31 de julho de 2020

TETO DE GASTOS E SAÚDE PÚBLICA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 30) O nível do debate público no País estaria mais civilizado se as discussões fossem pautadas por argumentos, não por gritaria.

O nível do debate público no País estaria em patamar mais civilizado se as discussões sobre os mais variados temas de interesse nacional fossem pautadas por argumentos que, embora divergentes, estivessem mais amparados na verdade factual do que na gritaria dos que têm como único objetivo ter o “domínio da narrativa”. A promulgação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55/2016, a chamada PEC do teto dos gastos públicos, durante o governo do presidente Michel Temer, é um bom exemplo. À época, os que eram contrários ao marco democrático alardearam aos quatro ventos que a PEC iria “acabar com os investimentos na área da saúde”. Há quem sustente isso ainda hoje. Nada mais falacioso.

Um dos formuladores da PEC do teto dos gastos, o economista Marcos Mendes, do Insper, publicou há poucos dias um estudo mostrando exatamente o contrário. Desde a promulgação da PEC, os gastos federais em saúde foram 2,7% superiores ao que teriam sido caso a proposta não fosse aprovada. Está-se falando de R$ 9,3 bilhões a mais para a saúde entre 2017 e 2019. É muito dinheiro, sobretudo para uma área tão essencial para a cidadania. Naquele triênio, foram gastos R$ 353,8 bilhões na área da saúde, ante os R$ 344,5 bilhões projetados no cenário sem a PEC do teto.

Com toda razão, Marcos Mendes disse em entrevista ao Estado que “a pobreza e o desemprego decorrentes de uma crise fiscal também são prejudiciais à saúde das famílias”. Para relembrar o leitor: a PEC do teto dos gastos proíbe o crescimento das despesas públicas acima do IPCA. Desta forma, evita-se o endividamento crônico do Estado, o que por sua vez ajuda no controle da inflação, na redução dos juros e no aumento da confiança na economia brasileira, entre outros benefícios. Caso o teto dos gastos não seja respeitado – como perigosamente tem sido cogitado dentro e fora do governo –, dá-se o efeito reverso, ou seja, mais inflação, juros mais altos, cenário recessivo e desemprego.

Defender o teto dos gastos, porém, não significa dizer que a área da saúde não precisa de mais investimentos futuros ou não deve ter aumento em suas despesas nos próximos anos, sobretudo em virtude do rápido envelhecimento da população, como bem alertou Marcos Mendes. A pandemia de covid-19 só aumentou a percepção da importância de um sistema público de saúde robusto para atender os milhões de desvalidos deste país.

Nesse sentido, é muito bem vinda a iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de criar um grupo de trabalho nos próximos dias para propor mudanças no Sistema Único de Saúde (SUS), de forma a melhorar o financiamento do sistema e melhorar o processo de compras e fiscalização do emprego dos recursos públicos. O grupo será liderado pela deputada Margarete Coelho (PP-PI), que terá dez dias para montar o plano de trabalho. “A Câmara dos Deputados já debateu muito sobre o SUS. Agora é hora de reorganizar o sistema”, disse ao Estado.

A revitalização do SUS pode ser um dos poucos legados positivos da tragédia sanitária que se abateu sobre o País. Na primeira quinzena de agosto, a ser mantida a média móvel de cerca de 1.100 mortes diárias, o novo coronavírus terá sido o responsável pela morte de 100 mil brasileiros. Não fosse o SUS, seria muito pior. Há muitos anos o sistema clama por melhorias. O SUS presta um serviço de excelência em uma miríade de áreas, como transplantes, pesquisas, vacinação e fornecimento de medicamentos essenciais para a população. Mas há muito a melhorar para que o sistema, além de universal e gratuito, seja reconhecido pela alta qualidade de todos os serviços que presta. E assim não é, em boa medida, pela enorme defasagem da atualização da tabela de remuneração desses serviços, por problemas de gestão e, não menos importante, por crimes cometidos contra a administração pública.

Em boa hora, a Câmara dos Deputados olhará para o SUS com a atenção que o sistema requer.

30 de julho de 2020

O ALCANCE DO PENSAMENTO!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 29) “A noite cai apenas para aqueles que por ela se deixam encobrir.”

Cornelius Castoriadis, The “End of Philosophy”?

Quis o tempo que eu escrevesse esse artigo para ser publicado na data em que se completam dez anos da morte de Dionisio Dias Carneiro, meu mentor, professor e uma cabeça privilegiada. Dionisio nunca aceitou dogmas de qualquer natureza: ao contrário, sempre questionou princípios da economia. Era um professor sensacional, um grande intelectual público e alguém que tinha a capacidade de incomodar no bom sentido, forçando seus pares a pensar. A noite na epígrafe acima não é, assim, uma metáfora para a morte – ao menos não nesse artigo –, mas uma metáfora para a preguiça de pensar. Deixa-se encobrir pela noite quem perde a curiosidade. Já a curiosidade nos desacomoda da poltrona em que podemos permanecer a contemplar o passado. O espírito dionisíaco, que desacomoda e convida ao prazer de pensar, continua vivo em muitos que conviveram com Dionisio. Não em todos.

Algumas pessoas acomodaram-se no passado. O momento atual requer que o passado passe e dê abertura para o questionamento de princípios que deixaram de valer. A economia não é como as ciências naturais, em que mecanismos metabólicos, ainda que complexos, são governados por estruturas e leis inabaláveis. A glicólise é a glicólise, as diversas vias de sinalização celular dependem da ação inibidora ou ativadora das enzimas. Se algo para de funcionar como deveria, o corpo adoece. A economia é uma construção social, como a política. Suas estruturas têm traços de longa duração, mas também se moldam ao momento. Uma das consequências desse caráter ao mesmo tempo resistente e plástico é a necessidade de economistas buscarem um ajuste mais fino entre conhecimento e sensibilidade, pois é fácil ceder à falsa impressão de que há leis imutáveis na economia e não perceber as mudanças. Elas são raras, porém, acontecem, como na crise de 2008 e, mais ainda, nessa proveniente da pandemia. Nesses momentos o chão se move sob os nossos pés, abalando bases em que se assentavam antigas regras econômicas.

Considerem a segunda metade dos anos 1990. Naquela época, o Brasil tinha acabado de estabilizar a inflação – diga-se – às custas de juros muitos elevados, crítica que Dionisio sempre encabeçou. Países emergentes viviam de crise em crise, enquanto as economias maduras se escoravam em políticas monetárias de sintonia fina. Foi uma era de juros internacionais mais elevados, por certo muito mais elevados do que os vistos no mundo pós-2008. A crise de 2008 acabou com a sintonia fina das taxas de juros como modo de calibragem da política monetária nos países maduros. As políticas “não convencionais”, hoje mais do que convencionais, deslocaram aquele mecanismo sem que muitos macroeconomistas tivessem sido capazes de antever suas consequências. Uma teoria enrijecida e mecânica perdeu para a prática, que responde rapidamente aos desafios do mundo. E a história se repete hoje, com a nova crise que enfrentamos.

