Entrevista de Cesar Maia ao Brasil Econômico

O Rio tem motivos para comemorar os 450 anos?

Claro que sim. Mas o que estou sentindo nas comemorações, e não sei se estou sendo injusto, é que falta densidade. A Prefeitura do Rio tem muitas informações, o Centro de Arquitetura e Urbanismo também tem, para fazer, por exemplo, uma apresentação pública dos grandes planos urbanísticos da cidade, dos planos Pereira Passos e Agache. Temos um plano urbanístico de um francês, na década de 1840, que desenhou o que seria o centro da cidade. E, basicamente, as linhas das grandes vias do Centro estão contidas ali. O Plano Agache, por exemplo, inspirou as ações de Henrique Dodsworth (1937-45), um dos grandes prefeitos do Rio, com as avenidas Brasil e a Presidente Vargas, que não existiam.

A história da cidade também…

Sim. Os primeiros momentos, os Sá e Benevides, as questões da própria fundação, dos tupinambás, dos tamoios, o que significou a mudança de status do Rio de Janeiro, já que o Governo-Geral era em Salvador. Na metade do século XVIII, ali com o Marquês de Pombal, em função tanto do escoamento do ouro quanto para a defesa dos conflitos que poderiam existir com o Sul, com a Argentina, as províncias do Prata, o Rio passa a ser também Governo-Geral. Há grandes momentos, como a vinda de D. João VI, as missões artísticas que requalificaram o Rio, a vinda de uma das principais bibliotecas do mundo, a Biblioteca Nacional.

E a República.

Claro. A começar pela história das favelas, a volta do exército brasileiro de Canudos e a promessa das casas, que não foram feitas e eles ocuparam uma parte do Morro da Providência, desenharam as moradias como o povoado no território da guerra e deram o nome de Morro da Favela, porque era o nome da plantinha que havia em Canudos. As questões relativas a decisões que produziram a favelização, o bota-abaixo do prefeito Pereira Passos, os cortiços, onde viviam pessoas em condições precárias.

A Câmara dos Vereadores não poderia fazer isso também?

Seria algo muito pontual. Os espaços, os centros culturais estão com a Prefeitura. Teria que tratar os 450 anos buscando mês a mês, ou trimestre a trimestre, os acontecimentos, a mudança do perfil do exército brasileiro com a Guerra do Paraguai, os grandes generais vindo para serem senadores. Há uma mexida tanto no Poder Legislativo quanto no Exército. Não é apenas show na Quinta da Boa Vista, é também apresentar a história da cidade, exposições dos grandes pintores que retrataram o Rio, os compositores que falaram do Rio. Senão seria a comemoração do quadragésimo, do quinquagésimo aniversário da cidade, e não dos 450 anos.

A transferência da capital para Brasília fez o Rio perder espaço?

Perdeu recurso, mas nunca perdeu importância. O Prefeito Pedro Ernesto criou a Universidade da Cidade do Rio de Janeiro. Estou falando do que havia de melhor no Brasil, de Cândido Portinari, de Cecília Meireles, de Hermes Lima… Mas aí ele é preso, acusado de ser protocomunista, depois o Supremo decide que não é assim, mas esses intelectuais já haviam migrado para São Paulo. Esse foi o primeiro golpe no Rio como centro da capital cultural do Brasil. O segundo golpe veio com Assis Chateaubriand, durante e depois da Guerra, com as obras de arte da Europa na “bacia das almas”. Chateaubriand passa o pires no Rio e não vem nada. Em São Paulo, vêm os italianos e colocam dinheiro. Ele termina criando o MASP. O Museu de Arte Moderna (MAM) daqui veio depois.

Quais são hoje os principais problemas da cidade? A morte de um turista alemão no Carnaval teve projeção internacional.

Os índices de criminalidade na cidade nunca foram baixos. Desde o século XIX, a professora inglesa Maria Graham, em seus diários, comentava que não podia sair às ruas porque o risco era muito grande. O Coronel Vidigal, personagem do romance “Memórias de um Sargento de Milícias” (do escritor Manuel Antônio de Almeida), pegava assaltante e mandava matar. O que passou a ter hoje é um novo quadro, em função de armas pesadas — as balas perdidas são produto disso. A entrada da droga muda completamente a característica do crime. O crime não era objeto de desejo, ele passou a ser com a droga. E tem um valor de troca tão alto que gera um mundo de recursos amplos na esfera policial, entre os empresários e os políticos.

Esse é o grande problema do Rio?

