da Câmara busca o diálogo como forma de realizar algum tipo de negociação escusa. “Faz parte da política”, minimiza.

Cesar Maia afirma que o filho não deve ter o mandato como presidente da Casa renovado, no ano que vem. Para isso, é aventada a aprovação de uma proposta de emenda à Constituição que permita a reeleição dele e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre: “Não creio que seja tomada essa iniciativa”.

Maia também não é favorável a mudanças na Constituição que alterem o sistema de governo. O assunto voltou ao cenário diante do impasse entre Bolsonaro e o Congresso. Entre os modelos à disposição na prateleira estão o parlamentarismo e o semipresidencialismo. “Fui deputado constituinte e entendo que este arcabouço constitucional e as cláusulas pétreas devem continuar pétreas”, defende.

Para Maia, os efeitos da pandemia – que bateu recorde de mortes no país, com 407 óbitos em um dia, pelos dados divulgados ontem – serão determinantes para a política e a economia. Sobre a atuação de Bolsonaro, que minimizou a doença desde o início, resume: “A resposta foi dada por ele mesmo, que afirma que assumiu os riscos”.

Em sua opinião, as propostas em andamento no Congresso, como respostas à crise, são consensuais e “único caminho” possível. Pai de um liberal, como Rodrigo Maia se define, Cesar afirma que a pandemia, no entanto, cria uma inflexão “inevitavelmente mais estatizante” na condução da economia.

Nas eleições municipais, prevê, o “envolvimento de todos na luta contra o covid-19 será um tema novo”. A atuação diante da pandemia tende a aumentar a popularidade de políticos em sintonia com a população, analisa. É o caso do governador Wilson Witzel (PSC), em cuja gestão o DEM ocupa a secretaria de Obras – “ele cresceu muito no combate à covid-19” – e até do prefeito e adversário Marcelo Crivella (Republicanos). A percepção de Maia é que a avaliação do prefeito “melhorou bastante nas últimas duas semanas”. Entre as razões estariam medidas como a obrigatoriedade do uso de máscaras e a compra de equipamentos. A permanente exposição na mídia também pode favorecer. “Em nível internacional isso tem ocorrido [com os mandatários]. Aqui há que aguardar”, diz o vereador, que, no entanto, é cético em relação ao fortalecimento de Crivella.

O partido do prefeito filiou os filhos e a ex-mulher do presidente, Rogéria. Carlos deve liderar a máquina bolsonarista nas redes sociais a favor de Crivella, como fez para eleger o pai.

Para Cesar Maia, falta homogeneidade ao Centrão para virar base

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(Valor Econômico, 24) RIO – Num momento em que seu filho e presidente da Câmara dos Deputados é alvo dos mais pesados ataques do bolsonarismo, o vereador do Rio Cesar Maia (DEM) afirma que a tentativa de Jair Bolsonaro de isolar a influência do parlamentar nesta ou na próxima legislatura não é necessariamente factível.

Cesar Maia sugere que, sem uma boa interlocução com a presidência da Câmara, a articulação política de Bolsonaro diretamente com as legendas do Centrão não lhe facilitará a governabilidade. O varejo das conversas, sem a delegação de poder a um líder que vertebre as diferentes siglas ligadas ao bloco, pode ser infrutífero.

“Não sei bem o que é Centrão. As reuniões recentes do presidente [Bolsonaro] com partidos mostra isso. Claramente não há homogeneidade garantida. Cada voto no Parlamento dependerá do fato que se vota”, diz.

Para Cesar Maia, o movimento de Bolsonaro em busca de uma aliança com partidos do Centrão é mais fruto de uma surpresa do governo federal com a grande crise da pandemia da covid-19 do que uma guinada nas relações entre Executivo e Legislativo.

“O que mudou foi a crise do coronavírus, que surpreendeu o governo. Excluindo os carimbos partidários, nada mudou politicamente. Os grupos intragoverno desde a eleição, mesmo não tendo a chancela partidária, são grupos políticos”, afirma.

Para Maia, muito do que virá depende da resposta do governo federal à crise do coronavírus. Inclusive a reação da base de simpatizantes radicais do presidente. Bolsonaro é apoiado por eleitores movidos sobretudo pela antipolítica. Nas redes sociais, já demonstram incredulidade ou recorrem a malabarismos retóricos para negar um estelionato eleitoral.

O presidente se aproxima de figuras tradicionais da velha política como Roberto Jefferson, Valdemar Costa Neto e Ciro Nogueira, dirigentes, respectivamente, de PTB, PL e PP, trinca um dia chamada de “os três porquinhos” do fisiologismo nacional.

Para o ex-prefeito do Rio, não há como prever se a aliança levará à queda de popularidade de Bolsonaro. “A taxa de sucesso ou insucesso na área de saúde deve balizar as tendências”, afirma.

A procura pelo Centrão ocorre depois de seguidas tentativas de Bolsonaro de dobrar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), contra os quais jogou sua militância. O enfrentamento culminou com a presença e discurso do presidente em ato com cartazes que pediam a intervenção militar, em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, no domingo. Para Cesar Maia, a possibilidade de Bolsonaro promover um autogolpe é zero. “De nenhuma forma. As instituições pós-1988 são muito sólidas”, diz o ex-prefeito.

Em sua opinião, o prejuízo ao país provocado pelo grupo antidemocrata que pediu a edição de um novo Ato Institucional nº 5 (AI-5) – norma que suspendeu direitos individuais e endureceu a ditadura militar em 1968 – deve ser ponderado.

“O STF se antecipou a estes problemas. A partir disso há sinais positivos”, aponta. Nesta semana, o Supremo aceitou o pedido feito pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, para se investigar quem organizou e financiou os atos pelo país.

Para o vereador, a participação de Bolsonaro na manifestação não configura crime de responsabilidade. O pai de Rodrigo Maia, responsável por acolher pedidos de impeachment contra o presidente da República, também não vê condições políticas para que um processo de afastamento prospere.

Cesar Maia, que costuma dizer que o filho tem um perfil muito diferente ao seu, com mais paciência para a costura política, segue a mesma linha de cautela e diz ser “um fã e liderado do Rodrigo”. Nega se sentir atingido pelos ataques de Bolsonaro, como na insinuação, feita na semana passada, de que o presidente da Câmara busca o diálogo como forma de realizar algum tipo de negociação escusa. “Faz parte da política”, minimiza.

Cesar Maia afirma que o filho não deve ter o mandato como presidente da Casa renovado, no ano que vem. Para isso, é aventada a aprovação de uma proposta de emenda à Constituição que permita a reeleição dele e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre: “Não creio que seja tomada essa iniciativa”.

Maia também não é favorável a mudanças na Constituição que alterem o sistema de governo. O assunto voltou ao cenário diante do impasse entre Bolsonaro e o Congresso. Entre os modelos à disposição na prateleira estão o parlamentarismo e o semipresidencialismo. “Fui deputado constituinte e entendo que este arcabouço constitucional e as cláusulas pétreas devem continuar pétreas”, defende.

Para Maia, os efeitos da pandemia – que bateu recorde de mortes no país, com 407 óbitos em um dia, pelos dados divulgados ontem – serão determinantes para a política e a economia. Sobre a atuação de Bolsonaro, que minimizou a doença desde o início, resume: “A resposta foi dada por ele mesmo, que afirma que assumiu os riscos”.

Em sua opinião, as propostas em andamento no Congresso, como respostas à crise, são consensuais e “único caminho” possível. Pai de um liberal, como Rodrigo Maia se define, Cesar afirma que a pandemia, no entanto, cria uma inflexão “inevitavelmente mais estatizante” na condução da economia.

Nas eleições municipais, prevê, o “envolvimento de todos na luta contra o covid-19 será um tema novo”. A atuação diante da pandemia tende a aumentar a popularidade de políticos em sintonia com a população, analisa. É o caso do governador Wilson Witzel (PSC), em cuja gestão o DEM ocupa a secretaria de Obras – “ele cresceu muito no combate à covid-19” – e até do prefeito e adversário Marcelo Crivella (Republicanos). A percepção de Maia é que a avaliação do prefeito “melhorou bastante nas últimas duas semanas”. Entre as razões estariam medidas como a obrigatoriedade do uso de máscaras e a compra de equipamentos. A permanente exposição na mídia também pode favorecer. “Em nível internacional isso tem ocorrido [com os mandatários]. Aqui há que aguardar”, diz o vereador, que, no entanto, é cético em relação ao fortalecimento de Crivella.

O partido do prefeito filiou os filhos e a ex-mulher do presidente, Rogéria. Carlos deve liderar a máquina bolsonarista nas redes sociais a favor de Crivella, como fez para eleger o pai.

24 de abril de 2020

MORTES NO PAÍS DOBRAM A CADA CINCO DIAS, APONTA FIOCRUZ!

(O Estado de S. Paulo, 23) Sistema que agrupa dados sobre o novo coronavírus mostra que o número de mortes provocadas pela covid-19 no Brasil tem dobrado a cada cinco dias. Nos EUA, a duplicação ocorre a cada seis dias. Na Itália e na Espanha, a cada oito. A nota técnica da Fiocruz também alerta que todos os municípios brasileiros com mais de 500 mil habitantes têm casos da doença.

O número de mortes provocadas pela covid-19 no Brasil tem dobrado a cada cinco dias. Nos Estados Unidos, essa duplicação ocorre a cada seis dias, e na Itália e na Espanha, a cada oito. O dado consta da última nota técnica do MonitoraCovid-19, um sistema da Fiocruz que agrupa dados sobre a pandemia do novo coronavírus, e revela a velocidade com que a epidemia se dissemina no Brasil.