No novo ambiente que surgiu 20 anos após a crise asiática de 1997/98, a compreensão sobre os países emergentes também mudou. Ao contrário do passado, esses países já não viviam mais de crise em crise – à exceção da Argentina, é claro, por razões muito particulares ao país. No contexto internacional de juros muito baixos, a capacidade de endividamento dos emergentes se alterou, bem como se alteraram as suas estruturas, que antes desancoravam rapidamente os preços, levando aos processos inflacionários de outrora. Isso não é dizer que emergentes como o Brasil tenham a mesma capacidade de endividamento dos países maduros, uma incompreensão frequente de fiscalistas que insistem nessa comparação. Países como o Brasil ainda precisam ser bastante cautelosos, mas a natureza da cautela mudou.

Em ambiente de juros próximos de zero nos países emissores das principais moedas de reserva, o tempo para corrigir dívidas muito elevadas foi dilatado. As relações entre câmbio e inflação se alteraram. Já não se sabe ao certo quais são os principais determinantes da inflação. Vejam o Brasil: há tempos a dívida é alta, o gasto é elevado, e a volatilidade cambial perdura. Mas a inflação? Mesmo antes da pandemia, a inflação já não reagia a essas variáveis como há 30 anos. Por que? Não tenho a resposta, assim como não tenho resposta para a dilatação do tempo da dívida. As respostas que têm circulado só me lembram de reaprender com Dionisio a cultivar as perguntas, que costumam ser mais importantes. São elas que determinam o alcance do pensamento.

29 de julho de 2020

AS CIDADES ESTÃO SE TRANSFORMANDO!

(Celso Ming – O Estado de S. Paulo, 26) Estes são anos de enormes transformações, algumas em curso. E uma delas é a que já está acontecendo nas cidades. A crise do coronavírus não é a principal causa dessas mudanças, mas está acelerando a percepção de que acontecem.

Os escritórios da XP, por exemplo, estão se transferindo da Avenida Faria Lima, em São Paulo, onde se concentram hoje as instalações do sistema financeiro do País, para São Roque, a 60 quilômetros do centro. Isso não está acontecendo apenas porque a pandemia assim passou a exigir. A corretora está de mudança porque entendeu que poderia obter melhores resultados se se afastasse do sufoco imposto pela cidade grande. O isolamento social ajudou a entender as vantagens proporcionadas pelo trabalho em casa (home office), mas não produziu essas vantagens. Por trás desse movimento, que provavelmente será acompanhado por empresas de todos os setores, está a enorme transformação que está acontecendo no trabalho.

O coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Armando Alvares Penteado (FAAP), Marcos de Oliveira Costa, lembra que a origem e o desenvolvimento das cidades estão fortemente ligados às condições do trabalho do ser humano. Milênios atrás, as aldeias e os aglomerados de pessoas surgiram para facilitar o escoamento dos excedentes de produção obtidos pelas sociedades agrícolas ou para facilitar a contratação de serviços.

Nas sociedades industriais, foi preciso deixar estoques de mão de obra à disposição para executar tarefas no chão de fábrica assim que fossem necessários para garantir e aumentar a produção. As ferrovias atuaram para deslocar para os subúrbios os conglomerados quase sempre caóticos em que se transformaram os centros urbanos.

Mas o encarecimento das moradias e os congestionamentos de trânsito voltaram a infernizar as cidades, por mais que novos centros aparecessem. “Esse paradigma está em crise porque a vida moderna proporcionou a tecnologia de informação e a internet. Com esses instrumentos, proliferaram novas formas de trabalho”, explica o professor. As distâncias dos eventuais centros de decisão nos negócios deixaram de ser relevantes para a vida urbana e para o desempenho de grande número de ocupações e de atividades, desde que se possa contar com boa conexão de comunicações.

“Como o trabalho que garante melhor remuneração será executado remotamente, será inevitável o deslocamento de renda das grandes cidades para municípios menores. As metrópoles ficarão com a parcela da população de mais baixa renda”, aposta Costa.

Por aí se pode ter ideia do impacto potencial sobre o consumo, sobre o mercado imobiliário e sobre a mobilidade urbana, que, por sua vez, está fadada a mudar a paisagem de bairros inteiros. “Localidades com problemas de conexão vão perder atratividade”, especula o professor.

Para Luciano Soares, professor de Engenharia do Insper, a cidade do futuro não terá tanta gente presa em engarrafamentos quilométricos a caminho do trabalho ou na volta para casa: “Idas e vindas dentro das cidades ficarão para o atendimento do lazer, como cinema, restaurantes ou caminhadas no parque”.

São razões que reduzirão a importância de possuir veículo próprio. Os deslocamentos tenderão a se concentrar em serviços sob demanda, como os da Uber ou do Cabify. E Soares avisa: tampouco haverá motoristas de aplicativos. As empresas investem hoje bilhões de dólares para viabilizar projetos de carros autônomos. E aí poderemos ter um efeito colateral positivo: com muitos carros sem condutores nas ruas, tenderá a se reduzir a poluição, tanto a atmosférica como a sonora. E, mais importante, o veículo será mais eficiente.

O antropólogo Lucas Lopes de Moraes, coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo, adverte que o avanço da tecnologia não deve ser visto como salvação. Muitas vezes, novos aparelhos e melhores possibilidades de conexão apenas reforçam mazelas antigas. Ele lembra que São Paulo mantém os mesmos problemas de mobilidade e de moradia que existiam nos anos 1980, quando a sociedade apenas começava a se informatizar.

Ou seja, por si sós, a chegada de carros autônomos e de drones e o maior emprego de tecnologia podem acelerar mudanças, mas não vão resolver graves problemas urbanos de sempre.

De todo modo, as eleições municipais vêm vindo aí. Um bom momento para debater os problemas urbanos, sejam os antigos, os novos ou os futuros.

28 de julho de 2020

O GRACIAR POLÍTICO!

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 27) Há uma certeza sobre o pós-pandemia: a mudança climática transformará o mundo mais do que a covid19.

Sabia que há uma escassez mundial de bicicletas? Um súbito e forte aumento da demanda global de bikes pegou os fabricantes de surpresa, criando um desabastecimento temporário. Este inesperado interesse pelo ciclismo decorre de vários fatores. Muitos dos atuais usuários de ônibus, trens de metrô e táxis se tornaram ciclistas, procurando diminuir o risco de contágio do coronavírus que existe em espaços públicos e fechados.

Os passeios de bicicleta também se tornaram uma opção atrativa para aqueles que estão desempregados. A inatividade, a quarentena e o distanciamento social tornaram um passeio de bike uma opção tentadora. Ruas e avenidas, quase sem carros e fumaça, também são um convite para um passeio de bicicleta. Depois que essa emergência sanitária amainar, o uso das bikes também deve declinar. Mas é muito provável que o número de ciclistas habituais seja maior do que antes da pandemia.

Outra razão para o aumento da demanda é o crescente apetite por opções de transporte “ecológico”, e não só pelas bicicletas. Surgiu também um enorme mercado de carros, ônibus e caminhões elétricos. O fato de a Tesla, a inovadora fabricante de carros elétricos, fundada em 2010, alcançar um valor de mercado superior ao da Toyota e da Volkswagen combinadas, ilustra bem essa tendência. Elon Musk, fundador e atual líder da Tesla, disse ter ficado surpreso com a valorização fora do comum da sua empresa nas bolsas.

