03 de julho de 2020

EVERARDO MACIEL: UM IMPERATIVO DE RESPONSABILIDADE!

(O Estado de S.Paulo, 02) Tomo emprestado conceito desenvolvido pelo filósofo Hans Jonas (1903-1933) para, em meio às enormes incertezas que pairam sobre a humanidade em vista da pandemia, seguir explorando caminhos para enfrentar problemas que se acumulam. Infelizmente, esse imperativo de responsabilidade, no Brasil, é embaraçado por um ambiente estigmatizado por múltiplas torpezas.

É certo que esse ambiente não é de origem recente. Ao contrário, há muito a corrupção e a violência criaram raízes profundas em nossa sociedade, projetando-se sobre o Estado. Erradicá-las de nosso convívio é missão que requer muita energia política, o que não se vislumbra em horizonte próximo.

Mais grave é que a corrupção e a violência se inscrevem num contexto marcado por difamações recíprocas, tagarelice perniciosa, linguagem chula, intolerância abjeta até mesmo contra a intolerância, sobrevalorização de questiúnculas, “militância” política de financiamento escuso, vilanias veiculadas nas redes sociais. Perdemos a amabilidade, reconhecido traço cultural brasileiro. Exilamos a moderação, a discrição e o autocontrole, que os gregos identificavam na figura mítica de Sofrósina (Sobriedade, para os latinos). Essas dificuldades não podem, entretanto, converter-se em óbice intransponível, mas desafio a ser enfrentado, que deve animar os que assumem a responsabilidade de refletir e propor.

É alentador ver prosperarem proposições que, sem pretensões megalomaníacas ou salvacionistas, ferem, de forma pragmática e consistente, temas de interesse público. No campo tributário, regozijo-me com a apresentação do Projeto de Lei n.º 3.566 de 2020, na Câmara dos Deputados, que dá concretude à proposta de moratória tributária, que suscitei em artigo (Moratória), veiculado no Jota em 24/3/2020.

A proposta é focalizada nos optantes do Simples, inclusive os microempreendedores individuais, e abrange todos os tributos devidos entre 1.º de abril e 30 de setembro deste ano, nos termos do art. 152, inciso I, b, do Código Tributário Nacional (CTN).

O montante devido poderá ser parcelado e, subsequentemente, liquidado mediante pagamento correspondente a 0,3% do faturamento mensal, o que propicia um permanente ajustamento ao fluxo de caixa do contribuinte. Aos microempreendedores individuais, será facultado liquidar o débito em 60 parcelas mensais e iguais.

Essa iniciativa parlamentar revela discernimento em relação à crise vivida pelas micro e pequenas empresas e interpreta corretamente o tratamento tributário que para elas prescreve a Constituição. Contrapõe-se, também, àqueles que, desarrazoadamente, condenam o Simples, no pressuposto de que se trata de renúncia fiscal, sem considerar que o regime decorre de mandamento constitucional e que, se fosse extinto, nenhuma receita existiria, porque esses contribuintes se encaminhariam para a informalidade, gerando por consequência um genocídio tributário.

São alentadoras, também, as reflexões consistentes dos juristas Hamilton Dias de Souza e Gustavo Brigagão que, se convertidas em projetos, darão adequado disciplinamento tributário, respectivamente, aos trusts no exterior e à exportação de serviços.

Além disso, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.446, o voto da ministra relatora Cármen Lúcia admitiu a constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN. Pondera, contudo, que a norma, para lograr eficácia plena, demanda fixação, em lei, de procedimentos que até hoje inexistem.

A prevalecer o entendimento da relatora, já acompanhado por quatro outros ministros, serão grandes as repercussões, inclusive em relação a julgamentos já realizados na esfera administrativa. Daí se impõe, como se buscou sem êxito na Medida Provisória n.º 66 de 2002, instituir por lei os referidos procedimentos, adotando, em relação às situações pretéritas, a transação prevista no art. 171 do CTN. Tal medida, ao resolver e prevenir litígios, seria, afinal, proveitosa tanto para o Fisco quanto para o contribuinte.

*Consultor Tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)

02 de julho de 2020

ANÁLISE: CINCO CRISES SIMULTÂNEAS DOS EUA!

(David Brooks – The New York Times, 29) Cinco mudanças gigantescas ocorrendo nos EUA hoje. A primeira delas é o fato de estarmos perdendo a luta contra a covid-19. Nosso comportamento nada tem a ver com a realidade ao nosso redor. Simplesmente cansamos e, por isso, desistimos.

A segunda: todos os americanos, e em especial os americanos brancos, estão passando por um rápido aprendizado dos fardos suportados diariamente pelos americanos negros. Esse aprendizado continua, mas a opinião pública já está mudando com velocidade impressionante.

A terceira: estamos no meio de um realinhamento político. O público americano está rejeitando com veemência o Partido Republicano de Donald Trump. O sinal mais claro disso é o fato de o partido ter desistido de si, um culto à personalidade cujo líder está acabado.