“A nossa situação hoje é pior do que a de Itália, Espanha e Estados Unidos. Por isso, o número de mortes está dobrando em um espaço de tempo menor”, afirmou o epidemiologista Diego Xavier, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict), da Fiocruz, e um dos responsáveis pelo trabalho. Além de epidemiologistas, geógrafos e estatísticos do Icict/Fiocruz têm trabalhado com a ferramenta para produzir análises sobre o avanço da doença.

“Os dados de óbitos são mais confiáveis do que os dados de casos para medir o avanço da epidemia”, justificou Xavier. “Isso porque, no caso do óbito, mesmo o diagnóstico que não foi feito durante a evolução clínica do paciente pode ser investigado. Além disso, a situação clínica do paciente que vem a óbito é mais evidente, quando comparada aos casos que podem ser assintomáticos e leves.”

Interiorização. A nota técnica também alerta para a interiorização da epidemia, que está chegando de forma acelerada aos municípios de menor porte do País. Dentre os municípios com mais de 500 mil habitantes, todos já apresentam casos da doença. Naqueles com população entre 50 mil e 100 mil habitantes, 59,6% têm casos. Já 25,8% dos municípios com população entre 20 mil e 50 mil, 11,1% daqueles com população entre 10 mil e 20 mil habitantes e 4,1% dos municípios com população até 10 mil habitantes apresentam doentes de covid-19.

Para o epidemiologista, a decisão de suspender o isolamento social em municípios que não têm nenhum caso da doença registrado é extremamente temerária, sobretudo em um momento de aumento da velocidade da disseminação da doença. “Estão tomando uma decisão muito arriscada”, disse. O pesquisador lembrou que, mesmo que não haja registro oficial, a doença já pode estar circulando.

Além disso, ressalta ele, as cidades menores estão ligadas às maiores, e é inevitável que o vírus chegue até elas. “À medida que a doença avança para o interior e atinge cidades menores, a demanda por serviços mais especializados de saúde, como UTIs e respiradores, também cresce”, constata. “Só que esses municípios menores, em sua maioria, não detêm esses recursos de saúde, então terão de enviar seus pacientes a centros maiores, que já apresentam leitos, equipamentos e pessoal de saúde em situação difícil”, alertou Xavier.

Exemplo. Com 14 mil habitantes, dois casos confirmados e um óbito, Santa Branca, no interior de São Paulo, era até ontem o menor município paulista com mais incidência do coronavírus. Até terça-feira, 239 municípios do interior paulista (de um total de 645) já registravam casos da doença. Grande parte tinha apenas um registro de infecção, segundo dados divulgados pelo governo do Estado de São Paulo.

O prefeito de Santa Branca, Celso Simão Leite (PSDB), diz que o vírus não circula na pequena cidade do Vale do Paraíba. “Esses casos não são nossos, embora sejam moradores daqui.” Ele contou que as duas pessoas que contraíram o vírus são um casal que mora há muito tempo em Santa Branca, mas, segundo o prefeito, a infecção aconteceu em um hospital de São Paulo, onde a mulher de 71 anos fazia tratamento de câncer. Ela acabou morrendo. “O marido voltou para Santa Branca e está cumprindo uma quarentena rigorosa.”

Segundo o prefeito, o sepultamento ocorreu no cemitério local, com caixão fechado e a presença de poucos familiares, em cerimônia rápida. “Não durou meia hora e foram tomados todos os cuidados, mas numa cidade pequena, acostumada com o velório tradicional, isso chega a ser chocante.” Leite conta que há pressão para a reabertura do comércio e a volta dos turistas, mas mantém a quarentena com apoio da maioria da população.

“A cidade tem um hospital com quatro leitos equipados com respiradores, mas os casos urgentes vão para o hospital de referência, em Jacareí, a 15 quilômetros”, diz Leite. Ontem, todos os leitos estavam desocupados, o que ele atribui ao medo do coronavírus. “Nossa média de atendimento no hospital caiu de 190 para 20 pacientes por dia. Por medo, as pessoas só procuram o hospital em último caso.”

“Temos 55% de isolamento social e vamos continuar acompanhando as restrições do governo estadual.”

23 de abril de 2020

QUARENTENAS INTERMITENTES!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 22) Cientistas na linha de frente do combate à covid-19 trabalham com cenário de quarentenas intermitentes como novo normal.

Quarentenas intermitentes muito provavelmente serão o nosso “novo normal”. Queiramos ou não aceitar essa nova realidade, a verdade é que ela já está posta. É esse o cenário com o qual trabalham cientistas, infectologistas e pessoas que estão na linha de frente do combate à Covid19. As razões são múltiplas: da falta de conhecimento sobre a imunidade conferida pelo vírus à imprevisibilidade das manifestações clínicas da doença; das dificuldades de desenvolver uma vacina para um vírus novo à logística de distribuí-la por todo planeta, caso ela venha a existir.

Não sou infectologista. Contudo, como economista tenho a obrigação de manter-me bem informada sobre os determinantes da crise econômica e do quadro futuro que se apresenta. Esses determinantes não são de natureza econômica: são provenientes do comportamento de uma fitinha de RNA, o vírus Sars-CoV-2. Tenho conversado e interagido com profissionais das áreas de saúde pública, infectologia, virologia, microbiologia. Não tratar do que se passa de forma interdisciplinar é erro certo não apenas na formulação dos cenários que se apresentam, mas, sobretudo, nas medidas econômicas necessárias para atender às necessidades da população.

Já escrevi nesse espaço que o quadro de quarentenas intermitentes requererá, necessariamente, a adoção de uma renda básica permanente: de outro modo, não haverá como sustentar a população mais vulnerável do País nos momentos em que o recrudescimento da epidemia resultar em medidas de distanciamento ou isolamento sociais. Em artigos para este jornal, para a Revista Época e em vídeos no meu canal do YouTube tenho dito à exaustão que o momento pede que todos comecem a se preparar para uma nova realidade. Não retornaremos ao mundo que conhecíamos em janeiro de 2020 tão cedo – talvez esse mundo tenha já desaparecido para sempre.

Fazer chegar essa mensagem aos ouvidos das pessoas, tarefa para a qual eu e muitos outros temos nos dedicado, é muito difícil. Evidentemente, ninguém quer acreditar que o modo de vida com o qual estavam acostumados se foi. Mas é preciso preparar-se para isso e acreditar no que a ciência nos tem dito.

A economia das quarentenas intermitentes é algo que não conhecemos. É um sistema que não funciona da forma relativamente contínua com a qual estamos acostumados, mas um sistema que soluça e engasga. Para atenuar esses espasmos e a volatilidade deles decorrente, tenho insistido, junto com outras pessoas, que é preciso pensar na reconversão da indústria. A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las.

Esse esforço passa pela produção em escala de equipamentos hospitalares diversos, incluindo os de proteção individual, de que toda a população precisará quando as quarentenas forem temporariamente relaxadas. Abordei esse tema em entrevista concedida ao programa Roda Viva na última segunda-feira, 20. Serviços também precisarão se readequar: restaurantes, por exemplo, terão de aprender a funcionar em rodízios, com poucos clientes e com uma capacidade de entrega que hoje não têm. Comerciantes terão de adaptar seus negócios para a convivência com o vírus, redesenhando normas e adotando plataformas online quando possível. Também precisarão, inevitavelmente, contar com serviços de entrega.

Novas tecnologias terão de ser desenvolvidas.

Elevadores não poderão ter botões, já que são foco de contaminação. Deverão ter sensores térmicos? Tecnologias de reconhecimento de voz? É provável que a indústria tecnológica dê um salto de 10 anos, que o processo de automação, já em curso, ganhe imenso ímpeto. Nesse caso, as relações de trabalho haverão de mudar ainda mais rapidamente, tornando a adoção da renda básica permanente mundo afora uma medida indiscutivelmente necessária.

Para aquelas empresas que podem trabalhar em rodízios, reduzindo o número de pessoas nos escritórios, o trabalho de casa será uma realidade que veio para ficar. Vamos precisar de mais capacidade para os serviços de internet, testemunharemos o crescimento em larguíssima escala da indústria de aplicativos para fins diversos. A segurança online será exponencialmente mais importante do que já é. A regulação da privacidade e da comercialização de dados precisará sair do papel.

Deixo essas ideias para que reflitam sobre o cotidiano, sobre tudo aquilo em que não paramos para pensar. Deixo-as para que comecem a se adaptar desde já.

22 de abril de 2020

RELATÓRIO FINANCIAL TIMES!

(Financial Times, 21) NOVO: Terça-feira, 21 de abril, atualização das trajetórias dos coronavírus

Mortes diárias:
• Ainda é cedo para dizer se os EUA atingiram o pico
• Começando a parecer que o Reino Unido chegou ao pico
• Descida das curvas parecem muito mais lentas que as subidas
• Sucessos : Austrália, Noruega, Áustria

Por que digo que as mortes diárias no Reino Unido podem ter atingido o pico?

No Reino Unido, estamos vendo * menos * mortes do que o mesmo dia da semana passada.

Novos casos diários:
• Parece cada vez mais seguro dizer que as infecções diárias confirmadas nos EUA atingiram o pico, embora a descida do pico seja lenta

• Novos casos ocorrendo em quatro países que agiram cedo: Nova Zelândia, Austrália, Noruega, Áustria (também Grécia)

Casos em forma cumulativa:
• Curva dos EUA começando a diminuir?
• A Turquia ainda luta contra um surto grave
• O Japão passou o total da Coréia, Cingapura passou a curva do Japão: ambos mostram o perigo de pensar que um país resolveu a questão.