A valorização das empresas negociadas em bolsas de valores é influenciada por muitos fatores – incluindo as bolhas especulativas – e os preços de suas ações às vezes não refletem adequadamente o real valor de uma companhia. Mas esses preços também revelam as expectativas dos investidores no tocante ao futuro de uma empresa.

Assim, é interessante observar que a Zoom, empresa de videoconferências, contabiliza um valor de mercado quatro vezes maior do que o da Delta Airlines. No momento, a compra de toda a indústria aérea americana seria menos cara do que adquirir a Amazon. Outro sinal interessante é que, hoje, uma ação da Netflix vale 25% mais do que a da Exxonmobil, maior empresa energética do mundo.

Essa valorização nas bolsas de ações da Netflix em relação à ExxonMobil ilustra duas importantes tendências globais: o chamado cocooning e a descarbonização.

Cocooning (do inglês cocoon, um ninho que cobre e protege) se refere à prevalência de condutas pessoais protecionistas, com as pessoas preferindo ficar em casa, no ninho, para se proteger dos perigos que existem “fora de casa”. O auge da Netflix é uma das manifestações desta preferência.

Por outro lado, a perda de valor da Exxonmobil reflete a queda da demanda mundial de petróleo. Mas os preços relativamente baixos dessa commodity não decorrem da precária economia mundial. A queda se deve também a uma expectativa de que a descarbonização – um movimento no sentido de uma eliminação gradual das emissões de dióxido de carbono resultantes do uso de combustíveis – será uma tendência permanente e acelerada.

Os combustíveis fósseis continuarão a ser a principal fonte de energia num futuro previsível, mas as emergências climáticas serão cada vez mais graves e frequentes, criando enormes pressões políticas para acelerar os esforços com vistas à descarbonização.

Nos últimos tempos, os cientistas têm sido surpreendidos com a velocidade com o que o clima vem mudando e criando fenômenos meteorológicos inéditos e extremos.

Na Sibéria, por exemplo, recentemente ocorreram incidentes climáticos sem precedentes. Em junho, a temperatura da cidade de Verkhoyansk chegou a 38ºc, o nível mais alto nunca registrado no Círculo Polar Ártico.

No primeiro semestre de 2020, a temperatura média na Sibéria foi de menos 12,7ºc, superior às registradas entre 1951 e 1980.

A Antártida também vem esquentando. Os cientistas estão preocupados que o glaciar Thwaites, conhecido como a geleira do apocalipse, esteja sofrendo um derretimento. Se descolar da massa de gelo, esse glaciar, que tem o tamanho da Inglaterra, começará a deslizar para o oceano e não mais servirá como um gigantesco muro de contenção de outros glaciares, que então poderiam começar a se mover e derreter. Tudo isso terá como resultado um aumento de dois a três metros do nível do mar.

Entre todas as incertezas sobre como será o mundo após a pandemia há uma certeza que se perfila como a mais importante: a mudança climática transformará o mundo mais do que a covid-19. Esta pandemia será lembrada como um ensaio geral de um acidente climático global que alterou a civilização do modo como a conhecíamos?

27 de julho de 2020

O FU­TU­RO É A IN­FRA­ES­TRU­TU­RA!

(Adri­a­no Pi­res, di­re­tor do Cen­tro Bra­si­lei­ro de In­fra­es­tru­tu­ra (CBIE) – O Estado de S. Paulo, 25) O B­ra­sil en­fren­ta dé­fi­cits ex­pres­si­vos no ser­vi­ço de es­go­to sa­ni­tá­rio, for­ne­ci­men­to de água po­tá­vel, ge­ren­ci­a­men­to de re­sí­du­os só­li­dos e dre­na­gem. A dis­tri­bui­ção de água ca­na­li­za­da aten­de 83,5% do to­tal de bra­si­lei­ros e 93% da po­pu­la­ção ur­ba­na. No en­tan­to, ape­nas 46% da po­pu­la­ção ur­ba­na tem aces­so a ser­vi­ços de co­le­ta e tra­ta­men­to de es­go­to, en­quan­to 12% usam sis­te­mas in­di­vi­du­ais, 18% têm o es­go­to co­le­ta­do sem tra­ta­men­to e 24% não têm ser­vi­ço de es­go­to sa­ni­tá­rio. A co­le­ta de li­xo al­can­ça 98,6% das re­si­dên­ci­as, mas o des­car­te ade­qua­do é o gran­de pro­ble­ma. Atu­al­men­te, cer­ca de 3 mil li­xões a céu aber­to es­tão em ope­ra­ção e re­ce­bem 41,6% de to­do o li­xo en­vi­a­do pa­ra o des­car­te fi­nal.

A ques­tão do sa­ne­a­men­to bá­si­co te­ve um re­cen­te avan­ço. Após dois anos de dis­cus­são no Con­gres­so Na­ci­o­nal, o no­vo mar­co re­gu­la­tó­rio do sa­ne­a­men­to bá­si­co (Pro­je­to de Lei n.º 4.162/2019) foi apro­va­do pe­lo Con­gres­so. A lei ob­je­ti­va a uni­ver­sa­li­za­ção do sa­ne­a­men­to, com a am­pli­a­ção da co­le­ta de es­go­to pa­ra 90% da po­pu­la­ção e o for­ne­ci­men­to de água po­tá­vel pa­ra 99% da po­pu­la­ção até o fim de 2033. Pa­ra tan­to, fa­ci­li­ta a par­ti­ci­pa­ção pri­va­da na pres­ta­ção do ser­vi­ço, que ho­je é ma­jo­ri­ta­ri­a­men­te re­a­li­za­do por em­pre­sas pú­bli­cas es­ta­du­ais.

O se­tor elé­tri­co é ou­tro seg­men­to da in­fra­es­tru­tu­ra que pre­ci­sa de aten­ção. Em­bo­ra a ele­tri­fi­ca­ção se­ja qu­a­se uni­ver­sal (99,3%), o se­tor foi be­ne­fi­ci­a­do por cri­ses que im­pe­di­ram o cres­ci­men­to da de­man­da, mas a ofer­ta ne­ces­si­ta de pla­ne­ja­men­to só­li­do de lon­go pra­zo. A ma­triz elé­tri­ca na­ci­o­nal é mui­to de­pen­den­te das chamadas fon­tes in­ter­mi­ten­tes, hi­dre­lé­tri­cas a fio de água, eó­li­cas e so­la­res, au­men­tan­do a vul­ne­ra­bi­li­da­de do sis­te­ma às ad­ver­si­da­des cli­má­ti­cas. Com is­so, a ne­ces­si­da­de de as­se­gu­rar o for­ne­ci­men­to de ener­gia exi­ge a com­ple­men­ta­ção das tér­mi­cas fle­xí­veis com GNL e in­fle­xí­veis com gás do pré-sal. Tér­mi­cas na ba­se do sis­te­ma elé­tri­co usan­do o gás na­tu­ral do pré-sal, bem co­mo o gás onsho­re, vão ga­ran­tir um me­lhor ge­ren­ci­a­men­to dos re­ser­va­tó­ri­os e uma ex­pan­são das eó­li­cas e so­la­res. Além do mais, ire­mos di­mi­nuir a vo­la­ti­li­da­de dos pre­ços da ener­gia elé­tri­ca e ga­ran­tir o abas­te­ci­men­to, na me­di­da em que as tér­mi­cas na ba­se fun­ci­o­na­rão co­mo uma es­pé­cie de ba­te­ria vir­tu­al. A di­mi­nui­ção da vo­la­ti­li­da­de do Pre­ço de Li­qui­da­ção das Di­fe­ren­ças (PLD) tam­bém le­va­rá à re­du­ção das ta­ri­fas, já que não ire­mos es­pe­rar o es­va­zi­a­men­to dos re­ser­va­tó­ri­os pa­ra li­gar as tér­mi­cas mais ca­ras e mais po­lui­do­ras do sis­te­ma.

