“Transformismo”

Publicado em 29/08/2009 em Folha de São Paulo 

O PLURIPARTIDARISMO brasileiro, com voto proporcional aberto por Estado e um Senado funcionando como Câmara de Deputados, só poderia ter como consequência as relações políticas inorgânicas existentes.
O mandato é percebido como pessoal, e o acesso a ele depende mais da competição dentro de um mesmo partido que com adversários. Desde a Constituição de 1988, nenhum partido consegue chegar aos 20% dos deputados. Isso se repete nos Estados e nas capitais. A partir do resultado eleitoral, o Executivo inicia um jogo para a construção de maioria parlamentar, em nome da governabilidade.

Antes a cooptação de deputados alterava até os direitos dos partidos sobre o tempo de TV e rádio. Em 2006, o STF, validou o número de deputados eleitos no dia da votação. A contar de 2007, a mudança de partido foi obstruída, custando aos parlamentares os seus próprios mandatos nos três níveis de governo. Mas nada mudou no jogo da cooptação.

Essa não é invenção brasileira nem situação nova. Donald Sassoon, em “Mussolini e a Ascensão do Fascismo” (Agir), relata: “Como não havia partidos disciplinados no Parlamento, os chefes de governos italianos reuniam as maiorias necessárias, depois de extenuantes negociações”. Escreve que, “da noite para o dia, adversários podiam ser “transformados” em aliados, mediante suborno. Por isso a designação pejorativa “transformismo” era aplicada ao sistema”.

Prossegue, sublinhando que “desenvolveu-se um sistema de clientelismo, onde os políticos prometiam empregos aos eleitores e um constante influxo de dinheiro público”. A expressão “transformismo” foi usada na Itália primeiro em 1882, para nominar a indiferenciação ideológica da direita à esquerda.

Sassoon afirma que “o principal objetivo político dos deputados eleitos era arrancar do governo recursos a serem distribuídos; as lealdades locais prevaleciam sobre as nacionais”. O “transformismo” existia pela pasteurização política.

“Em política, frequentemente ser vago surte efeito”, afirma.
Para governar queriam centralização e maioria dócil. O primeiro-ministro Giolitti (1903-1914) atualizou o “transformismo”. Na eleição de maio de 1921, com 14 partidos, a esquerda, em três partidos, somou 30% dos deputados; a direita, com outros três, somou 36%, e o centro católico ficou com 20%.
Mussolini, com seus fascistas, e dentro do Bloco Nacional, elegeu 35 deputados, ou 6,5% do total.

E, em 30 de outubro de 1922, blefava e entrava em Roma, numa marcha “fake”. No dia seguinte, era nomeado primeiro-ministro, ocupando o vácuo criado pela despolitização “transformista”.

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Segundo turno

Publicado em 22/08/2009 em Folha de São Paulo 

UMA ELEIÇÃO em dois turnos tem uma dinâmica própria. Em 1999, o Instituto Friederich Nalmann, da Alemanha, realizou em Montevidéu um seminário sobre os mistérios da “balotage” num quadro pluripartidário. Esses mistérios são como desenvolver o primeiro turno de forma a construir a ponte para agregar forças num segundo turno.

Isso terá que se dar na comunicação dos candidatos e suas propostas. Uma primeira análise é saber para quais dos demais candidatos os seus eleitores poderiam, num eventual segundo turno, serem atraídos para a sua candidatura. De nada serve escolher um candidato de amaciamento, se seus leitores são antípodas à sua candidatura.

Entre as hipóteses de amaciamento, há que se escolher uma delas. Esta escolha terá dois aspectos. Primeiro, não pode chocar os seus próprios eleitores. Segundo, deve ser uma candidatura com lastro de forma, que valha a pena amaciar.

Amaciamento é encontrar qualidades num adversário ou, no mínimo, não atacá-lo e deixar isso claro aos eleitores dele. Mas há um risco. Se o candidato de amaciado tem lastro, ou seja, intenções de voto significativas, esta tática sempre ajudará que este cresça e o ultrapasse. De qualquer forma, esse amaciamento é decisivo, pois esta agregação de votos no segundo turno é que trará a vitória. O desespero de ir para o segundo turno, muitas vezes, torna inviável a própria candidatura no segundo turno.

Portanto a agressividade deve ser medida, pela oposição ou pelos candidatos da base do governo. Em geral, os candidatos só se fixam no primeiro turno, deixando o segundo para depois, e isso pode ser fatal. A ansiedade sempre vem, pois a escolha do amaciado atrasa a agregação de votos. Mas será a pedra de toque da vitória no segundo turno.