Espanha:
• Madrid agora firmemente em fase de “redução”, a Catalunha lutando para permanecer em redução
• (Outras regiões espanholas não mostradas devido a problemas com seus dados de hospitalização)

França:
• Todas as regiões começam a ver uma queda na ocupação total, incluindo ex-epicentros Ile de France e Grand Est

EUA:
• Dados de hospitalização irregulares de estado para estado
• NY e Louisiana, ambos na fase de “redução”, diminuindo a ocupação do leito hospitalar
• Taxa de aceleração caindo em NJ e Colorado, esperançosamente em breve redução
• Connecticut também no caminho da queda da ocupação

Grã Bretanha:
• Os hospitais de quase todas as regiões agora têm menos pacientes cobertos do que o mesmo período da semana passada
• Sugere que o Reino Unido está próximo ou próximo do pico de novas infecções confirmadas, embora os testes no Reino Unido ainda estejam atrasados ​​e as casas de repouso estejam ausentes dessa visão

Suécia:
• Lembre-se de que a Suécia não foi bloqueada como na maioria dos lugares.  Reuniões sociais ainda comuns
• Mas os dados mostram desaceleração constante em novas hospitalizações
• Leitos hospitalares diários ocupados agora inalterados em relação à semana passada e em curso para redução líquida semana a semana muito em breve

20 de abril de 2020

COM CORONAVÍRUS, DESTINO BATE NA PORTA DO PLANETA!

(Paulo Coelho – Ilustríssima – Folha de S.Paulo, 19) “Senhor meu Deus, eu não tenho ideia para onde estou indo, não vejo o caminho adiante”, diz o monge trapista Thomas Merton, em um livro em que reflete sobre a solidão.

E, de repente, o mundo inteiro parece estar sendo forçado a pensar nessas palavras. Por mais que queiramos um rumo, uma meta, ou mesmo um guia que nos leve por caminhos desconhecidos, se desejamos conhecer nosso futuro, é necessário aceitar essa realidade.

Achávamos que tínhamos todas as respostas, e as perguntas mudaram. Nos sentíamos seguros em nossas bolhas e zonas de conforto, e o inimigo invisível penetrou-as. E nos forçou a encarar um de nossos maiores fantasmas: o isolamento, a solidão. Sim, temos muitos amigos, mas eles não devem se aproximar, e assim precisa ser feito.

Entretanto, seria a solidão algo tão ruim assim? A solidão não é a ausência de companhia, mas o momento em que nossa alma tem a liberdade de conversar conosco e nos ajudar a decidir sobre nossas vidas.

Quem nunca está só já não conhece mais a si mesmo. E quem não conhece a si mesmo passa a temer o vazio, mas o vazio não existe. Um mundo gigantesco se esconde em nossa alma, esperando para ser descoberto. Está ali, com sua força intacta, mas é tão novo e tão poderoso que temos medo de aceitar sua existência.

Aceitemos este encontro. O destino está batendo na porta de todos no planeta, como aquele anjo que veio durante as pragas do Egito e entrou nas casas que não tinham sido marcadas, dizimando os primogênitos.

Não podemos convencê-lo de que estamos bem, de que nosso universo está em ordem, de que nunca fizemos mal a ninguém: se ele achar que não aprendemos nada, entrará e acabará com todos ali.

Nunca mais voltaremos a ser os mesmos. Claro que os “influencers” na internet, os que se apegam ao que viviam no Réveillon de 2020 em suas lanchas e sítios cercados de luxo, com seguranças e fotos sorridentes no Instagram, os que buscavam mostrar superioridade exibindo roupas de marca, mesmo que não tivessem sequer dinheiro para alimentar-se, todos esses ainda continuarão a querer fazer renascer das cinzas o que não tem mais espaço na Terra.

Mas isso jamais tornará a acontecer. O mundo agora se concentra em uma única coisa: todo o nosso engenho e a nossa arte para que possamos sobreviver. E quando o perigo passar, que leve consigo os preconceitos, a arrogância, a cegueira que foi, aos poucos, nos impedindo de ver o irmão ou a irmã ao nosso lado.

Os negacionistas negam. Os religiosos fanáticos creem na punição divina. Os ecologistas culpam o aquecimento climático. Mas temos mesmo uma resposta?

Em um de meus livros, “O Vencedor Está Só”, ironizava: “Salvar o planeta? Como podemos ser tão arrogantes? O planeta é, foi e sempre será mais forte que nós. Não podemos destruí-lo; se ultrapassarmos determinada linha, ele se encarregará de apagar-nos de sua memória e continuará a girar em torno do Sol”.

Resta-nos aprender a usar esta pandemia, a refletir sobre nossa vida até agora. Voltarmos a valorizar as pequenas coisas, porque mesmo que as autoridades digam que isso vai passar, ninguém sabe ao certo quando ou se a pandemia será substituída por algo pior.

É hora de dar importância ao convívio familiar. Ter suficiente humildade para aceitar que o universo é governado por leis que não conseguimos entender, e o mistério da vida vale muitíssimo mais que a soma dos componentes que compõem o nosso corpo (oxigênio, água, carbono etc.), cujo valor, se comprados na farmácia, não ultrapassaria R$ 5.000.

Valorizar agora, mais do que nunca, o amor daqueles que nos querem bem. Ajudar, sempre que possível, aqueles que não têm a quem recorrer.

Na noite dos tempos, os seres humanos viviam em cavernas —com um líder sábio, um xamã que conseguia ler os sinais dos tempos e as propriedades medicinais das plantas, artistas que pintavam as paredes, contadores de história que falavam de épocas ainda mais antigas, com animais mitológicos.

Cada um tinha seu papel. Se eu vivesse nessa época, com certeza seria o contador de histórias. E como nós voltamos, de certa maneira, a dar importância aos que nos cercam, não posso deixar de contar uma delas aqui.

Era uma vez um rei em cujo reino todos eram felizes, embora seus vizinhos vivessem em estado de guerra constante. Aquilo o incomodava muito, e ele chamou seu conselheiro.

“Por que somos o único país em paz?”, indagou. “Porque os outros não estão contentes consigo mesmos. Fazem tudo sem o menor entusiasmo, reclamam o tempo todo, e se agridem com um ódio jamais visto. Brigam entre si porque têm opiniões diferentes. Volta e meia surge alguém querendo a coroa, e a única possibilidade de conseguir isso é difamando quem está no trono”, respondeu o conselheiro.

“É perigoso viver cercado de tanto ódio. Hoje eles se atacam entre si e amanhã terminarão nos atacando, mesmo que não tenham motivo para isso. Como poderemos ensiná-los a importância de viver em paz?”, refletiu o rei.

Era muito difícil, porque cada um desses reinos falava uma língua diferente. Desolado, sem ter como responder à própria pergunta, o rei passou a noite inteira em claro. A rainha quis saber o que estava acontecendo. Assim que ele explicou o motivo de sua tristeza, ela lhe deu uma ideia.

“Isso”, respondeu o rei. No dia seguinte, mandou um arauto chamar todos os habitantes de seu reino e os reuniu na frente do palácio.

“Preciso da ajuda de vocês. A pessoa que criar a melhor pintura sobre a importância da paz receberá dez moedas de ouro.” Todos se colocaram a trabalhar febrilmente —não apenas pelo prêmio, mas porque respeitavam e admiravam o rei.

No final do ano, a sala principal do castelo estava cheia de pinturas de todos os tipos, criadas por todas as pessoas —o monge, o padeiro, o melhor aluno da escola, o pior da escola (que via ali uma chance de redimir-se diante dos colegas), o ferreiro, os agricultores, e assim por diante.

O rei passou dias para escolher o vencedor. Até que chegou a uma conclusão, convocou de novo todos os seus súditos, e mandou colocar na sala principal dois quadros cobertos por panos.

“Obrigado pelo esforço de cada um”, disse. “Tudo o que produziram foi extraordinário, e não há nada melhor que a arte para criar pontes entre reinos que são tão diferentes entre si. Gostaria que todos fossem premiados, mas é impossível. Portanto, escolhi dois trabalhos como finalistas.”

“Eis o segundo lugar”, anunciou então. O rei retirou o pano que cobria a pintura à sua esquerda. Mostrava uma das paisagens mais belas que seus súditos podiam imaginar —um vale em que as montanhas estavam cobertas de vegetação, um pôr do sol belíssimo, um lago de águas azuis e peixes saltitantes, enquanto no céu passeavam aves com plumas de diversas cores. Em torno do lago, as famílias conversavam entre si e os meninos brincavam.

Todos aplaudiram e ficaram aguardando o vencedor, já que dificilmente alguém conseguiria retratar um cenário mais pacífico.

Mas o rei continuou: “Eu teria dado o primeiro prêmio a esse quadro que acabo de mostrar, se não fosse por outra pintura que refletisse melhor o significado da paz”. Retirou o pano do quadro vencedor, e a audiência, em uníssono, exclamou “ohhh!”, horrorizada pela escolha.

“O rei está louco!”, gritou uma mulher. “Não entende nada!”, bradou o padeiro. “Sinceramente, Vossa Majestade acha que a paz é isto?”, indagou o astrólogo real. “Devia ter deixado a escolha para gente mais capaz.”

O quadro mostrava um céu com nuvens negras, raios, rochedos escarpados, um vento que havia arrancado as folhas de todas as árvores —menos as de uma, no alto de uma rocha.

Depois que o burburinho na sala cessou, o rei voltou a tomar a palavra. “Imagino que pensam que não entendo nada de arte, e muito menos de paz. Quando vi pela primeira vez este quadro, também fiquei horrorizado. Quem foi o louco do artista que enviou isso para o concurso? Foi então que reparei com cuidado na árvore em cima do rochedo. Ali, em um ramo, está um ninho. E no ninho, um pequeno pássaro.”