O trans­por­te re­pre­sen­ta qu­a­se 60% do to­tal de cus­tos lo­gís­ti­cos do Bra­sil, cor­res­pon­den­do a 12,3% do Pro­du­to In­ter­no Bru­to (PIB), em com­pa­ra­ção com 7,8% nos EUA. O Bra­sil de­pen­de for­te­men­te de ro­do­vi­as pa­ra o trans­por­te de pas­sa­gei­ros e car­ga, no en­tan­to, o sis­te­ma pa­vi­men­ta­do é pe­que­no pa­ra o ter­ri­tó­rio na­ci­o­nal e so­fre de pro­ble­mas de si­na­li­za­ção, qua­li­da­de e en­ge­nha­ria. Em­bo­ra o País te­nha um dos mai­o­res sis­te­mas ro­do­viá­ri­os do mun­do, com qu­a­se 2 mi­lhões de km de ex­ten­são, so­men­te 12,4% são pa­vi­men­ta­dos. O sis­te­ma fer­ro­viá­rio tem 30,6 mil km e tem gar­ga­los ope­ra­ci­o­nais. As con­ces­sões pri­va­das ain­da não con­se­gui­ram ex­pan­dir a re­de fer­ro­viá­ria, que re­pre­sen­ta 15% do flu­xo to­tal de car­ga. A efi­ci­ên­cia dos por­tos bra­si­lei­ros foi redu­zi­da por equi­pa­men­tos ob­so­le­tos, ter­mi­nais mul­ti­mo­dais li­mi­ta­dos e dé­fi­cits de ca­pa­ci­da­de. E, a des­pei­to do gran­de nú­me­ro de hi­dro­vi­as, o trans­por­te flu­vi­al es­tá en­ga­ti­nhan­do, com in­fra­es­tru­tu­ra e ins­ta­la­ções de bai­xa qua­li­da­de.

A in­fra­es­tru­tu­ra pre­cá­ria au­men­ta o cus­to Bra­sil e im­pe­de o cres­ci­men­to da pro­du­ti­vi­da­de da eco­no­mia. Da dé­ca­da de 1970 até a de 2000, o in­ves­ti­men­to em in­fra­es­tru­tu­ra caiu con­ti­nu­a­men­te, pas­san­do de uma mé­dia de 5,4% pa­ra 2,2% do PIB. A ex­pli­ca­ção da que­da é a au­sên­cia de in­ves­ti­men­to pri­va­do subs­ti­tuin­do o pú­bli­co. É fun­da­men­tal aca­bar­mos com aque­la má­xi­ma que pre­va­le­ceu du­ran­te anos no Bra­sil de que in­fra­es­tru­tu­ra é de­ver do Es­ta­do. Pa­ra is­so, é pre­ci­so ha­ver es­ta­bi­li­da­de re­gu­la­tó­ria atrain­do o se­tor pri­va­do pa­ra fi­nan­ci­ar e ope­rar a in­fra­es­tru­tu­ra. A apro­va­ção do mar­co do sa­ne­a­men­to foi uma pri­mei­ra vi­tó­ria. “A me­lhor ma­nei­ra de pre­ver o seu fu­tu­ro é criá-lo” (Abraham Lin­coln).

24 de julho de 2020

VITÓRIA DA BOA POLÍTICA!

(O Estado de S. Paulo, 23) Com o avanço do Novo Fundeb, o País dá importante passo em direção a um futuro melhor, a despeito da inação do presidente.

A Câmara dos Deputados deu mais uma mostra de que não tem faltado ao País quando o que está em discussão são projetos de grande interesse nacional. Em rápida sucessão, graças a um acordo entre os partidos, a Casa aprovou em dois turnos a proposta de emenda à constituição (PEC) que torna permanente o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e aumenta o porcentual de contribuição da União dos atuais 10% para 23% até 2026, de forma escalonada. O texto seguiu para o Senado e deverá ser votado na semana que vem. Não é esperado que os senadores façam alterações de mérito.

A aprovação da PEC foi celebrada por especialistas em educação, organizações da sociedade civil, como o Todos Pela Educação, e pela maioria dos governadores, que antes de o texto ir a plenário assinaram um manifesto em favor do relatório da deputada Dorinha Seabra (DEM-TO). Foi uma vitória da boa política, do diálogo em prol do melhor para o Brasil.

Com as mudanças no fundo aprovadas pelos deputados, estima-se que mais 17 milhões de alunos serão beneficiados pelo novo aporte de recursos nas redes de ensino de Estados e municípios. Esses recursos devem proporcionar valorização salarial dos profissionais de educação, melhoria da infraestrutura de escolas e creches e, portanto, desenvolvimento das condições de aprendizado de milhões de crianças e adolescentes. É do futuro do País que a PEC trata.

O Novo Fundeb reequilibra a distribuição dos recursos e corrige uma série de distorções que, ao fim e ao cabo, mantinham a desigualdade entre as redes públicas de ensino que o próprio fundo tem como missão precípua eliminar. “É um momento histórico. Vai se dar mais (recursos) para quem mais precisa e menos para quem menos precisa”, disse Priscila Cruz, presidente do Todos Pela Educação.

O patamar mínimo de investimentos por aluno passará dos atuais R$ 3,5 mil/ano para cerca de R$ 5,7 mil/ano em 2026, ao final do processo de aumento da complementação da União. O Novo Fundeb também altera o foco de distribuição de recursos, antes estadual e agora municipal. É uma mudança importantíssima, pois hoje municípios pobres de Estados ricos não recebem a complementação da União. Pelas novas regras, o repasse dos recursos também será atrelado ao cumprimento de metas de qualidade, o que incentivará as redes de ensino a melhorar seu desempenho para receber mais recursos, alimentando um círculo virtuoso.

No Facebook, o presidente Jair Bolsonaro esbanjou cinismo e associou a aprovação da PEC na Câmara aos supostos esforços de seu governo. “Um governo que faz na Educação. Transformamos o Fundeb em permanente, aumentamos os recursos e o colocamos na Constituição”, escreveu Bolsonaro. A estratégia é a mesma adotada quando da aprovação do pagamento do auxílio emergencial. O governo pretendia pagar apenas R$ 200 aos trabalhadores informais afetados pela pandemia de covid-19. Ao ver que seria derrotado no Congresso, que estava inclinado a autorizar o pagamento de R$ 500, anuiu com R$ 600 e cantou vitória para sua claque.