Lula está no caminho certo, quando insiste numa eleição plebiscitária: o segundo turno seria no primeiro e sua nitidez seria mais facilmente entendida num jogo Lula/anti-Lula. Com um quadro de pelo menos quatro candidatos, a teoria do segundo turno passa a exigir atenção estratégica de todos.
Supondo que um seja de oposição e os demais da base do governo, como se diferenciar dentro da base? Com que taxa de agressividade? Quem escolher para amaciar?

O candidato da oposição se beneficia à medida que as críticas intra-candidatos da base serão inevitáveis. Mas também sentirá o peso de todos os demais o criticarem.

Quem será escolhido para amaciamento? Se for quem troca votos com ele, essa troca poderá lhe ser incômoda, mas necessária. O adversário favorito para o segundo turno é que não poderá ser, pois esse deveria chegar ao segundo turno com o máximo desgaste. Essa equação é ainda mais complexa entre os candidatos da base. Complexa, mas inevitável.

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CESAR MAIA escreve aos sábados nesta coluna.

Internacional democrata

Publicado em 15/08/2009 em Folha de São Paulo 

O MOVIMENTO comunista, no século 19, criou uma organização internacional de partidos políticos: a Internacional Comunista -IC. A IC ia além dos debates político-ideológicos. Atuava operacionalmente nos países de seus partidos. A Internacional Socialista -IS- se confundia com a IC no início. Mas, a partir da divisão entre comunistas e socialistas, a IS organizou-se como fórum de debates e orientações, sem ação operacional nos países de seus membros.

Os partidos do centro à direita só constituíram suas “internacionais” após a Segunda Guerra. A primeira, a Internacional Democrata-Cristã -IDC-, com expressiva presença na América Latina (Chile e Venezuela), estabeleceu-se como fórum de debates e orientações.

A Internacional Liberal atuava sem a intensidade da IS e da IDC. A desintegração da URSS desfez a IC. A IS cresceu, ampliou sua atuação na formação de quadros e se fez presente nas regiões dos partidos membros. O sistema político alemão (pós-Guerra), ao criar e financiar as “fundações” ligadas aos partidos, desdobrou sua atuação internacional, mantendo-se sempre no escopo dos debates, orientação e formação de quadros.

Esse quadro mudou para os partidos do centro à direita. O Parlamento Europeu, definindo blocos, articulou-se internacionalmente. A IDC ampliou sua base: manteve a sigla e mudou o nome para Internacional Democrata de Centro. Na Europa, se tornou majoritária com seu bloco, o Partido Popular Europeu (PPE, de Merkel, Sarkozy etc.). A Internacional Liberal -aproximando-se do centro com os conservadores britânicos, liderados por Cameron- transformou-se em União Democrata Internacional -UDI- e ampliou sua base, e seu bloco, a partir das eleições europeias de junho. Alguns partidos europeus -como o CDU de Merkel- participam de ambas -IDC e UDI.

Na América Latina, a IS não constitui uma organização regional como representação. A novidade é a Alba, “bolivariana”, que atua regionalmente e repete a prática da IC, intervindo operacionalmente nos países de seus partidos. Honduras é apenas um exemplo.

A IDC, mantendo a denominação anterior (ODCA), atua regionalmente como fórum e formação política. A novidade é a Upla -União de Partidos Latino-Americanos-, ligada à UDI. Como fórum e formação, decidiu atuar operacionalmente e fazer o contraponto à Alba. Para isso, criará no Rio (com apoio do DEM, em 10/09), a Frente Democrática da América Latina, que será um braço político também operacional.

Com isso, o panorama latino-americano verá -pela primeira vez- forças ideologicamente opostas atuarem num campo que a cada dia se torna mais conflituoso.

Ilusão de intimidade!

Publicado em 08/08/2009 em Folha de São Paulo 

NUMA CONSULTA em 1992, Glorinha Beuttenmüller disse que a TV produzia uma intimidade entre expectador e “ator”. E que isso valia para os políticos. Portanto, estes, no contato pessoal, deveriam retribuir esta intimidade.
Nestes cinco anos, o impacto da TV na política diminuiu: menos TVs ligadas, zapeamento, troca com a internet, pela sensação de uma novela já vista várias vezes. No Brasil, isso foi sentido em 2004; nos EUA, demonstrado na eleição de 2008. O uso crescente da internet na política é causa e efeito disso. Vale a pena retornar ao auge da TV na política e a seus pesquisadores, comparando aos dias atuais.