E prosseguiu o rei: “O pássaro está sorrindo porque sua mãe acabou de chegar e está lhe dando o que comer. Quando você tem uma família, é capaz de enfrentar tudo com alegria, lutar por ela e alimentá-la, não importa o que está ocorrendo ao seu redor. A paz em seu coração lhe dá as forças de que necessita para enfrentar todas as tempestades e superar todos os obstáculos”.

E o rei mandou o quadro viajar pelos reinos à sua volta. Claro, sempre alguém precisava explicar seu significado, mas aos poucos todos foram entendendo a importância da paz, passaram a colaborar entre si, e o mundo nunca mais assistiu às atrocidades até então frequentes.

Sempre haverá uma mão para nos guiar quando estivermos nos desviando de nosso caminho —tudo o que precisamos fazer é prestar atenção aos sinais que nos cercam. E, note-se, não estou falando de Deus, e sim de mulheres e homens de boa vontade que, no momento certo, aparecem em nossas vidas e na vida da comunidade, como médicos e enfermeiros, entre muitos outros a que só agora prestamos atenção, que só agora percebemos ser tão importantes em nossas vidas.

Prestemos atenção, como fez o rei da história, a esses sinais. Que também possamos aparecer na vida dos outros que precisam de nós, sem perguntar muito, apenas para dividir, generosamente com eles, a nossa condição humana.

Comecei este artigo com um trecho de Thomas Merton e encerro com palavras do mesmo poema:

“Não conheço bem a mim mesmo, / E o fato de achar que estou cumprindo Tua vontade / não me garante que estou fazendo o que devo. / Mas acredito que meu desejo de agradar-Te Te deixa contente. / Espero que este desejo esteja presente em tudo que eu faça. / E que eu sempre consiga manter Teu amor em meu coração. / Se eu continuar assim, Tu me guiarás pelo caminho certo / apesar das minhas dúvidas”.

17 de abril de 2020

DEVEMOS LEMBRAR ACIMA DE TUDO QUE, EM UMA PANDEMIA, NENHUM PAÍS É UMA ILHA!

(Martin Wolf – Financial Times/Folha de S.Paulo, 16) Em seu mais recente Panorama Econômico Mundial, o FMI chama o que está acontecendo agora de o “Grande Bloqueio”. Eu prefiro o “Grande Desligamento”: essa expressão capta a realidade de que a economia global entraria em colapso mesmo que os formuladores de políticas não estivessem impondo bloqueios, e poderá continuar em colapso após o fim dos bloqueios.

No entanto, como quer que a chamemos, uma coisa é clara: é a maior crise que o mundo enfrentou desde a Segunda Guerra Mundial e o maior desastre econômico desde a Depressão da década de 1930. O mundo chegou a este momento com divisões entre suas grandes potências e incompetência de proporções aterradoras nos mais altos níveis de governo. Vamos passar por isso, mas para o quê?

Em janeiro, o FMI não tinha ideia do que estava prestes a nos atingir, em parte porque as autoridades chinesas não haviam se informado entre si, e muito menos ao resto do mundo. Agora estamos no meio de uma pandemia com vastas consequências. Mas muito permanece incerto. Uma incerteza importante é como os líderes míopes responderão a essa ameaça global.

Segundo qualquer previsão, o FMI sugere agora que a produção global per capita se contrairá 4,2% neste ano, muito mais que o 1,6% registrado em 2009, durante a crise financeira global. Noventa por cento de todos os países experimentarão um crescimento negativo do Produto Interno Bruto real per capita neste ano, contra 62% em 2009, quando a robusta expansão da China ajudou a amortecer o golpe.

Em janeiro, o FMI previu crescimento suave neste ano. Agora prevê uma queda de 12% entre o último trimestre de 2019 e o segundo trimestre de 2020 nas economias avançadas, e queda de 5% nos países emergentes e em desenvolvimento. Mas, de modo otimista, está previsto que o segundo trimestre será o ponto mais baixo. Posteriormente, o FMI espera uma recuperação, apesar de previsões de que a produção nas economias avançadas fique abaixo dos níveis do quarto trimestre de 2019 até 2022.

Essa “linha de base” pressupõe a reabertura econômica no segundo semestre de 2020. Nesse caso, o FMI prevê uma contração global de 3% em 2020, seguida de uma expansão de 5,8% em 2021. Nas economias avançadas, a previsão é de contração de 6,1% neste ano, seguida por uma expansão de 4,5% em 2021. Tudo isso pode ser excesso de otimismo.

O FMI oferece três cenários alternativos preocupantes. No primeiro, os bloqueios duram 50% a mais do que na linha de base. No segundo, há uma segunda onda do vírus em 2021. No terceiro, esses elementos se combinam. Sob bloqueios mais longos neste ano, a produção global é 3% menor em 2020 do que na linha de base. Com uma segunda onda de infecções, a produção global ficaria 5% abaixo da linha de base em 2021. Com os dois infortúnios, a produção global ficaria quase 8% abaixo da linha de base em 2021.

Sob a última possibilidade, os gastos públicos em economias avançadas seriam 10 pontos percentuais mais altos em relação ao PIB em 2021, e a dívida pública, 20 pontos percentuais a mais em médio prazo do que na linha de base já desfavorável. Não temos uma ideia real de qual se mostrará mais correta. Pode ser ainda pior: o vírus pode sofrer mutação; a imunidade para as pessoas que o tiveram pode não durar; e uma vacina pode não estar disponível. Um micróbio derrubou toda a nossa arrogância.

O que devemos fazer para gerenciar esse desastre? Uma resposta é não abandonar os bloqueios antes que a taxa de mortalidade seja controlada. Será impossível reabrir as economias com uma epidemia violenta aumentando o número de mortos e levando os sistemas de saúde ao colapso. Mesmo que fôssemos autorizados a consumir ou voltar ao trabalho, muitos não o fariam. Mas é essencial preparar-se para esse dia, criando capacidades bastante aprimoradas para testar, rastrear, colocar em quarentena e tratar as pessoas. Nenhuma despesa deve ser poupada nisso ou em investimentos na criação, produção e uso de uma nova vacina.

Acima de tudo, como afirma o ensaio introdutório de um relatório do Instituto Peterson de Economia Internacional, em Washington, sobre o papel essencial do Grupo dos 20 principais países: “Simplificando, na pandemia de Covid-19, a falta de cooperação internacional significa que mais pessoas vão morrer”. Isso é verdade na política de saúde e na garantia de uma resposta econômica global eficaz. Tanto a pandemia quanto o Grande Desligamento são eventos globais.

A ajuda na resposta à saúde é essencial, como destaca no relatório Maurice Obstfeld, ex-economista-chefe do FMI. No entanto, o mesmo acontece com a ajuda econômica para os países mais pobres, via alívio da dívida, doações e empréstimos baratos.

É necessária uma enorme nova emissão dos direitos especiais de saque do FMI, com a transferência de alocações desnecessárias para os países mais pobres.

O nacionalismo econômico de soma negativa que conduziu Donald Trump ao longo de seu mandato como presidente dos EUA e até emergiu na União Europeia é um sério perigo. Precisamos que o comércio flua livremente, especialmente (mas não exclusivamente) em equipamentos e suprimentos médicos. Se a economia mundial for fragmentada, como aconteceu em resposta à Depressão, a recuperação será arruinada, se não morta.

Não sabemos o que a pandemia ainda nos trará ou como a economia reagirá. Sabemos o que devemos fazer para superar esse tumulto aterrorizante com o menor dano possível.

Temos que controlar a doença. Devemos investir maciçamente em sistemas para gerenciá-la após o término das quarentenas atuais. Devemos gastar o que for necessário para proteger nosso pessoal e nosso potencial econômico das consequências. Devemos ajudar bilhões de pessoas que vivem em países que não podem resistir sem ajuda. Devemos lembrar acima de tudo que em uma pandemia nenhum país é uma ilha. Não conhecemos o futuro. Mas sabemos como devemos tentar moldá-lo. Faremos isso? Essa é a pergunta. Eu temo muito a nossa resposta.

16 de abril de 2020

A PEC 10/2020 E O BC!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 15) Na tarde dessa quarta-feira, 15 de abril, o Senado Federal votará a PEC 10, conhecida como “PEC do orçamento de guerra”, porém mais adequadamente denominada de “PEC da pandemia”. Embora o uso da metáfora da guerra possa render boas análises, não estamos numa guerra propriamente, e sim atravessando um momento inédito em que a vulnerabilidade dos sistemas de saúde e das redes de proteção social estão em ampla evidência mundo afora, e no Brasil em particular. A epidemia e a paralisia econômica têm dimensões humanitárias que precisam ser adequadamente tratadas pelos governos.

Entre os temas mais polêmicos da PEC está a autorização dada ao Banco Central “para comprar e vender títulos de emissão do Tesouro, nos mercados secundários local e internacional, e direitos creditórios e títulos privados de crédito em mercados secundários, no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos. Essa autorização tem vigência e efeito restrito ao período de calamidade pública nacional”.

A medida é indispensável, pois poderá prover a liquidez necessária aos títulos negociados nos mercados secundários, além de permitir a negociação de títulos do Tesouro, ampliando sua aceitação num momento decisivo, de crise aguda, e assim afastando os riscos de uma crise financeira. Embora esse tipo de atuação por parte do BC seja novidade no Brasil, muitos outros bancos centrais pelo mundo (como Fed, Banco Central Europeu, Banco da Inglaterra, Banco do Japão) já praticam essa modalidade de operação.