O governo Bolsonaro não fez rigorosamente nada pela educação. Durante mais de um ano, Dorinha Seabra foi olimpicamente ignorada pelo ex-ministro de triste memória Abraham Weintraub. Até que na noite do sábado passado o governo resolveu ter ideias sobre o Novo Fundeb, para transformá-lo num instrumento eleitoreiro. Não sem razão, foi alijado dos debates na Câmara, que acabou por lhe impor uma derrota acachapante. A única concessão feita pelos deputados foi a aprovação da destinação de 5,25% dos recursos da União – vale dizer, dentro dos 23% complementares – à educação de crianças de 0 a 3 anos, mas sem os tais “vouchers” ou crédito direto para creches propostos pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Seria um despautério.

Com o avanço do Novo Fundeb, o País dá um importante passo em direção a um futuro melhor, a despeito da inação de um presidente que parece não saber o que é governar.

23 de julho de 2020

A FRENTE É AMPLA!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 22) Ontem, foi lançada a Frente Ampla pela Renda Básica do Congresso Nacional, presidida pelo deputado João Campos. Seu presidente emérito é o ex-senador Eduardo Suplicy, que luta há décadas pela adoção da renda básica no Brasil e foi o autor da lei que estabeleceu a renda básica cidadã, promulgada em 2004. Constam da Frente todos os partidos com representação parlamentar, exceto um: o Partido Novo. Antes de prosseguir, esclareço: adesão ampla não é sinônimo de adesão total. Aqueles que escolheram ficar de fora exercem sua prerrogativa. Seus eleitores que os questionem, ou não. O que não lhes é permitido? Interpelar aqueles que apontam a sua ausência em um esforço cujos frutos podem vir a ser o grande legado positivo de um período de resto marcado pela enorme tragédia em que se transformou o Brasil de Bolsonaro.

Não foram poucos os artigos que escrevi nesse espaço sobre a importância da renda básica desde que a pandemia chegou ao Brasil. Mesmo antes dela, já havia escrito sobre programas de renda mínima, como funcionam em tese e como foram implantados em algumas partes do planeta – inclusive em algumas partes do Brasil. Entendo a renda básica como algo fundamental para reduzir os alarmantes níveis de pobreza e de desigualdade, que foi agravada pela crise humanitária decorrente da pandemia. Entendo-a, também, como uma política de Estado que visa a inclusão de todos os cidadãos, de modo transversal, em uma experiência de cidadania mais conforme às promessas da Constituição Federal. Em outras palavras, penso a renda básica como uma política pública que trará benefícios a todos, independentemente de gênero, raça, orientação sexual, entre outros status de discriminação. Em artigos anteriores publicados aqui apresentei os argumentos econômicos em favor da medida, como é possível desenhar um programa que atenda a determinados princípios sem sobrepesar no orçamento. Mostrei, em suma, como formular propostas que caibam no orçamento e que não onerem em demasia as contas públicas, nem apresentem riscos inflacionários, como alguns economistas temem.

Com a criação da Frente Ampla terei a possibilidade de discutir tais propostas com colegas membros do conselho consultivo que fui convidada a integrar. Nesse conselho há economistas, representantes da sociedade civil, ex-servidores públicos.

Somos dez pessoas. Dez pessoas com a tarefa de auxiliar os integrantes da Frente Ampla a encontrar o melhor caminho para fortalecer a proteção social com segurança fiscal e responsabilidade com toda a sociedade brasileira. Sinto-me privilegiada por fazer parte desse grupo, que me dá a oportunidade de contribuir de outra forma com meus concidadãos.

A percepção desse privilégio torna intrigante para mim o comportamento de determinados atores políticos no Brasil em um momento em que muitos se mostram empenhados em construir uma rede de solidariedade para amortecer os efeitos da crise sobre aqueles que são mais afetados por ela. Os informais. Os mais pobres. Os três-quartos de crianças brasileiras que vivem nos 50% dos domicílios mais destituídos do País. Os autônomos, que vivem na gangorra da entrada e saída do mercado formal de trabalho. A massa de desalentados que a crise humanitária e o governo Bolsonaro criaram. Tiago Mitraud, deputado pelo único partido que não integra a Frente Ampla, afirmou que ele e correligionários seus só participarão dela se suas discordâncias forem levadas em consideração. Mais especificamente, afirmou em uma mídia social que a Frente precisa “abarcar outras ideologias”. Como disse, esse posicionamento é prerrogativa da agremiação política que optou por ficar de fora da frente. Mas cabe perguntar: quais as discordâncias? Quais as ideologias não abarcadas?

Quando comentei que o Partido Novo era o único a não tomar parte na iniciativa – a constatação de um fato –, o deputado me interpelou publicamente afirmando: “você deve estar acostumada com políticos que não leem o que assinam e só querem sair na foto”. Esse é o retrato da forma como alguns atores agem politicamente no Brasil. Incomodam-se com a constatação de fatos e manifestam seu incômodo ofendendo diretamente não apenas a pessoa que os constata, como também seus pares no Parlamento que integram a Frente.

A Frente é ampla. Que venha a renda básica. Que todos saibam quem participou e quem escolheu jogar Resta Um.

22 de julho de 2020

ARBITRAGEM E PRECEDENTES JUDICIAIS!

(Luis Felipe Salomão e Rodrigo Fux – O Globo, 21) O novo coronavírus apavorou o mundo ao trazer o gene da incerteza e insegurança. No campo da Medicina, o conhecimento humano se viu imerso em dúvidas quanto à terapêutica mais eficaz para combater o vírus.

No ambiente jurídico, o desafio está no dimensionamento preciso e justo das repercussões da pandemia. No plano das obrigações e dos contratos, inúmeros impasses a respeito das implicações quanto à estabilidade do tráfego negocial já surgiram, e outros tantos logo eclodirão, impulsionando uma onda de novos litígios.

É verdade que estes novos conflitos experimentarão um grau de imprevisibilidade ampliado pelo ineditismo do cenário e pela realidade social crítica decorrente da pandemia, desafiando algumas soluções emergenciais e menos ortodoxas.

Cenários permeados por incertezas que alargam o cálculo de imprevisibilidade, como parece ser o da pandemia, colocam na pauta de discussões a importância de o julgador (magistrado ou árbitro) resolver a disputa que lhe é submetida com observância de precedentes.

O Novo CPC (Código Fux), dentre outras mudanças que implementou com a intenção de aprimorar a prestação jurisdicional e promover os valores de segurança jurídica e igualdade, instituiu um sistema de precedentes adaptado à realidade brasileira, reunindo precedentes com eficácia normativa (vinculantes) e aqueles com eficácia persuasiva. Esses últimos, embora sem produzir efeitos processuais fora das demandas que se relacionam, desempenham função argumentativa e de convencimento dos julgadores. Já os primeiros são de observância obrigatória e ostentam mecanismos para a preservação de sua força vinculante.

