Lula: missão abreviada

Folha de São Paulo, 18/12/10

O que aproxima o padre Ibiapina (1806-1883), o padre Cícero (1844-1934) e Antonio Conselheiro (1830-1897) é o mesmo livro de cabeceira: “Missão Abreviada” (720 págs.), do padre Manuel José Gonçalves Couto. Editado em 1859, foi o livro de maior tiragem em Portugal no século 19 (150 mil exemplares).

Padre Ibiapina nasceu em Sobral (CE). Foi magistrado e deputado. Voltou ao seminário e, aos 47, iniciou a vida missionária pelo Nordeste, fazendo igrejas, cemitérios, açudes. Chamado de “mestre”, criou a ordem dos beatos e beatas que o acompanhavam.

Aonde ia, o “mestre” aconselhava e ajudava. Seu mito gerou reação do bispado. Padre Cícero nasceu em Crato (CE) e seguiu a mesma cartilha, com base em Juazeiro do Norte. Os milagres da beata Maria de Araújo (recebia a óstia e esta sangrava) multiplicaram o número de romeiros e de beatos que os seguia.

Distribuía conselhos, bênçãos e esmolas. Apesar da perseguição pelo bispado, as romarias não pararam de crescer. Chegou a Juazeiro do Norte quando tinha 40 casas. Hoje é a terceira cidade do Ceará -300 mil habitantes. Tornou-se mito. “Roma” proibiu-o de exercer os sacramentos.

Apoiou a derrubada do governo do Ceará com um exército de beatos, cabras e jagunços. Foi prefeito por quase 20 anos e deputado federal (nunca foi ao Rio exercer o mandato).
Antonio Conselheiro nasceu em Quixeramobim (CE). Em Sobral, foi um rábula dos pobres. Cruzou o Nordeste por 30 anos, como o Mestre Ibiapina, construindo capelas e cemitérios. Beatos e beatas o acompanhavam. Aonde ia, aconselhava e ajudava. Estabeleceu-se em Canudos, na área que chamou de Belo Monte. Interpretou o Novo Testamento num manuscrito de 245 páginas, com letra desenhada (disponível em CD).

Monarquista, adotou um sistema coletivista. Tinha 30 mil habitantes quando o Exército o massacrou em 1897.

Os três falaram aos excluídos. Foram a esperança dos miseráveis, com conselhos, esmolas e o reino dos céus.

A repressão católica abriu espaço aos evangélicos com um mesmo estilo. Os dois principais líderes das Ligas Camponesas eram evangélicos (ver “Cabra Marcado para Morrer”). Método com o qual os mais pobres do Nordeste se identificam até hoje.

Enquanto Lula era um líder operário urbano, disputou voto entre eles em igualdade com os demais candidatos.

Em 2005, Lula muda. Incorpora o retirante e passa a falar aos excluídos, com conselhos, ajuda e esperança, na terra e no céu. Em 2006 e 2010, nas regiões que foram palco da peregrinação dos três, a “Missão Abreviada” produziu vitórias eleitorais na casa dos 80% no segundo turno.

Narcovarejo no Rio

Folha de São Paulo, 4/12/10

Garry Gasparov, o maior jogador de xadrez de todos os tempos, em 2005 afirmava: “O jogo requer a disciplina de pensar muito além do presente e muito além de você mesmo. Não apenas pensar no seu tabuleiro, mas também no do seu oponente. Para cada movimento, tem que calcular a resposta de seu oponente. Não só a resposta imediata, mas também dez ou 15 movimentos antecipados”.

A ocupação do Complexo do Alemão é mais um episódio da história do tráfico no Rio, que vem do final dos anos 70, quando se forma um corredor de exportação de cocaína para a Europa. Este cria um mercado interno para dar sustentação financeira aos grupos nos intervalos entre as partidas de cocaína. E se cristaliza.

O Complexo do Alemão concentrou os traficantes que saíram das favelas de pequeno porte ocupadas pelas UPPs.

Tornou-se uma central do Comando Vermelho. Muito mais importante por isso que pela distribuição de cocaína, que no Rio é concentrada na Rocinha e na Maré -que juntas respondem por mais de 60% da distribuição no varejo.

O Alemão tem 65 mil moradores. A Rocinha e a Maré juntas têm 180 mil. A ocupação do Alemão tem um forte efeito simbólico, restituindo aos militares e policiais a confiança da população. Isso é, em si, muito importante.