Contudo, o texto da PEC aprovado na Câmara deixou frouxos muitos dos critérios para que o BC possa realizar a compra de títulos do Tesouro, de direitos creditórios e títulos privados. Por essa razão, a proposta recebeu dezenas de emendas no Senado Federal.

A emenda apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues, da Rede Sustentabilidade, previa parâmetros técnicos para os títulos a serem adquiridos, garantias ao BC, como o direito de aquisição de ações das instituições financeiras beneficiadas, e a proibição de estas empresas distribuírem bônus e dividendos até que os títulos tenham sido resgatados no BC, dentre outros critérios e contrapartidas. O relator da PEC, senador Antonio Anastasia, optou por um texto enxuto. No seu substitutivo, estabeleceu critérios de qualidade para os títulos a serem negociados pelo BC atrelados às notas de classificação de risco atribuídas a diferentes classes de ativos financeiros pelas agências internacionais de rating. Além disso, o relatório do senador exigiu a publicação do preço de referência do ativo, a demarcação específica de quais títulos poderão ser adquiridos, e ampliou os critérios de transparência a serem obedecidos pelo BC.

Entretanto, foram suprimidas as propostas que estabeleciam obrigações para as instituições financeiras que tenham obtido ganhos com essas operações de crédito no mercado secundário. O relator alegou a impossibilidade de reconhecer quem os obteve, pois “a empresa não financeira emissora do título não é a beneficiária da aquisição no mercado secundário, que tem caráter fluido”.

Nada impede que tal critério seja adotado em relação a ativos que estejam nas carteiras das instituições financeiras, uma vez que não se trata de impedir a distribuição de bônus e dividendos das empresas emissoras originais do título: estas, de fato, já se perderam na fluidez dos mercados secundários. A ideia seria impedir que o atual detentor do título, que poderá vir a lucrar com a ação do BC, distribua esses ganhos antes de resgatar os ativos com o BC.

Tais contrapartidas já estão previstas na Resolução 4.797 emitida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) há poucos dias. Contudo, resoluções do CMN podem ser revogadas antes de o BC ter sido ressarcido e carecem do peso da garantia por uma emenda constitucional que estabeleça claramente as contrapartidas.

Enfrentamos uma crise sem precedentes e, diante desse quadro, faltam-nos os corrimões em que economistas costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas. No entanto, há práticas internacionais exemplares por estabelecerem boas referências, sobretudo no que diz respeito aos instrumentos extraordinários dos bancos centrais. Países acostumados a adotar essas práticas exigem contrapartidas claras das instituições beneficiadas. Não há nenhum motivo para que no Brasil o tema seja tratado de forma distinta.

15 de abril de 2020

LÍDER, A FALTA QUE CHURCHILL FAZ!

(Daniel Fernandes – O Estado de S. Paulo, 14) Era 1945. A segunda grande guerra havia acabado. Havia acabado! E esse foi o sinal para uma explosão de alegria em todo mundo. O dever de deter o inimigo maior havia sido concluído com um desfecho pouco provável cinco anos antes, quando poucos se colocaram à frente de Hitler. Um desses homens era Winston Churchill. Naquele momento de vitória, se dirigindo à nação que havia sofrido o impensável, o primeiro-ministro surpreendeu. Como era habitual. “Gostaria de poder dizer-lhes esta noite que toda a nossa labuta e todos os nossos problemas estão terminados.” Não estavam, como a maioria testemunharia pelas décadas seguintes.

Nascido em 1874, morto em 1965, oito semanas após o seu 90º aniversário, a figura de Churchill bem que poderia emergir novamente para ensinar líderes que não sabem… liderar. Não conduzem a população mundial diante de outro inimigo mortal. Desta vez, um vírus. Um novo coronavírus.

Na falta que Churchill nos faz em vida, ler Memórias da Segunda Guerra Mundial – no Brasil há uma edição menor, resumida em dois volumes, editados em 2017 pela HarperCollins com 1,1 mil páginas – serviria como uma espécie de autoajuda de alto nível. De altíssimo nível, diga-se, aos políticos protagonistas da crise atual. Pensando em facilitar as coisas a eles, há uma série de passagens dessa autobiografia que merece destaque. Se a ONU fala que a pandemia é o maior desafio desde a Segunda Guerra, e a maioria dos países trata os tempos atuais como de guerra, nada melhor do que reler as ideias do seu principal protagonista.

O dia depois de amanhã. Devastadora e aterradora, e por mais que assim seja, a crise provocada pelo vírus passará. Assim como, muito mais devastadora à humanidade, a crise da segunda grande guerra também findou. Em 1948, ainda no prefácio da edição, Churchill relembra conversa que teve com o presidente Franklin Roosevelt. Eis o nosso primeiro ensinamento. O norte-americano o pergunta sobre como a guerra deveria se chamar. “Retruquei de pronto: ‘a Guerra Desnecessária’. Nunca houve guerra mais fácil de impedir do que esta que acaba de destroçar o que restava do mundo após o conflito anterior.” Churchill, talvez fazendo uma de suas pausas dramáticas, retoma o raciocínio. “A tragédia humana atinge seu clímax no fato de que, após todos os esforços e sacrifícios de centenas de milhões de pessoas, e após as vitórias da Boa Causa, ainda não encontramos Paz ou Segurança e estejamos sujeitos a perigos ainda maiores do que aqueles que superamos.”

Conheça seu inimigo. É de Churchill, neste mesmo livro, uma análise bastante precisa daquele que seria seu principal inimigo durante cinco longos invernos. Sobre Adolf Hitler, o cabo alemão que perdera momentaneamente a visão durante a Primeira Guerra, o inglês adianta tratar-se de um inconformado com a derrota. Derrota que teria sido causada, na visão deturpada do soldado, por processos não convencionais. Teria de ter ocorrido uma traição em algum lugar. “Sozinho e ensimesmado, o soldadinho ponderou e especulou sobre as possíveis causas da catástrofe, guiado apenas por sua reduzida experiência pessoal.” O problema era que Hitler não estava sozinho. Encontra pares, nacionalistas alemães e radicais que sabem a quem culpar pela derrota. Churchill prevê a tempestade perfeita. “Em Viena, ele se misturara com grupos nacionalistas alemães radicais e ali ouvira histórias de atividades sinistras e sabotadoras de uma outra raça, inimiga e exploradora do mundo nórdico – os judeus”, conclui Churchill.

Confiança para ir até o fim. Em outra passagem, já carregada pelo drama da guerra, Churchill havia acabado de conduzir com êxito a retirada de tropas – muitas delas, inúmeras delas, todas elas? – de Dunquerque. Poderia ter terminado ali, pouco depois de começar, a Segunda Guerra caso falhasse. Não falhou e, ao reunir-se com o parlamento, Churchill considera em suas memórias que era o momento de expor tudo que havia acontecido. A real situação das coisas, da hora mais escura. Ele conclui seu discurso assim: “Muito embora grandes pedaços da Europa e muitas nações antigas e famosas tenham caído ou venham a cair sob o jugo da Gestapo e de todo o odioso aparato de dominação nazista, não esmoreceremos nem fracassaremos. Vamos até o fim”. Foram.

Ouse pedir união. Em dado momento da guerra, quando tudo ainda ia mal para os aliados, Churchill escreveu indicando que o leitor deveria compreender “quão espesso e desconcertante é o véu do desconhecido”. E acrescentaria: “Agora, à plena luz da posteridade, é fácil discernir onde fomos ignorantes ou alarmados demais, e onde fomos descuidados ou inábeis”. No espírito do momento, o primeiro-ministro sentencia: “Essa foi uma época em que toda a Inglaterra trabalhou e se esforçou até o limite máximo e esteve mais unida do que nunca”.

Recomeçar e recomeçar. A França havia caído rapidamente diante da exuberante máquina de guerra conduzida por Hitler. Havia sido subjugada, porém, sem o disparo de quase nenhum tiro, quase sem resistência. Pelo rádio, devastado, Churchill não esconde a gravidade da situação. Mas reforça sua crença inabalável num futuro menos sombrio. “Defenderemos nossa ilha em casa e, junto com o Império Britânico, prosseguiremos na luta sem nos deixarmos conquistar, até que a maldição de Hitler seja retirada dos ombros da humanidade. Temos certeza que no fim tudo sairá bem.”

Aguentar… Ainda assim, só discursos não bastavam para conter o inimigo. E Londres não parava de ser bombardeada. Noite após noite. E a cidade ousava aguentar. Noite após noite. No primeiro volume das memórias sobre a grande guerra, o primeiro-ministro relembra uma visita trivial a um vilarejo quando sobrevém um ataque aéreo. O líder foi se abrigar em um túnel. Um túnel onde um imenso número de moradores viviam permanentemente.

…e ajudar. Quando Churchill sai da proteção, quinze minutos depois, contempla a destruição. Um pequeno hotel fora atingido. Ninguém ficara ferido, mas o lugar fora reduzido a uma pilha de louças, utensílios e móveis quebrados. “O proprietário, sua mulher e os cozinheiros e garçonetes estavam em prantos. Onde estava seu lar? Onde estava seu ganha-pão? Eis aqui um privilégio do poder. Tomei uma decisão imediata. No caminho de volta, em meu trem, ditei uma carta para o ministro das Finanças, Kingsley Wood, estabelecendo o princípio de que todos os danos resultantes do fogo inimigo ficassem por conta do estado, e de que se pagassem indenizações integrais em caráter imediato. Assim, o ônus não recairia apenas sobre aqueles cujas casas e estabelecimentos comerciais fossem atingidos, mas seria equanimemente distribuído sobre os ombros da nação.”