A nova lei, ao modificar a forma como se compreende a jurisprudência, realçou o seu atributo de fonte de direito e a supremacia da Constituição Federal no ordenamento jurídico. O sistema brasileiro de precedentes busca otimizar o trabalho dos julgadores, garantindo a todos a segurança jurídica almejada e prometida na Constituição. Casos iguais recebem soluções homogêneas.

A jurisdição se exerce nos moldes desejados pelas partes: a resolução do conflito pode ser entregue ao Judiciário, à arbitragem (nos casos em que a lei permitir), à mediação, dentre outras. O sistema de arbitragem, acolhido pela Constituição como há muito já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, se apoia em princípios informativos próprios, mas está inserido no ordenamento jurídico nacional. Portanto, tanto o magistrado togado quanto o árbitro escolhido para atuar em arbitragem de direito e com escolha da lei brasileira — ficam de fora arbitragens por equidade e arbitragens com escolha de lei estrangeira — estão obrigados a respeitar os precedentes vinculantes e aplicar as razões fundamentais do precedente (ratio decidendi) ao caso em julgamento. Também por força do sistema de precedentes, o julgador deve levar em consideração os precedentes persuasivos para a solução dos casos.

O julgador (magistrado ou árbitro) deve levar a sério o sistema brasileiro de precedentes. Do contrário, coloca-se em risco a previsibilidade das decisões e a imprescindível segurança jurídica, o que, além de ferir de morte as legítimas expectativas daqueles que buscam justiça, afeta a imagem de nosso país perante o mercado internacional.

21 de julho de 2020

O PLANO ECONÔMICO AMBICIOSO DOS DEMOCRATAS!

(Fareed Zakaria – The Washington Post/O Estado de S. Paulo, 20) Com a pandemia ofuscando a nossa realidade, às vezes nos esquecemos de que estamos em plena campanha presidencial. O que permite compreender melhor por que, nas duas últimas semanas, a mídia prestou pouca atenção quando Joe Biden divulgou seus planos para combater a mudança climática e reanimar a economia.

O plano ambiental é ambicioso e mostra uma grande visão do futuro, mas o mais interessante é o plano econômico, que promete garantir que o futuro chegue a “toda a América”. O que soa como o slogan “A América em primeiro lugar”, o que fez o presidente Donald Trump acusar Biden de roubar as suas ideias. Mas, na realidade, embora o programa seja inteligente do ponto de vista político, por avançar diretamente no terreno do nacionalismo econômico de Trump, é muito melhor do que a estratégia do presidente.

A primeira coisa, a mais importante, é o que o programa não faz. Não se trata de uma insistência mercantilista na aplicação de tarifas e em guerras comerciais, as marcas registradas da presidência. Trump falhou neste ponto em todos os sentidos. A evidência é tão clara que, quando a campanha de Biden divulgou um anúncio inflamado afirmando que Trump “perdeu” a guerra comercial com a China, a única crítica do Politifact em relação a esta afirmação foi que ele deveria ter usado o tempo presente “está perdendo”.

Os seus editores apontaram para os seguintes estudos de 2019: um relatório do Banco Central americano, que determinou que “as tarifas não contribuíram para aumentar o emprego na indústria ou a produção e elevaram os preços ao produtor”; uma análise da Moody’s que concluiu que a guerra comercial custou 300 mil empregos americanos; e um estudo do Fed que avaliou o custo dessas tarifas para as famílias americanas em aproximadamente US$ 800 ao ano, anulando os benefícios da redução de impostos de Trump. A Oxford Economics calculou que, no ano passado, a guerra comercial cortou 0,3% do crescimento do PIB dos EUA.

A ideia mais audaciosa do programa de Biden é um aumento maciço dos investimentos nas áreas de pesquisa e desenvolvimento. Ele propõe elevar os gastos em US$ 300 bilhões ao longo de quatro anos, o que representa um aumento de 60% em relação aos gastos de 2018. Se for colocado em prática, o programa reverterá o declínio persistente dos investimentos federais em ciência e tecnologia desde o seu apogeu, nos anos 50 e 60 – para chegar atualmente a esses níveis, seriam necessárias centenas de bilhões a mais. Tais investimentos permitiram produzir o computador pessoal, a internet, o Sistema de Posicionamento Global (GPS) e uma série de outras tecnologias que transformaram a economia.

Mais recentemente, é importante lembrar, um empréstimo do Departamento de Energia de US$ 465 milhões permitiu que a Tesla se estabelecesse e realizasse experimentos com carros elétricos. O plano de Biden propõe investimentos na tecnologia 5G, em automóveis elétricos, em materiais leves e inteligência artificial. Parte do dinheiro será desperdiçada – como acontece também nos investimentos das empresas de capital de risco –, mas só bastarão algumas, como a Tesla, para conseguirmos um enorme sucesso.

O programa tem também um componente de US$ 400 bilhões do “Buy American”. A teoria em que ele se baseia é sensível. Mas o perigo desse tipo de estratégia é que, frequentemente, ela pode se tornar uma “política industrial”, na qual o governo tenta reviver setores mais antigos, como o aço (como Biden quer fazer) e favorecer as empresas com os melhores lobistas.

Em geral, o histórico da maioria dos países ricos na atuação da política industrial tem sido bastante ruim. Os especialistas costumavam apontar para o Japão como o país que dominava os investimentos dirigidos pelo governo, com a exceção de que o que ocorreu foi que as melhores companhias japonesas saíram do setor privado, ferozmente competitivo. As que eram controladas pelo Estado, em geral, não tiveram sorte. A China é diferente, porque sua maior vantagem não são os investimentos inteligentes do governo, mas os baixos salários.

O melhor modelo não é aquele em que o governo cria ou subsidia companhias ou setores específicos, mas o que deixa o mercado saber que comprará certos tipos de produtos inovadores, dando ao setor privado um incentivo para produzi-los. Já em 1962, o governo americano era responsável pela compra de 100% de todos os chips semicondutores produzidos nos EUA. O que permitiu que a indústria se tornasse viável.

Do mesmo modo, as encomendas da Nasa contribuíram para o setor de computação nos anos 60. Biden quer emular esta estratégia e apoiar as tecnologias de ponta dos dias de hoje. Mas as agências fundamentais do governo federal, naquela época, eram mais eficientes e operavam em um isolamento muito maior de interesses específicos.

Uma cautela, porém. O lema “Buy American” (Compre produtos americanos) existe há muito tempo. Na realidade, começou em 1933, no último dia de mandato do presidente Herbert Hoover, respondendo ao plano “Comprem produtos britânicos”, anunciado em Londres. O resultado dessas estratégias impeliu o mundo para uma espiral descendente de protecionismo e nacionalismo, empobrecendo as pessoas comuns, criando um clima internacional perigoso. Tenhamos essa história em mente ao implementarmos a futura versão do “Buy American”.

20 de julho de 2020

DERIVA REACIONÁRIA E ANTILIBERAL FAZ POLÔNIA FLERTAR COM SEU PASSADO AUTORITÁRIO!

(Mario Vargas Llosa – O Estado de S. Paulo, 19) Considero Anne Applebaum como uma das melhores jornalistas dos tempos atuais. Americana, casada com um polonês democrático e liberal, vive na Polônia. Seus livros e artigos sobre a desaparecida União Soviética (URSS) e dos países do Leste Europeu, publicados por The Atlantic, costumam ser magníficos, assim como bem investigados, escritos com ordem e elegância, geralmente imparciais.