Certamente, eu diria que o maior problema para a imagem do Rio é o crime, sim. As Olimpíadas de Berlim, em 1936, e a de Barcelona, em 1992, foram marcadas por uma grande estratégia. O governo alemão realizou os jogos para divulgar a imagem do seu poder, contratou a cineasta Leni Riefenstahl para projetar o país. Depois, veio a mudança radical de Barcelona, com o legado dos jogos. Eu era prefeito do Rio na década de 90 e pude acompanhar como era e como ficou. São os dois grandes casos emblemáticos. É preciso ter cuidado quando se fala de legados.

Isso significa que não haverá legado algum?

O legado é uma cidade que mostrou capacidade para organizar um evento tão complexo, como foram os Jogos Pan Americanos e a Copa do Mundo, uma cidade que se mostra para aqueles que não a conheciam bem e se reapresenta para os turistas que já a conhecem.
Mas o Rio não cumpriu algumas promessas, como a despoluição da Baía de Guanabara, e sofre com a alta dos imóveis, algo que ocorreu em Barcelona.

Não se pode comparar o Rio com Barcelona. Ninguém tinha US$ 500 bilhões para aplicar no Rio de Janeiro, como aconteceu lá. A grande obra anunciada na cidade é a do projeto do Porto Maravilha.

A especulação imobiliária é consequência das Olimpíadas?

Não, porque ocorreu em todo Brasil. A cidade com maior especulação imobiliária foi Brasília. A questão que ainda não foi investigada é que o problema não está na empresa do mercado imobiliário, o banco que está financiando. Em 90% das vezes em que há um ciclo de especulação imobiliária, há lavagem de dinheiro. Não é o investidor, é o cara que compra. Brasília, Rio em alguma medida e São Paulo passam por isso.

No caso da despoluição da Baía, já sabemos que ela não chegará nem a 80%.

Isso é grave, porque é um projeto de US$ 1 bilhão, financiado pelo BID no fim do governo de Leonel Brizola e início de Marcello Alencar. Não houve o resultado esperado. Inevitavelmente, um fotógrafo de algum jornal vai pegar o ângulo em que o esportista veleja ao lado de um monte de lixo.

A segurança também vai ser um problema?

Será um problema. Por isso, a necessidade de multiplicação dela está colocada. Aquele bandido traficante nascido e criado na favela, o “Robin Hood”, isso acabou. Agora, há assassinos cruéis, que vêm de outro lugar para tomar uma favela.

O escândalo da Petrobras, o caso Eike Batista, esses assuntos abalam a imagem da cidade?

A Petrobras é uma empresa internacional, não pode ser uma empresa carioca, não é percebida assim. Abala, sim, a imagem do Brasil. Se esses elementos vão produzir uma sincronização entre os custos das Olimpíadas e os valores roubados, é claro que sim. Mas essa não é uma marca do Rio de Janeiro, são questões de ordem nacional.

A cidade perde economicamente com esse caso?

Certamente, o Rio perde. Afinal, aqui está a Petrobras e 85% do petróleo brasileiro. Há as previsões de grandes perdas com os royalties do produto. E, nos últimos anos, optou-se por uma dependência crescente de recursos federais e parcerias com essas grandes empreiteiras no Porto, no Parque Olímpico e nas obras do Metrô. Em relação à crise do governo federal, ela é extremamente grave, pois agrega uma profunda crise econômica a um impasse político, a uma desintegração ética e a uma crescente desobediência civil.

E no caso de Eike Batista?

Também não afeta a imagem do Rio. Ele se desmoraliza pessoalmente, teve sua imagem multiplicada pelos meios de comunicação e pelas elites. Ir com Eike a algum lugar era uma espécie de promoção das elites, ele era exaltado como campeão da riqueza. Esse problema dele não atinge a imagem de ninguém, a não ser a dele próprio. É claro que isso ter acontecido dentro do mercado financeiro e não ter sido percebido a tempo mostra que os sistemas de controle no Brasil são precários.

Mas o Eike estava muito vinculado a projetos da cidade, à despoluição da Lagoa Rodrigo de Freitas, o Hotel Glória.

Essa questão da Lagoa foi uma mentira. No caso do Hotel Glória, ele queria fazer um corredor em direção à Marina da Glória, quase se apropriando do espaço. Ele se excedeu e essas obras teriam sido feitas não fosse a desmoralização dele. Do ponto de vista do que se imagina que deva ser um foco empresarial, ele se diversificou tanto que não tinha como controlar tudo isso. Ninguém tinha condição de controlar um processo com esse grau de dispersão.