Sobre liderar. Em meio à euforia da vitória, Churchill se dirige novamente à nação. Celebra, mas chama todos à responsabilidade que o amanhã reserva. “Mas, ao contrário, devo adverti-los, como fiz ao iniciar esta missão de cinco anos – e ninguém sabia, na época, que ela duraria tanto – de que ainda há muito por fazer, e de que vocês devem estar preparados para novos esforços da mente e do corpo e para novos sacrifícios em nome de causas grandiosas, se não quiserem recair na vala da inércia, da confusão de objetivos e do medo covarde de serem grandes.”

Por fim, sobre ser grande. Mesmo tão próximo da história, e como sabemos, é preciso distanciamento para compreender com exatidão qualquer acontecimento da natureza daquele confronto. Churchill entende o que foi e poderia ter sido do mundo – não foi, como todos testemunhamos. “É meu objetivo, sendo alguém que viveu e foi atuante nesses dias, mostrar com que facilidade a tragédia da Segunda Guerra Mundial poderia ter sido evitada; como a maldade dos perversos foi reforçada pela fraqueza dos virtuosos; como faltam à estrutura e aos hábitos das nações democráticas, a menos que elas se agreguem em organismos maiores, os elementos de persistência e convicção que são os únicos capazes de dar segurança às massas humildes; e como, mesmo nas questões de autopreservação, nenhuma política é seguida sequer por períodos de dez ou 15 anos de cada vez.”

Senhor de um outro tempo, seu Memórias da Segunda Guerra Mundial tem, inclusive, uma moral. É certamente para facilitar as coisas para nossos líderes leitores em tempo de coronavírus. “Na guerra: determinação; Na derrota: desafio; Na vitória: magnanimidade; Na paz: boa vontade.”

14 de abril de 2020

QUANDO OS NÚMEROS TORTURAM!

(Luís Eduardo Assis, economista, ex-diretor de Política Monetária do Banco Central – O Estado de S. Paulo, 13) Reza uma antiga máxima, atribuída ao ex-ministro Delfim Netto, que os números podem confessar qualquer coisa, se forem diligentemente torturados. Jamie White (em Crimes Against Logic, 2004) vai na mesma linha e diz que a estatística é o arsenal de armas químicas da persuasão. Com a covid19, todavia, parece ser diferente. Aqui, os números são melindrosos, escorregadios, e não se deixam levar facilmente pelos estratagemas de seus algozes.

O total de infectados, por exemplo, é desconhecido. A estatística que explode todos os dias sobre nossas cabeças se refere ao número de pessoas testadas que registraram resultado positivo. Se na testa de cada contaminado surgisse um triângulo isósceles verde, tudo seria mais simples. A doença, no entanto, pode ser assintomática ou ter sintomas leves. Isso significa que o número real de infectados deve ser um múltiplo dos quase 2 milhões de pessoas que constam das estatísticas hoje. Nem sequer podemos supor que essa subestimação é constante ao longo tempo, já que, com o número crescente de testes, este viés tende a diminuir. Se aplicarmos o número de mortos ao total de casos testados e confirmados, teremos uma taxa de fatalidade de aproximadamente 5%. É menos que o sarampo – mas para a covid-19 não temos vacina.

Também é preciso considerar o período de incubação da doença, ou seja, as mortes de hoje não podem ser comparadas com os infectados de hoje, já que, como o número de infectados cresce na frente, essa taxa acaba sendo subestimada. Mais ainda, se a comparação for feita com o número total de contaminados, muito maior que o número reportado, a conclusão seria de que a mortalidade é muito mais baixa que 5%. Este problema poderia ser resolvido com testes amostrais amplos que pudessem estimar o porcentual contaminado de toda a população. Mas aqui temos dois problemas: não só não há testes em número suficiente, como os testes disponíveis não são precisos e dão um grande número de falsos negativos.

Tudo isso para dizer que estamos diante de um enigma de rara opacidade. Os números não se deixam capturar e, portanto, torturá-los é de pouca valia.

Primoroso estudo de P. Surico e A. Galeotti (The Economics of Pandemics: the case of Covid19, 2020) constata que “estamos definindo políticas baseados em evidências muito incompletas”. Qual é a saída? A saída é confiar na ciência. Até a segunda metade do século 19 a expectativa de vida do homem era similar à de um chimpanzé. Foi o primado da metodologia científica sobre o obscurantismo que fez com que a população mundial aumentasse de forma exponencial. Nos primeiros 1.700 anos da era cristã, a população mundial cresceu em 415 milhões de almas. Desde então, em 320 anos, o aumento foi de 7,2 bilhões de pessoas.

Como assinala D. Wooton em obra seminal (The Invention of Science, 2015), uma pessoa formalmente educada que vivesse na Europa no início do século 17 acreditava em astrologia, geração espontânea, unicórnios, bruxaria, na transformação de metal em ouro e no geocentrismo. Pouco mais de um século depois, o mesmo europeu educado tinha varrido essas bizarrices de seu arsenal de conhecimento – o que não significa que em 2020 não existam pessoas com ideias encravadas no passado distante.

Questionar a ciência e o método científico, como faz o inquilino do Palácio da Alvorada, equivale a nos condenar à idade das trevas. Os números da covid-19 são impenetráveis e confusos, mas confrontar o consenso entre os especialistas a favor do isolamento social é cultivar o mais lúgubre obscurantismo. O que os números revelam voluntariamente, sem serem torturados, é que ignorar a ciência é desprezar a vida.

13 de abril de 2020

‘HAVERÁ UMA RECONFIGURAÇÃO ECONÔMICA’!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 12) Essa é uma crise humanitária que deixa em evidência que saúde e proteção social são bens públicos. A gente já vê nos Estados Unidos, e em breve vamos ver no Brasil, que a população de mais baixa renda é a que está sofrendo mais com a falta de acesso à saúde e com as consequências da crise econômica. Isso, aqui nos EUA, é mais extremado por ser um país onde o sistema de saúde é privado e rede de proteção social não existe. Mas em países como o Brasil, onde a população vulnerável é muito numerosa, vai haver uma catástrofe. Vão ser muitas vidas perdidas. Não vejo possibilidade de as políticas públicas não se moldarem depois dessa crise em torno desses dois temas. Proteção social e saúde terão de ser abraçados, e eles só podem ser abraçados pelos governos. A questão do Estado e do tamanho dele vão acabar indo nessa linha. Dentro disso, vai acabar entrando também a questão ambiental, porque é outro bem público.

A forma como se vê a questão fiscal dos países também vai mudar, porque, quando a crise acabar, todos estarão com os balanços do setor público desajustados. Não vai poder se fazer um ajuste fiscal forte porque, se fizer, você interrompe o processo de recuperação, que vai ser muito lento. Haverá uma reconfiguração política e econômica grande. Vínhamos num rumo antes, mas mudamos. Para o Brasil, o coronavírus também foi uma bifurcação, só não parece que foi porque o governo permanece o mesmo. Bem ou mal, o restante do governo Bolsonaro vai ser de gestão de crise. Ele não vai ter espaço para outra coisa. E o que vem depois dessa crise, necessariamente, vai ter de ser um discurso político pragmático e com foco no papel do Estado como provedor desses bens públicos, algo que esse governo nunca teve, porque não era a linha adotada. Esse caminho do Estado minimalista foi não só interrompido, mas jogado às traças pela epidemia e ele não volta. Isso não significa necessariamente o abandono de reformas, mas, sim, um redesenho de algumas reformas e uma preocupação maior com as questões sociais. Vai haver um aumento de impostos, até para custear os bens públicos. É uma mudança de eixo político, como a gente teve no pós-guerra, quando passamos do nacionalismo para o multilateralismo.

09 de abril de 2020

O PERIGO DA DESINFORMAÇÃO!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 06) Recente pesquisa do Datafolha sobre a percepção acerca da epidemia mostrou que o grau de desinformação sobre a doença é maior entre os mais pobres e menos escolarizados.

Recente pesquisa do Datafolha sobre a percepção da população acerca da epidemia de covid-19 mostrou que o grau de desinformação a respeito da doença é maior entre os mais pobres e menos escolarizados. Não chega a ser um resultado surpreendente, uma vez que essa parcela da sociedade apresenta em geral um nível reduzido de conhecimento a propósito dos grandes problemas nacionais. No caso da epidemia, porém, tal constatação é particularmente preocupante, porque é a informação de qualidade que pode reduzir a disseminação do novo coronavírus, especialmente entre cidadãos vulneráveis – que não dispõem de recursos básicos e são, por isso, dependentes de um Estado que já apresenta sinais de exaustão para conter uma epidemia que mal começou.

A pesquisa mostrou que a faixa dos entrevistados com renda familiar mensal de até dois salários mínimos concentra o maior número de pessoas que se consideram apenas “mais ou menos” informadas (27%) ou que se dizem “mal informadas” (5%) sobre o novo coronavírus. O contraste é gritante com as faixas superiores de renda. Entre os entrevistados com renda superior a 10 salários mínimos, apenas 13% se consideram “mais ou menos” informados e 1%, “mal informado”. Mesmo o grupo dos entrevistados na faixa salarial mais baixa que se consideram “bem informados” (67%) está muito distante dos 83% de cidadãos no topo da pirâmide socioeconômica que dizem ter o mesmo grau de conhecimento sobre a epidemia.

Além disso, dos que consideram que “não há motivo para tanta preocupação” – o que indica propensão ao relaxamento e a não seguir as orientações do Ministério da Saúde –, os maiores porcentuais se concentram entre os mais pobres (14%) e menos escolarizados (15%), contra apenas 3% entre os mais ricos e 6% entre os mais escolarizados.