A quarta: uma quase-religião está buscando o controle das instituições culturais americanas. Os acólitos dessa quase-religião chamada Justiça Social defendem uma ideologia simplificadora: a história é essencialmente uma disputa entre grupos, sendo alguns deles opressores e outros, oprimidos. Os pontos de vista não são explorações da verdade, e sim armas que grupos dominantes usam para manter sua posição na estrutura de poder. As palavras podem ser assim uma forma de violência que deve ser regulamentada.

A quinta: é possível que estejamos na beira do precipício de uma prolongada depressão econômica. O orçamento dos estados e dos lares está derretendo, algumas empresas estão falindo e outras, quase. A continuidade da emergência de saúde significa que a atividade econômica não pode ser totalmente retomada.

Essas cinco mudanças – cada qual refletindo uma imensa crise, e todas ocorrendo ao mesmo tempo – criaram um desastre moral, espiritual e emocional. Os americanos são hoje menos felizes do que em qualquer momento desde que a felicidade começou a ser medida em pesquisas, há quase 50 anos. Os americanos têm hoje menos orgulho do seu país do que em qualquer momento desde que a Gallup começou a medir esse sentimento, 20 anos atrás.

Os americanos olham para os demais países do mundo e observam que outros estão derrotando a covid-19 enquanto fracassamos. Os americanos olham ao redor e veem a violência do estado — retórica e real — voltada contra seus concidadãos. Os EUA não parecem um lugar muito excepcional. Em tempos assim, precisamos de uma teoria da mudança.

A mais estridente teoria da mudança está vindo do movimento pela Justiça Social. Esse movimento nasceu nas universidades de elite, e sua premissa básica diz que, se mudarmos as estruturas culturais, mudaremos a sociedade.

Os integrantes desse movimento prestam muita atenção aos símbolos culturais – palavras, estátuas, nomes de edifícios. Tomam o cuidado de repetir determinados slogans, como “defund the police” [redução do orçamento policial] – que podem ou não estar ligados a uma política pública. Repetem e celebram gestos simbólicos, como ajoelhar-se antes de um jogo de futebol americano. É uma forma de mudança bastante adequada em uma era de redes sociais, pois é muito performática.

Os ativistas da Justiça Social se concentram nas alavancas culturais do poder. Seu método mais comentado é o chamado cancelamento. Alguém (em geral de orientação levemente progressista) diz algo politicamente “problemático” e vê-se sem emprego como resultado da pressão. Dessa forma, são estabelecidas novas fronteiras quanto ao que pode e não pode ser dito.

Os ativistas da Justiça Social às vezes dizem que, se não gostamos de suas táticas, é porque não lutamos pela igualdade racial, pela justiça econômica ou seja o que for. Mas todos esses movimentos existiam muitos antes de a Justiça Social se apoderar desses temas e tentar mudar seus métodos.

O problema central é que a teoria da mudança da Justiça Social não traz muita mudança. As corporações se contentam em adotar alguns símbolos de conscientização e promover seminários, e bola para frente. Pior: esse método carece de uma teoria política.

Como, exatamente, toda essa agitação cultural vai resultar em leis que reduzam a disparidade de renda, criem melhores políticas habitacionais ou lidem com os grandes desafios citados acima? Essa parte nunca é enunciada. Na verdade, a histeria performática dificulta o trabalho político. Não se forma uma maioria governante insistindo na pureza ideológica.

No fim, a metodologia da Justiça Social não é a solução para o nosso problema, e sim um sintoma do nosso problema. Ao longo dos cinquenta anos mais recentes, graças à nossa ação, a política deixou de ser uma maneira prática de resolver nossos problemas em comum, convertendo-se em uma arena cultural onde expomos nossos ressentimentos. Donald Trump é o performer definitivo dessa arena paralisada.

Quem acha que a interação entre essas cinco mudanças gigantescas vai se encaixar em alguma narrativa ideológica organizada provavelmente vai se enganar. Sinto dizer, mas se alguém acha que podemos lidar com a desigualdade racial, a reforma da polícia militarizada e o enfrentamento de uma crise de saúde existencial radicalizando ainda mais a guerra cultural, me parece que essa pessoa está errada.

A superação desses problemas vai exigir a participação do governo. Serão necessárias leis, orçamentos, concessões complexas — todo o monótono trabalho governamental que mais parece material da TV Câmara do que do Instagram.

Conheço muitas pessoas que não se entusiasmam muito com Joe Biden, mas, graças a Deus, ele será o candidato do Partido Democrata. Biden começou sua carreira pública quando a ideia não era pregar sua fé, e sim criar coalizões engenhosas e propostas de lei. Ele transmite um espírito de empatia e amizade, e não de animosidade e cancelamento. O pragmático espírito do New Deal é um exemplo mais adequado para os dias que virão do que o espírito da teoria crítica da simbologia.

TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

01 de julho de 2020

QUATRO IDEIAS DESBANCADAS PELA PANDEMIA!