Vi sua assinatura entre os 150 intelectuais, em sua maioria de esquerda, que criticam seus colegas mais radicais por derrubar estátuas e praticar o ódio e a censura, como se um bom número deles não os tivesse ensinado a ser assim. Mas, pelo menos no caso dela, acredito que seja compatível essa singularidade: o esquerdismo e a vocação democrática.

O último artigo de Anne Applebaum a respeito do segundo turno das eleições polonesas, no domingo passado, não tem nada que possa ser deixado de lado. Expõe a campanha contra os homossexuais que permitiu ao presidente da Polônia, Andrzej Duda, do partido Lei e Justiça, ganhar um novo mandato, por pouquíssimos votos, derrotando a Rafal Trzaskowski, prefeito de Varsóvia, que havia prometido apoio à comunidade gay e difundir aulas contra a discriminação e o bullying nas escolas.

Não tenho nada contra a Polônia, um dos países mais sofridos e ocupados por seus poderosos vizinhos ao longo de sua trágica história, mas, sim, uma enorme simpatia por sua alta cultura, suas magníficas livrarias e editoras e por seu cinema e teatro, onde, há alguns muitos anos, vi uma obra minha ser encenada com mais talento e originalidade do que em qualquer outro país.

Mas, obviamente, preocupa-me a tendência cada vez mais reacionária, antiliberal e antidemocrática de um governo que, apoiado acima de tudo pela hierarquia da Igreja e pelos camponeses e cidadãos mais tradicionais, que seguem e praticam uma religião, está dissociando a cada dia mais a Polônia da Europa livre e moderna, retrocedendo-a a um passado autoritário.

Segundo o testemunho de Anne Applebaum, percebeu-se claramente como a sigla LGBT desempenhou uma função central nessa campanha eleitoral. O presidente Duda, que buscava a reeleição, declarou que “os LGBTs não são o povo; são uma ideologia mais destrutiva que o comunismo” e atacou seu adversário durante a campanha, acusando-o de querer “a sexualização das crianças” e “a destruição da família”.

A hierarquia da Igreja Católica polonesa, aparentemente também muito conservadora, acredita, como João Paulo II, que os homossexuais são “a praga do arco-íris”, e a alegação de que os gays revolucionam a sociedade não é “polonesa”, mas sim alemã e judia, e uma das TVs estatais martelou os espectadores com essa pergunta racista e estúpida, mas que, a julgar pelo resultado da eleição, foi bastante eficaz: “Trzaskowski cumprirá as exigências judias?”

E outro dos líderes do partido Lei e Justiça, Jaroslav Kaczynski, declarou que o atual prefeito de Varsóvia não tem “um coração polonês”, mas forasteiro. Portanto, o ódio aos gays desempenhou um papel importante nas eleições, como também duas velhas taras sanguinárias: o nacionalismo e o antissemitismo.

O catolicismo da população polonesa não é incompatível com a democracia, desde que, como tem acontecido em todas as democracias civilizadas – também existem as fanáticas e liberais –, a religião esteja livre de preconceitos, como na França, na Inglaterra e na Espanha, para dar apenas três exemplos que conheço de perto, de uma militância religiosa que não está manchada pelas taras nacionalistas ou pelos preconceitos racistas.

É claro que, depois de ter sido humilhada, discriminada e atordoada pela propaganda marxista-leninista durante seu status de país-satélite da URSS por tantos anos, não surpreende que grande parte dos poloneses tenha optado pelo partido da ordem e da tradição, como é o Lei e Justiça.

Mas os resultados da recente eleição, em que o prefeito Trzaskowski perdeu para o presidente Duda por uma diferença ínfima de votos, mostra que os atuais governantes já estão na corda bamba, que por qualquer excesso que cometam ao lidar com o poder, poderiam perdê-lo em uma nova eleição, que devolveria a Polônia à verdadeira democracia, como acontece com a grande maioria dos países pertencentes à União Europeia, o que não é o caso da Hungria, uma sociedade que, neste momento, é muito difícil continuar chamando de democrática.

Embora não siga nenhuma religião, estou convencido de que a maioria dos seres humanos, que teme a morte, precisa da religião para viver com certa confiança e calma, pois a ideia da extinção definitiva atordoa e atormenta as pessoas e as impede de viver e trabalhar em paz. Por isso, não é necessário acabar com a religião, feito que a história já declarou um sonho impossível, mas ela deve ser acomodada de tal maneira que não seja incompatível com a liberdade e a legalidade da ordem democrática, a única que representa, pelo menos em teoria, uma sociedade justa, diversa e solidária. Hoje, muitos países parecem ter alcançado essa homologação compatível de valores religiosos e democráticos.

Anne Applebaum pensa que isso seja possível na Polônia ou teme que ambas sejam impossíveis de coexistir nesse país ao qual é evidente que se sente muito próxima? Seu artigo, é claro, não se baseia em considerações imprecisas e ressalta que, provavelmente, após a vitória apertada, o partido Lei e Justiça fará o possível para acalmar os ânimos.

Ela vê sintomas disso na filha do vencedor, Kinga Duda, que na noite do triunfo de seu pai fez um discurso dizendo “que ninguém em nosso país deve ter medo de sair de casa” em razão “daquilo em que acreditamos, pela cor de pele, pelos valores que defendemos, pelo candidato que apoiamos e gostamos”. Tomara que sejam essas as crenças arraigadas e não “sonhos de ópio”, como as chamava Valle Inclán.

Sem dúvida, alguns dos temores que expressa em seu artigo são profundamente preocupantes. Já não se trata mais de perseguir os gays ou atacá-los, como chegou a acontecer, mas também da mídia impressa e de imagem, que ainda é bastante independente e livre na Polônia. Mas, se as intenções de certos dirigentes do Lei e Justiça se realizarem, essa realidade poderia se transformar radicalmente.

A independência da imprensa se deve, em grande parte, ao fato de seus proprietários serem empresários estrangeiros que foram, recentemente, perseguidos por inspeções fiscais ou investigações sobre supostas corrupções. Uma campanha nacionalista – a “polonização” da mídia – quis forçar a venda de jornais e TVs. É preciso que a UE intervenha de maneira decisiva dando fim a essa campanha, pois sem a existência de uma imprensa livre não há democracia que sobreviva. Os poloneses deveriam saber disso melhor do que ninguém.

O atual governo da Polônia, como todos os governos do mundo, tenta controlar a imprensa e se livrar dos porta-vozes que o vigiam, denunciam seus erros e travessuras reais ou inventadas e costumam estar nas mãos de seus opositores e de jornalistas honestos, fazendo desaparecer aqueles e a esses últimos calálos ou comprá-los.

O que acontece é que nos países com poderosas tradições isso não é possível, a própria sociedade o impede. Este é o ideal que, como o tempo, qualquer país pode alcançar. Toda democracia jovem ou recente será sempre imperfeita e talvez seja impossível alcançar a perfeição neste campo. O importante é manter viva uma imprensa livre, até que isso se torne um costume do qual a sociedade como um todo não deseja desistir. Essa já é uma grande vitória, apenas possível nos países que, acima de tudo, escolheram ser verdadeiramente livres.