Esse contraste fica ainda mais evidente quando a pesquisa pergunta se os brasileiros estão mais preocupados do que deveriam. Para 26% dos que ganham até dois salários mínimos e 28% dos que fizeram até o ensino fundamental, há exagero, enquanto apenas 12% dos que recebem mais de dez salários mínimos e 12% dos que têm ensino superior são da mesma opinião. Para 63% dos mais ricos e 35% dos mais pobres, os brasileiros estão menos preocupados do que deveriam.

Os mais expostos à doença, isto é, os mais idosos, também mostram um preocupante descolamento da realidade. Dos que têm 60 anos de idade ou mais, nada menos que 34% dizem não ter medo de serem infectados pelo vírus, enquanto entre os entrevistados de 16 a 24 anos esse porcentual é de apenas 19%. É também entre os mais idosos que está a maior parcela dos que acreditam não ter a menor chance de pegar a doença (19%), contra 9% na faixa dos 16 a 24 anos.

Esses números são um potente indicativo da necessidade de melhorar e ampliar a comunicação oficial para esclarecer a população a respeito da epidemia e sobre como os cidadãos podem colaborar para ajudar as autoridades e os agentes de saúde a contê-la.

Já está claro que somente a informação de qualidade, transmitida de maneira clara e direta, é um potente instrumento para frear o vírus. O governo precisa alinhar seu discurso e impedir ruídos que possam causar confusão, como tem acontecido nos últimos dias. Não é o momento de falar em possível tratamento ou de classificar de exageradas medidas que, ao contrário, são essenciais para frear a expansão do novo coronavírus.

A comunicação oficial deve ter como objetivo primordial isolar o vírus da desinformação, que pode levar os cidadãos a ignorar a necessidade de distanciamento social e também a comprar e consumir remédios que ainda estão em fase de testes, acarretando sérios riscos para a saúde pública e pessoal.

A Organização Mundial da Saúde já qualificou a atual epidemia de “massivo infodêmico”, em que há superabundância de informações. Se por um lado esse fenômeno é positivo, pois acelera a tomada de decisões por parte de autoridades e de cidadãos, por outro pode causar tumulto e descrença. Cabe ao governo, com a autoridade que tem, instruir os cidadãos sobre a realidade dos fatos, especialmente para a população que, quando for afetada, terá poucos recursos para se defender.

08 de abril de 2020

RASCUNHO DE ESTRATÉGIA!

(Fernando Reinach  – O Estado de S. Paulo, 07) Nas últimas semanas a dura realidade antevista pelos cientistas se concretizou: não vai ser possível impedir o espalhamento do coronavírus pelo planeta. Ele chega em uma onda avassaladora, o número de casos e de mortes aumenta rapidamente e está provocando o colapso do sistema de saúde. A única medida capaz de amenizar esse colapso é o isolamento social. O isolamento espalha o número de casos da Covid-19 ao longo do tempo, diminuindo a sobrecarga no sistema de saúde e o número total de mortes (o tal achatamento da curva). Essa medida foi implementada pelos governantes mais esclarecidos, que estão colhendo os frutos.

Mas a ciência tem mais a oferecer para lidar com a pandemia após a primeira onda. São esses conhecimentos que vão nos permitir escolher a melhor estratégia para sair da crise. O indicador de sucesso é simples de enunciar, mas difícil de executar. Sucesso consiste em obter rapidamente um alto grau de imunidade de rebanho na população e simultaneamente minimizar o número de mortes. O país que conseguir se guiar por esse índice sairá antes da crise com o mínimo de mortes.

Quando um novo vírus ataca uma população, ele só deixa de se espalhar quando não encontra mais pessoas para infectar. Isso ocorre quando uma parte razoável da população se torna imune. Na medida em que o número de pessoas que foram infectadas e curadas se tornarem imunes, ficará mais difícil para o vírus achar novas vítimas. Quando esse número chega a aproximadamente 80% da população, a pandemia simplesmente desaparece.

O isolamento social tem a função de retardar o espalhamento para ganharmos tempo, diminuindo o pico e dando tempo para nos organizarmos. Entretanto, a longo prazo, a pandemia só acaba quando 80% das pessoas estiverem imunes. As vacinas têm o papel de aumentar o número de pessoas resistentes para 80% ou 100% sem que a pessoa seja infectada de fato pelo vírus. Infelizmente ela ainda não existe.

E remédios que curam a doença têm o papel de permitir que todos os infectados não sofram uma forma forte da doença, se tornando resistentes ao vírus sem o risco de morrer. Infelizmente ainda não temos esse remédio. Mas os cientistas concordam que antes de 80% das pessoas se tornarem imunes o vírus não será controlado.

Esse fato não tem sido discutido fora dos meios acadêmicos. A razão é que os governos não querem provocar o pânico na população, afirmando que todos acabaremos infectados. Outra razão é que governantes cientificamente despreparados têm dificuldade para aceitar a realidade, preferindo viver de ilusões. Quando Ângela Merkel afirmou semanas atrás que 70% dos alemães seriam infectados, essa foi a razão de sua afirmação. Ela é a única líder mundial com formação científica. Essa semana nosso ministro da Saúde repetiu a informação.

A questão é como chegar a 80% de pessoas infectadas evitando o maior número de mortes. O que pode nos ajudar a trilhar esse caminho de maneira segura e com menos mortes? Vamos assumir que uma vacina e um remédio certeiro não cheguem a tempo, pois nesse caso o cenário é outro.

A primeira medida é conseguir tratar todos os doentes sérios. Para isso o mais importante é não relaxar o distanciamento social antes do tempo, o que pode levar ao aparecimento de uma segunda onda de casos e uma nova fase de distanciamento. Isso seria trágico.

A segunda providência é medir periodicamente a fração de pessoas que já foram infectadas e estão imune ao vírus. Como existem muitos casos assintomáticos ou com poucos sintomas, não podemos confiar no número de casos identificados na porta dos hospitais ou testados quando os sintomas aparecem. É preciso medir diretamente a fração da população que já está imune.

Isso pode ser feito escolhendo pessoas ao acaso, testando-as e descobrindo quantas já estão imunes ao vírus. É um método parecido com o usado em pesquisas eleitorais (veja meu último artigo para saber os detalhes). Esses dados vão nos permitir saber como estamos caminhando em direção ao objetivo de 80% de pessoas imunes. Esses estudos estão sendo planejados tanto por um grupo no Rio Grande do Sul quanto por um grupo em São Paulo.

A terceira medida importante é acompanhar e divulgar as melhores práticas de tratamento dos casos mais graves. Só agora os médicos brasileiros estão frente a frente com casos graves da doença e é bem sabido que os protocolos de tratamento vão melhorando a cada dia à medida que pequenas mudanças incrementais no tratamento forem sendo adotadas nos hospitais e unidades de terapia intensiva.

São medicamentos que ajudam um pouco, novos procedimentos, e assim por diante. Esse progresso incremental é inexorável e pode reduzir bastante o número de óbitos. Por isso é muito importante que os melhores hospitais do Brasil compartilhem rapidamente suas experiências com toda a rede. Isso vai salvar vidas nos grupos de risco.

Finalmente é importante nos organizarmos para que as pessoas dos grupos de risco sejam as últimas a serem infectadas. Idealmente eles não deveriam chegar aos hospitais antes da primeira onda já ter passado, pois só então os hospitais estarão menos afogados. Além disso, se forem os últimos a sofrer a doença, chegarão aos hospitais quando nossos médicos já terão aprendido a administrar os casos graves, e a letalidade desses casos já terá diminuído. Portanto é preciso isolar com especial cuidado as pessoas desses grupos. Temos de garantir que serão as últimas a serem alcançadas pelo vírus, mas não podemos nos iludir que serão poupadas.

Esse é o rascunho da receita geral e dos indicadores que estão sendo usados para lidar com a pandemia nos países com uma cultura científica sólida. Fazer isso no Brasil é um enorme desafio, pois, como sempre me lembram os leitores, falar é fácil, fazer é que são elas. Os países que melhor executarem essas estratégias serão os vencedores.

Sucesso é obter alto grau de imunidade e simultaneamente minimizar número de mortes.

07 de abril de 2020

O COVID-19 E O BANCO CENTRAL!

(Claudio Adilson Gonçalez – O Estado de S. Paulo, 06) É difícil fazer estimativas sobre os impactos econômicos da covid-19, pois as projeções da evolução de sua curva epidêmica são pouco confiáveis. De qualquer forma, já é possível arriscar alguns números. A contração do PIB em 2020, sobre 2019, não será inferior a 2%, embora o governo continue otimista trabalhando com taxa zero. O déficit primário da União deverá superar 7% do PIB. Apesar dos esforços do governo para preservar empregos, o desemprego pode voltar para o patamar de 15%. As condições para o crédito privado continuam terrivelmente apertadas, no que pesem as boas medidas já tomadas pelo Banco Central (BC) para atenuar esse problema.

A PEC 10/2020, conhecida como Orçamento de Guerra, ainda estava em tramitação na Câmara quando este texto foi redigido. Entre muitas outras medidas imprescindíveis, a PEC também dotou o BC de alguns instrumentos legais importantes para serem utilizados durante a vigência do atual estado de calamidade pública. Refiro-me à autorização para comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional, bem assim direitos creditórios e títulos privados.

A possibilidade de comprar títulos públicos dá ao BC um instrumento importante para melhorar as condições financeiras e poupar recursos públicos com a conta de juros. A autoridade monetária poderá, por exemplo, fazer o que ficou conhecido nos EUA, na crise de 2008, como operação twist, que consiste em comprar títulos públicos no mercado com vencimentos mais longos e vender outros com vencimentos mais curtos. Com isso, as taxas de juros para operações mais longas, digamos, de 2 a 5 anos de prazo, tenderão a cair. Além de serem estas as taxas relevantes para o custo das operações de crédito, isso poupará recursos na rolagem da dívida pública.