O prazo dado desde a ocupação de uma favela ao lado foi usado pelos chefões, que fugiram, na lógica das guerrilhas. Na Operação Rio do Exército (1994) tinha sido assim. Provavelmente estarão em outra comunidade na periferia que, no futuro, terá simbologia semelhante à do Alemão.

Os casos das favelas de Vigário Geral, Parada de Lucas e outras servem como memória.

A ocupação do Alemão foi reativa, como resposta aos atos de microterrorismo perpetrados. Estes, segundo o governo, foram resposta dos traficantes às UPPs. Previsível, até porque outras áreas foram tomadas pelas milícias, que vivem de extorsão.

Se as bocas de fumo do Alemão estão fechadas (espera-se que agora definitivamente), isso nada tem a ver com a demanda de cocaína: os viciados continuarão procurando onde comprar. Para isso existem centenas de outros pontos.

O efetivo policial que ficará no Alemão, mantida a escala das UPPs, estará na casa dos 2.500. Isso é mais que todas as UPPs da zona sul e norte do Rio, que estão em comunidades de 5.000 moradores. Somando ambas, tem-se o mesmo efetivo do policiamento ostensivo na capital, em cada momento.

Abre-se uma oportunidade. Mas, para isso, deve-se seguir o conselho de Gasparov. Ou será mais uma vez uma questão de tempo, pela própria dinâmica da demanda de cocaína (8 ton/ano no Rio) e do narcovarejo correspondente.

Conversa com Cesar Maia

Do Blog de Eduardo Homem de Carvalho – 30/11/10

Na tarde dessa terça-feira o blogueiro bateu um papo rápido com o ex-prefeito César Maia. Confira!

1) Que análise o senhor faz dos últimos acontecimentos no Complexo do Alemão? Isso já era esperado?
R- Já havia sido feito com apoio da Força Nacional e depois suspenso. Necessário e atrasado.

2) Em sua opinião porque razão o tráfico ficou tão forte, e porque o surgimento das milícias?
R- Porque as cidades com aeroporto e porto – internacionais – passaram a ser corredores de exportação de cocaína para a Europa. As milicias ressurgem afastando o tráfico de drogas com a intenção inicial dos proprios policias terem onde sua familia morar. Depois entram num esquema de extorsão, mais ou menos suave.

3) Aliás, organizações criminosas tipo pcc, cv, ada, etc se espalham e crescem e já falam em se unirem, o sr. acha isso possível?
R- Em SP foi assim.

4) Com perspectiva dos jogos olimpicos e a da copa o governo do RJ responde dizendo que vai aumentar a repressao, essa é a saída? Será que vão fazer do RJ uma grande área ocupada por forças de segurança?
R- Assim foi na Eco-92. Assim foi no PAN. São 2 ou 3 semanas.

5) Política. O que o senhor acha da aliança entre PT e PMDB?
R- Necessidade reciproca: para ter base parlamentar de um lado e para ter espaço do outro.

6) Como é que o senhor vê essa queda de braço entre Palocci, José Dirceu e Michel Temer que não querem ele na Casa Civil?
R- Já está superado.

7) O senhor acha que Dilma vai conseguir administrar essas disputas dentro do governo?
R- Só o tempo dirá.

8 ) Qual a perspectiva de futuro do DEM?
R- Continua como quarto partido. Com uma candidatura competitiva a presidente recupera seus espaços. Mesmo que seja com Aécio.

9) Embora o senhor tenha dito que não concorreria mais, o senhor reviu seu ponto de vista e pensa em disputar as próximas eleições?
R- Não penso nisso.

10) Economia. O senhor é economista. A dívida pública brasileira é a que mais cresce no mundo por causa dos altos juros. O senhor acredita na inacapacidade de pagamento, cedo ou tarde?
R- Não. Mas 2011 será um ano muito dificil pela situação externa devido ao cambio sobre-valorizado e ao déficit fiscal nominal de 3% do PIB.

11) Lula falou que a classe media subiu mas o salário não valorizou, o que aconteceu foi um grande endividamento pela população. Isso pode redundar numa quebradeira, num calote, começando, por exemplo, na área da habitação, o que aliás foi o estopim para a grande crise fimanceira americana?
R- Já vem sendo assim. Os bancos tem alargado os prazos.