Outro problema da cidade é a questão do transporte urbano.

Esse é o caos. Eles adotaram como prioridade um modelo completamente ultrapassado, que são esses BRTs. Em Curitiba, você tem metrô sobre rodas. O nosso é feito de linhas burras, diretas, que não têm a integração dos modais. O resultado é que o BRT está cortando os bairros e produzindo impacto muito negativo para o comércio. Ninguém atravessa mais a rua para comprar do outro lado da calçada. Na medida em que eles vão entrar num sistema desses, e as empresas de ônibus também têm interesse, eles precisam integrar. Mas o que vimos foram linhas de ônibus sendo cortadas.

Houve uma demora muito grande para fazer metrô no Rio de Janeiro, não?

O Plano Agache (da década de 1920) previa o metrô, que só entrou com o Faria Lima, em 1975. Foram 40 anos depois de o plano urbanístico mostrar a necessidade. E o desenho já estava pronto, era só copiar as linhas de bonde, onde elas passavam. O Lacerda foi um grande governador, mas um fracasso gigantesco em matéria de transporte. Ele tira os bondes e coloca ônibus elétricos e o lotação. Os donos dos lotações, que hoje seriam as vans, são agora os grandes empresários de ônibus.

O centro do Rio sofre com isso?

O tipo de intervenção tentando inaugurar tudo antes que o governo acabe, em 2016, está acabando com o centro da cidade, desintegrando tudo. A queda de vendas do comércio é alarmante. O dentista que pegou seu consultório não vai levá-lo para Botafogo, vai levar não sei para onde, para a Tijuca. Os escritórios de advogados ficam por causa do Tribunal de Justiça, por conta da proximidade. Mesmo assim, nem todos. Agora, depois de fazer esse desmonte todo, eles acham que ficou tudo bom, com asfalto colocado. Bem, agora volta tudo ao normal? Não volta. O cara vai ter um outro investimento. Você pega o Plano Agache, tem o centro e aquelas setas direcionadas para o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro. Aquele centro está sendo desmontado por seu açodamento. Porque a Odebrecht disse: esse túnel eu não consigo entregar em 2016. Para entregar, era necessário fazer isso e aquilo, e não fizeram. Para a Avenida Rio Branco, não pode circular mais carro. Transfere os ônibus todos para lá. Então, com isso, ele consegue entregar o túnel. Valeu, se ele vai entregar o túnel e esse bairro construído é um bairro em construção. Mas não. É um bairro que vai levar muitos anos até que se firme e afirme ali.

Como o sr. avalia esse projeto do VLT (veículo leve sobre trilhos) na Avenida Rio Branco? Havia um projeto inicial de fechá-la e transformar o local em bosque.

Outra loucura. A cidade é um organismo vivo, ela cresce, desenvolve. O poder público deve intervir para coibir as mazelas e estimular aquilo que é positivo. O bairro não muda. Você entra no bairro para qualificá-lo. O centro é centro da cidade desde o Império. Como organismo vivo, as pessoas vão definindo que devem morar, trabalhar ou abrir um comércio ali. Há uma construção das pessoas. Aí, entra um burocrata e diz: essa construção que levou 150 anos, eu vou desmontar de uma vez. O melhor é: “não, se essa construção tem um vetor que é negativo, eu vou entrar e reprimir esse vetor, estimular aquele outro, que é positivo”. Amanhã, dizem que vão mudar as linhas de ônibus, e isso daí mexe em tudo, porque a pessoa que vinha para aqui, ali, vai ter que fazer um desvio. É uma loucura o que estão fazendo com o centro da cidade. Daqui a uns dez anos vai ser uma marca que a história vai registrar como um desastre urbanístico.

O sr. acha que vai haver um esvaziamento do centro?

Já há. A expectativa deles é que surja um novo centro, na Zona Portuária. Não se constrói um novo centro estalando o dedo. Eu mesmo visitei agora Miami, onde estive pela primeira vez, e fui ao Design District, que era um bairro abandonado. Vai lá visitar e veja como eles abrem o bairro para as opções que as pessoas, os moradores e os comerciantes têm; as praças, os espaços, como isso é construído; um edifício ou outro mais alto, a maioria mais baixa.

Mas há movimentos espontâneos, como o renascimento da Lapa.