Além disso, em condições extremas de falta de liquidez, o BC poderá realizar no Brasil algo semelhante ao que foi feito pelos bancos centrais dos países desenvolvidos, qual seja, promover o financiamento monetário do aumento dos gastos públicos. Para isso, bastará comprar no mercado os títulos que forem emitidos pelo Tesouro para financiar esses gastos. Essa recomendação pode soar estranha para o leitor, dado que o financiamento monetário do gasto público sempre foi considerado como uma das principais causas da hiperinflação brasileira das décadas de 80 e 90 do século passado. A resposta é: estamos numa economia de guerra, essa política só poderá ser feita em caráter temporário e excepcional, e, parafraseando o economista Pérsio Arida, um dos principais formuladores do Plano Real, “somente um lunático pode se preocupar com inflação nesse momento”.

A conveniência da autorização para o BC comprar direitos creditórios e títulos privados é autoexplicativa. Com essa prerrogativa, a autoridade monetária ganha instrumento eficaz para evitar uma eventual crise grave de crédito, conhecida como credit crunch, sem depender do sistema bancário, normalmente mais avesso a assumir riscos de crédito em crises como a que estamos enfrentando.

Mas cabe lamentar um grave equívoco cometido pelos senhores deputados. Na versão original da PEC era dado ao BC o poder, em caráter permanente, de acolher depósitos à vista e ou a prazo das instituições financeiras. Isso foi excluído na versão final. Essa medida possibilitaria a troca de títulos públicos que estão em operações compromissadas por tais depósitos. Um efeito importante seria reduzir os números da dívida bruta brasileira e torná-la comparável com as de outros países, já que esses depósitos não são computados na dívida.

Não se trata de contabilidade criativa. A dívida bruta brasileira está indevidamente inflada por operações realizadas no âmbito das políticas monetária e cambial, quando deveria ser apenas contrapartida dos déficits fiscais.

06 de abril de 2020

NENHUM GOVERNO PODE SE DAR AO LUXO DE SER LIBERAL NA PANDEMIA DE CORONAVÍRUS!

(Angela Alonso – Ilustrissima – Folha de S.Paulo, 05) Quando definir fica difícil, filiar nova safra a cepa velha é um conforto. O prefixo “neo” salva a pátria. A Covid-19 trouxe novo membro à família, que já tem neofascismo, neoliberalismo e que tais: o neokeynesianismo.

Subitamente, adversários do Estado entraram a defendê-lo. Espera-se que coordene iniciativas, financie os gastos com a crise, dê o rumo. Toada na contramão do que se dizia em versos e colunas de jornal até outro dia.

Na última década, a sociedade se mobilizou e muito para reclamar do Estado —e não ficou na conversa. Ações diretas proliferaram, desde coletivos culturais, sociais e políticos até o empreendedorismo cívico, no gênero empresário social ou ambientalmente responsável, e o religioso, que movimenta cultura e economia de autoajuda entre fiéis. Todos martelando a autogestão da vida coletiva pelos cidadãos como superior à estatal.

Duas retóricas difundiram a ideia. Uma é a da autossuficiência da ”sociedade civil”, que, se bem organizada, proveria tudo —bens, serviços etc.— mais e melhor que o Estado. Outra é a do autointeresse. Se o Estado parasse de meter o bedelho, empreendedores de “espírito animal” —opostos dos funcionários parasitas— venceriam a luta pela vida, gerando uma sociedade repleta de prósperos empresários.

Ambas deslegitimaram o Estado como gestor da vida coletiva, demandando protagonismo para a ágil, eficaz e moralmente superior sociedade civil. O Estado era o inimigo. Corrupto e ineficiente, desmereceria a confiança, o poder e os impostos dos cidadãos. Melhor reduzi-lo ao mínimo guedesiano.

Ante o vírus, a linha do autointeresse insistiu no individualismo: isolar-se, munindo-se de grandes estoques, e deixar à livre iniciativa quem mal mora, ou nem mora —e que não tem para comer hoje, que dirá para estocar papel higiênico. Esses “loosers” deveriam é voltar logo ao trabalho de servir o andar de cima.

Já a retórica da autossuficiência impulsiona ações solidárias de empresas, associações civis e cidadãos de estratos médios e altos e bem-educados. Precisaram, quase todos, da pandemia para descobrir a miséria que grassa há dois séculos, com sua anuência ou vista grossa.

Das boas intenções nasceram muitas iniciativas meritórias, mas estão em dissonância com seu discurso da inutilidade do Estado, pois se coordenam ou se subordinam a políticas e órgãos estatais. Afinal quem está respondendo centralmente à emergência médica é o Estado, aqui como mundo afora.

O fato de termos um presidente incapaz torna mais nítida a distinção entre Estado e governo. O que está funcionando não é o governo Bolsonaro, é o Estado brasileiro, sua burocracia e o conjunto de regras e políticas públicas construídas desde a Constituição de 1988, que fizeram do sistema de saúde brasileiro uma referência internacional.

É esse aparato que impostos, dos quais a retórica do autointeresse reclama, financiam. A indignidade das condições de vida de tantos brasileiros, recém-descoberta por ricos de bom coração, pode ser não apenas mitigada, como extinta com políticas estatais —como já o demonstrou o Bolsa Família. O Estado tem capacidade para isso. Claro, desde que o governo não atrapalhe com o discurso neoliberal, uma insensatez nas circunstâncias, embora combine com presidente insensato.

Para agir, no entanto, o Estado precisa de recursos. Hora de grandes empresas que, ao longo de décadas, beneficiaram-se com políticas protecionistas, baixos salários e concessões governamentais, devolverem à administração estatal. Idem para fundações e igrejas, alimentadas por renúncia fiscal.

Por mais louvável que seja, a mobilização cidadã corre o risco de ser efêmera. Quando acabar a pandemia, a maioria dos cívicos solidários vai retornar energias e moedas para seus projetos e bancos, reconfortados com a contribuição episódica. Reinstalada a zona de conforto, logo tornará a cantilena contra a corrupção e os impostos, enquanto os pobres ficam lá no seu histórico cercado, o do esquecimento.

Hoje nenhum governo pode se dar ao luxo de ser liberal, com “neo” ou sem ele. Se virá outro New Deal, novo Plano Marshall ou neokeynesianismo, tanto faz. Num país de abissal desigualdade, políticas públicas são cruciais —e não apenas nesta emergência.

O Estado deve operar como redistribuidor de recursos e oportunidades. A parte bem-intencionada da sociedade do andar de cima ajudará muito se, em vez de difundir a retórica antiestatista, se comprometer com esse projeto.

03 de abril de 2020

TCM-RJ: NOTA TÉCNICA SOBRE A ATUAÇÃO ADMINISTRATIVA DURANTE O PERÍODO PANDÊMICO DO CORONAVÍRUS!

Nota Técnica sobre a atuação administrativa durante o período pandêmico do Coronavírus – TCM-RJ, teve por objetivo principal orientar quanto à observância de parâmetros legais e boas práticas, que podem ser utilizados enquanto durar a emergência provocada pela pandemia, objetivando conferir maior segurança jurídica e agilidade na tomada de decisões em matérias sujeitas ao controle do TCM, para que o avanço da disseminação seja contido e os serviços de saúde sejam prestados com a máxima eficiência à população.

Abaixo, retirei alguns pontos que o TCM-RJ citou e que julguei importante destacá-los:

– São exigidas medidas ágeis, tomadas de decisões urgentes e mudanças de planejamento constantes pelos gestores públicos. Cenários como o atual configuram uma espécie de estado de necessidade administrativo 1, que demanda a aplicação de medidas de legalidade extraordinária autorizadas pelo ordenamento jurídico-normativo pátrio.

– No plano infraconstitucional, o art. 65, incisos I e II, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) dispensa o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no artigo 9º, bem como determina a suspensão de prazos para recondução de dívidas aos seus limites legais em caso de calamidade pública declarada pelo Executivo e reconhecida pelo Legislativo. A LRF dispõe, ainda, que independentemente da caracterização do estado de calamidade pública, os prazos estabelecidos para recondução da dívida ao limite legal serão duplicados no caso de crescimento real baixo ou negativo do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, regional ou estadual por período igual ou superior a quatro trimestres, nos termos do seu art. 66.

– Dentre as exigências que se pretendeu afastar durante o período de excepcionalidade, destacam-se os dispositivos que condicionam o aumento de gastos tributários indiretos (benefícios fiscais e renúncia de receita) e de despesas obrigatórias de caráter continuado ao apontamento das estimativas de impacto orçamentário-financeiro, da compatibilidade com a LDO, da demonstração da origem dos recursos e das medidas de compensação de efeitos financeiros nos exercícios seguintes.

– Na decisão monocrática, o ministro Alexandre de Moraes atribuiu interpretação conforme a Constituição Federal aos dispositivos que preveem essas exigências, para afastá-las durante a situação de emergência em saúde pública e o estado de calamidade decorrente do novo coronavírus. Para tanto, o ministro invocou os princípios fundamentais da proteção da vida, da saúde, da razoabilidade, e também considerou a necessidade de subsistência dos brasileiros afetados pela extrema gravidade da situação.

A nota técnica dá ainda destaque e explica tudo sobre as Contratações Durante o Período de Emergência de Saúde Pública; Contratações Temporárias de Pessoal para atender a Situação de Emergência; Abertura de Crédito Extraordinário para atender à Situação de Emergência; Limites da Despesa com Pessoal no Cenário de Situação de Emergência.