(Moisés Naím, O Estado de S.Paulo, 30) A covid-19 não faz vítimas apenas entre as pessoas, mas também entre as ideias. E, quando não as mata, desacredita-as e enfraquece-as. As ideias tradicionais a respeito de escritórios, hospitais e universidades, por exemplo, não sobreviverão ilesas às conseqüências econômicas da pandemia. Nem algumas das ideias mais globais na economia e na política. Essas quatro são exemplo:

1) Os Estados Unidos como fonte de estabilidade para o mundo
Washington é um grande epicentro da instabilidade geopolítica. As reações do governo de George W. Bush aos ataques terroristas de 11 de setembro, por exemplo, provocaram longas guerras: em 2008, os EUA exportaram uma grave crise financeira para o mundo. Desde sua eleição em 2017, Donald Trump mostra, quase diariamente, que em vez de acalmar o mundo e seu país, prefere fomentar conflitos e atiçar discórdia. Suas reações à pandemia reconfirmaram que a Casa Branca é um aliado volátil, desajeitado e pouco confiável.

A grande ironia do fato de os EUA irradiarem instabilidade é que um dos maiores beneficiários da ordem internacional que Trump está desmontando é o próprio país que ele preside.

2) Cooperação internacional
A pandemia confirmou que não há comunidade internacional capaz de lidar com ameaças globais em conjunto. As tragédias na Síria, Iêmen, Venezuela ou dos rohingya são apenas alguns exemplos da ineficácia da comunidade internacional. Essa comunidade internacional idealizada, que trabalha em coordenação, tem sido notável por sua ausência durante essa emergência de saúde. Assim, no momento em que enfrentamos um inimigo global, os países, em vez de se unirem para enfrentar o inimigo comum, estão entrincheirados atrás de suas fronteiras. A pandemia deveria ter fortalecido a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma entidade multilateral imperfeita, mas indispensável. Em vez disso, os EUA se convenceram que a OMS foi capturada pelo governo chinês e, em vez de liderarem uma grande coalizão internacional para reformar essa organização multilateral, decidiram se retirar dela. A desconfiança da cooperação internacional também contribuiu para fragmentar e tornar ineficaz a coordenação entre os países em relação aos padrões, à produção e à distribuição de medicamentos e materiais médicos, por exemplo. E essa é outra ironia: a perda de prestígio da colaboração internacional resultou em uma resposta essencialmente local – e inadequada – a uma ameaça global.

3) Austeridade fiscal
Essa ideia, antes muito popular como remédio obrigatório para enfrentar uma crise financeira, agora é tóxica. Diante de um colapso econômico, o governo teve que restringir severamente suas despesas e dívidas. Agora é o contrário: gastar mais e obter mais dívidas é a receita da moda. Assim, em todos os lugares, os governos aumentaram os gastos públicos para níveis sem precedentes. O déficit fiscal, que é a diferença entre a arrecadação de impostos e outras receitas do governo e os gastos públicos, subiu para níveis nunca antes vistos. Nos EUA, por exemplo, o déficit fiscal deste ano chegará a um valor equivalente a 24% do total da gigantesca economia americana. O endividamento de quase todos os países também aumentou. A maior dívida do mundo em relação ao tamanho de sua economia pertence ao Japão. Os EUA são os campeões mundiais em termos da quantidade absoluta de dinheiro devido (20 trilhões). Nos próximos anos, haverá um debate global importante e furioso a respeito de quando e como essas dívidas serão pagas (e por quem!).

4) Globalização
Esse é outro conceito que foi idealizado anteriormente e agora é demonizado. Como é frequentemente o caso, não era tão bom antes, nem é tão ruim agora. Para muitos, a globalização é expressa em termos do fluxo de produtos e dinheiro entre países. Para outros, sua principal e mais preocupante manifestação é a imigração. Na prática, as globalizações são muito mais complicadas. Ela inclui, é claro, o enorme aumento nos fluxos internacionais de produtos, serviços, dinheiro e informação. Mas inclui também atividades de terroristas, traficantes, criminosos, cientistas, artistas, filantropos, ativistas, atletas e organizações não governamentais. E, claro, vale também para as doenças que agora se movem em grande velocidade entre os continentes.

Os governos podem impedir algumas de suas manifestações ou estimular outras. O que ninguém pode fazer é parar completamente as múltiplas maneiras pelas quais os países se entrelaçam. A pandemia e suas sérias consequências econômicas incentivarão a busca e adoção de políticas para amortecer os choques externos que abalam periodicamente os países. Haverá mais protecionismo. Mas as vantagens e atrações de algumas facetas da globalização não desaparecerão.

O que essas quatro ideias danificadas têm em comum? O fato de todas os quatro serem pilares importantes da ordem mundial que surgiram após a 2.ª Guerra Mundial. Embora os quatro conceitos estejam danificados e desacreditados, é possível repará-los e melhorá-los. Este será um dos principais desafios para os próximos anos.