Que começou quando? Eu entrei em 1993. O renascimento da Lapa foi em 1994, 1995, quando o Augusto Ivan era subprefeito do Centro. Ele é um talento, foi Secretário de Urbanismo depois. Ele vem a mim e diz: “a cidade para às 17h30, 18h. Vamos empurrar essa cidade para às sete, oito horas da noite?”. Aí, ele entra na Lapa e autoriza cadeira nas calçadas, faz o mesmo no Arco do Teles. As pessoas saem e podem ficar ali até mais tarde. Ele até colocou uns grupos de choro da Escola Nacional de Música para dar uma animada e as pessoas irem ficando. Você pega um vetor positivo, ajuda e ele vai sozinho. O que tem que entrar agora na Lapa? A polícia.

O que a cidade tem de bom? O que é peculiar do Rio?

Tem tudo de bom. Eu apostei nisso, que foi o Guggenheim. A discussão, na campanha de 2000, era que o Rio precisava recuperar a centralidade cultural. Escolhemos um tema, as artes plásticas. Guggenheim entrava com o museu na América Latina. Estava entre o México, Bogotá, Recife e Rio. Ganhamos essa concorrência, mas aí interromperam uma obra que nem tinha começado, só estava com o batimento, acertando para fazer a licitação da obra.

O sr. está otimista em relação à cidade? Acha que seus problemas serão resolvidos?

Não tem como não resolver. Se você pegar cada momento, cada momento foi um estrangulamento.

O Rio tem como vencer esses pontos de estrangulamento?

Eu diria que todos os pontos são de fácil solução. Qual é a solução? Há tantos exemplos no mundo todo em relação ao transporte. O único problema que a gente não vê a ficha cair e caminhar é a segurança pública. O Beltrame (atual secretário de Segurança Pública) é um homem honesto, correto, capaz. Enfim, nossos pais e mães também são. Mas, agora, fracassou.

Mas não é um problema que se resolva em cinco, dez anos.

Não. Mas não posso admitir que toda experiência acumulada de fracassos em política de segurança pública, depois de oito anos, ainda não tenha apresentado resultados. O roubo cresce, cresce, cresce. No Estado do Rio de Janeiro, nós chegamos a ter o mesmo índice de roubos por 100 mil habitantes que o estado de São Paulo. Nós temos o dobro. A cidade do Rio tem 37% ou 38% mais do que a cidade de São Paulo. É um fracasso, não tem policiamento ostensivo. Você não vê policial na rua. Às vezes, eles inventam uma novidade. Agora, no Grajaú, vai ter polícia de proximidade, que vai ter um cartão, para quem a pessoa pode telefonar. Tomara que não tenha nenhum tipo de trote que mate policial. Inventam uma coisa qualquer, um fato novo, para as pessoas criarem expectativas. As UPPs têm problemas. A ideia é boa? Claro que é boa. O problema é que você vai e tira o bandido com sua arma, mas deixa a droga. A droga é o que o bandido quer, ele volta atrás dela. Esses “policiólogos” dizem que temos que tratar a favela como o asfalto. Mas a favela é uma condição diferente. É um locus ali. Você vira para o bandido e diz: volte sem armas e venda sua droga de uma forma civilizada. Ele vende e quer vender para fora, para quem não mora na favela. Ele quer pegar aquilo como um ponto de concentração e vender para fora. Aí, bota o motoqueiro, que faz o trabalho delivery, leva na casa do sujeito que telefona. É uma ideia de ocupação de favelas, usar policiamento ostensivo e não entregar essas comunidades ao tráfico de drogas. Quem pode ser contra? Todo mundo tem que ser a favor. Agora, a maneira como você operacionalizou uma boa ideia, nós estamos vendo que… Com exceção da Tijuca, onde as condições andam direitas. Aquelas favelas paralelas à Conde de Bonfim andam direitas. Em Vila Isabel, não; chegando no Estácio, já não.

Fala-se muito que no passado o Rio era prejudicado pelo mau relacionamento com Brasília.

Isso nunca aconteceu. O governo federal colocou mais dinheiro na minha gestão do que na de Eduardo Paes (atual prefeito). O que eles faziam era propaganda, jogavam tapete, toda a firula do contato físico. O governo federal sabe que o Rio é um foco de atenções. Se o Rio der errado, o Brasil também perde. A percepção é essa. Quando fui prefeito, havia reunião trimestral com os correspondentes da imprensa estrangeira. Eram todos de São Paulo. Aí, perguntei a um dos jornalistas por que cobriam Rio se moravam em São Paulo. Ele disse que a história não seria publicada se não houvesse um “Rio” na frente da reportagem.