Destaco aqui um clássico dessa época: “The Reasoning Voter” (1991), de Samuel Popkin (traduzido para circulação restrita). Popkin dizia que o eleitor usava atalhos para obter informações e, com esses, decidia. Hoje há uma excitação do fator emocional em campanhas. A questão dos “atalhos” de Popkin pode ajudar a entender melhor o processo de formação de voto, sem abusar da emoção.

Popkin dizia que o crescimento na audiência dos noticiários da TV produziu uma guinada histórica em direção a uma política centrada no candidato. Esse jornalismo político mostrou-se mais nacional e mais centrado nos políticos individualmente do que nas instituições. As questões regionais foram perdendo força. A intensidade maior é na pessoa do presidente, mesmo quando se trata de assunto econômico, o que faz os eleitores relacionarem a maior parte dos fatos ao próprio presidente. A TV ressalta o presidente como um politico sempre em eleição.

O uso da TV pelos candidatos ao Congresso reforça essa regra: na hora do voto, quanto mais dinheiro se gasta em mídia, mais os fatores pessoais predominam sobre os fatores partidários. As considerações políticas são mero pano de fundo sob o qual se desenrolam as questões pessoais.

O noticiário na TV retrata a política como conflitos entre pessoas, e não entre instituições ou princípios. Os debates tornaram-se uma espécie de seriado universal. E conclui com Scott Keeler (texto do mesmo nome, 1987) afirmando: a TV cria uma “Ilusão de Intimidade”.

Desse ponto, voltemos à percepção recente de que a TV perdeu impacto sobre a política. É verdade, muito menos pela comunicação em si e muito mais pelas novas interveniências. O texto de Popkin continua atual. Só que hoje o mesmo impacto da TV na política sofre interferências de outros meios, seja por alternativa, seja por espalhamento, seja por interação.

A mesma TV, com os mesmos elementos, só produzirá o mesmo impacto se usar bem essas relações. Alexandre Hannud Abdo, no Mais! de 26/7, nos ajuda a entender melhor este novo quadro.
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CESAR MAIA escreve aos sábados nesta coluna.

Ruptura e desastre

Publicado em 01/08/2009 em Folha de São Paulo 

DOIS CONCEITOS deveriam ser caros aos políticos. Um de Gladwell -“Tipping Point”- e outro tendo como referência a Teoria da Catástrofe de René Thom. O primeiro é quando um evento de pequena escala produz um ponto de ruptura ou inicia esse processo. O segundo estuda as causas de eventos naturais em ruptura quando tudo parecia normal.

As equações de previsão são de alta complexidade. No final de um pequeno livro, Woodcock e Davis a adaptam para a política. Exemplificam com a militarização do Império Romano, transformando as relações de produção no campo pelo uso de escravos, formando um exército de cidadãos. O sistema foi ruindo silenciosamente. É como um processo político onde os elementos de ruptura são correntes submersas. Quando afloram, sugerem imprevisibilidade.
Na Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha mudava o quadro a seu favor, decidiu por um bloqueio naval, pela dificuldade em ocupar a ilha. O que não previa é que estava mexendo com os exportadores dos EUA. A pressão empresarial para entrar na guerra foi irresistível.

A combinação desses dois conceitos é básica na política, pela diversidade e velocidade dos fatos, e com isso a possibilidade de pequenos impactos, invisíveis, se tornarem viróticos (das fitas cassete de Khomeini ao blog que expôs o caso Monica Lewinsky).

As análises em política têm que ser feitas num diagrama de alternativas. Vamos escolher dois fatos e apostar que podem ser “Tipping Points” e estarem dentro da adaptação política feita por Woodcock e Davis. Um é o caso Honduras, um pequeno país pobre. O kit chavista, usando a formalidade constitucional, deu certo na Venezuela e foi levado à Bolívia e ao Equador. Cooptou o presidente Zelaya que ao arrepio da lei quis aplicar o kit-Chávez na marra. Chávez colocou as garras de fora e expôs sua impaciência golpista. E, então, foi aplicada a bushiana prevenção estratégica. Novos terceiros mandatos ruirão daqui para a frente, marcados pelo kit fraude-constitucional. Seu fim expansionista cessou.

Outro fato é a linguagem desabrida de Lula. Sua popularidade permite tudo. Mas vão sendo acumulados na memória popular e o levaram a um ponto onde sua sobrevivência passou a depender desta enorme popularidade. Quando esta se acomodar, a corrente da memória das declarações extemporâneas poderá produzir o jato de um gêiser, como o segundo tempo do Plano Cruzado.
São exercícios que podem estimular cada um a fazer os seus, com base nestes conceitos, e projetar cenários.

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CESAR MAIA escreve aos sábados nesta coluna.