17 de julho de 2020

O CUSTO DA EVASÃO ESCOLAR!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 16) Levantamento estima que o prejuízo total causado pela evasão escolar seja de R$ 214 bilhões por ano, o que equivale a 3% do Produto Interno Bruto.

Depois de ter lançado em 2019 uma campanha de mobilização de institutos, empresas, ONGS e entes públicos para definir pautas para a produção de conteúdo de 81 programas sobre educação no Canal Futura, reunindo mais de 92 parceiros, a Fundação Roberto Marinho (FRM) concentrou-se nos problemas que prejudicam a permanência de crianças e jovens no ensino básico e, agora, está divulgando os resultados de sua iniciativa.

Com o objetivo de identificar os fatores responsáveis pelas altas taxas de defasagem e, principalmente, de evasão escolar, ela atribuiu a um grupo de especialistas a responsabilidade de elaborar um estudo intitulado Consequências da Violação do Direito à Educação, que foi lançado nesta semana. E, para coordenar o trabalho, convidou o economista Ricardo Paes de Barros, PH.D. pela Universidade de Chicago, professor do Insper e consultor do Instituto Ayrton Senna. Depois de cruzar os dados do Censo Escolar de 2018 e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), segundo os quais 25% dos estudantes do ensino fundamental estão atrasados em sua formação e 1 em cada 4 alunos do ensino médio abandona o curso, os pesquisadores chegaram a uma constatação trágica. Se esse ritmo não for detido, 17,5% dos jovens que hoje estão na faixa etária dos 16 anos não conseguirão concluir a educação básica até os 25 anos.

Na prática, isso representa o ingresso no mercado de trabalho de 575 mil pessoas sem escolaridade completa a cada ano, justamente num período em que o avanço da tecnologia vem obrigando as empresas a exigir mão de obra cada vez mais qualificada. Com base em análises e simulações, o levantamento estima que o prejuízo causado pela evasão escolar seja de R$ 372 mil ao ano, por estudante que abandonou a escola. No total, a perda é de R$ 214 bilhões por ano, o que equivale a 3% do Produto Interno Bruto.

Esses números atestam a baixa qualidade dos gastos do governo numa área estratégica para o futuro das novas gerações e, por consequência, do País. “Isso mostra que a máquina pública é ineficiente. Na educação, há problemas diversos, como formação inadequada dos professores e indicação política de diretores. É difícil quebrar isso, mas não se pode perder R$ 214 bilhões todos os anos em um sistema que não funciona”, diz Wilson Risolia, diretor da FRM.

“É como uma obra inacabada, que, se tivesse sido concluída, teria um tremendo impacto positivo na sociedade”, afirma Barros. Para ter ideia do alcance dessa afirmação, a evasão escolar influencia a expectativa de vida – quem conclui o ensino básico, por exemplo, tem, em média, quatro anos a mais de vida do que quem abandonou a sala de aula. A defasagem e a evasão escolar também têm reflexos no aumento dos índices de violência urbana. Segundo o estudo da FRM, cada ponto porcentual de redução nos índices de evasão escolar equivale a 550 homicídios a menos por ano.

O mais alarmante, contudo, é que os problemas da defasagem e da evasão escolar devem aumentar ainda mais. Entre outros motivos, porque as pesquisas em andamento sobre o impacto da pandemia de covid-19 sobre crianças e jovens já detectaram que 28% pensam em não voltar para a escola quando acabar o confinamento e 49% dos estudantes que planejam fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) cogitam desistir da prova. Além disso, desde o início do governo Bolsonaro a área de ensino básico está praticamente abandonada pelo Ministério da Educação (MEC).

Estudos como esse, que envolvem a colaboração de diferentes setores da sociedade, são fundamentais para subsidiar políticas públicas de qualidade. Mas, para que produzam efeitos concretos, é preciso que os dirigentes governamentais da área da educação tenham não só um mínimo de seriedade, mas, igualmente, competência para compreender a importância das colaborações que estão recebendo. Infelizmente, nos últimos 18 meses o MEC não foi chefiado por quem tivesse essas qualidades.

16 de julho de 2020

IMUNIDADE DE REBANHO!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 15) A revista Science publicou um artigo recente no qual a imunidade de rebanho é modelada como parte de uma série de modelos epidemiológicos que tentam, à luz dos dados e de diversas informações sobre a população de diferentes localidades, dar diretrizes gerais sobre o curso da epidemia. Trata-se, portanto, de um conjunto de artigos, e, em todos eles, pesquisadores têm sublinhado que seus modelos não devem ser tomados ao pé da letra para a formulação de políticas de saúde pública. Como todos os modelos, eles servem tão somente para entender algumas partes de um problema intrincado, não-linear, dinâmico e que comporta uma miríade de dúvidas, questões não respondidas e, possivelmente, outras ainda não formuladas. Contudo, há quem os esteja interpretando de forma indevida para argumentar a favor da reabertura econômica independentemente da evolução da epidemia e para afirmar, equivocadamente, que alguns lugares já podem estar próximos dessa espécie de Santo Graal da nossa era.

Esses artigos usam de recursos técnico-científicos semelhantes aos empregados por economistas em suas construções retóricas no que deveria ser um esforço por elucidar questões. Vou ilustrar o que quero dizer. Em economia, é comum valer-se de modelos em que há um agente representativo, isto é, um indivíduo cujo comportamento pode ser extrapolado para todos os demais, pois é característico de todos. Modelos com esse tipo de premissa permitem simplificações que em muito auxiliam a avaliação analítica: por exemplo, se todos os consumidores tiverem um comportamento semelhante e redutível ao de um agente representativo, o problema da agregação, típico na macroeconomia, é facilmente eliminado. Para analisar o consumo agregado, basta reduzi-lo às decisões de um único indivíduo, uma vez que todos os demais a ele se assemelharão. É claro que, na prática, não funciona dessa forma, como sabemos por intuição e como revelam os estudos de economia comportamental. Ainda assim, trata-se de um artifício útil.

A imunidade de rebanho clássica, como os modelos de agente representativo, partem do pressuposto de que a imunidade é uniformemente distribuída em uma dada população. Por força desse pressuposto, há uma forma simples para calculá-la. Os 60% a 70% de infectados para alcançar a imunidade de rebanho, supondo que o fator de reprodução do vírus causador da covid seja algo entre 2,5 e 3, são calculados a partir da fórmula proveniente da imunidade clássica. Há, porém, duas questões importantes a considerar. A primeira é que o fator de reprodução real do vírus só será conhecido quando a epidemia acabar. Por ora, temos apenas estimativas que variam de acordo com fatores diversos. A segunda é que a presumida uniformidade imunológica está associada à existência de uma vacina que confere imunidade ao vírus. Ou seja, a imunidade de rebanho clássica só tem sentido no contexto de uma vacina existente para determinar a cobertura crítica de um programa de vacinação, aquela cobertura que atinge a imunidade de rebanho.

Não temos vacina para o SARS-COV2, logo, a imunidade de rebanho clássica não é aplicável. Por esse motivo, não se pode partir do pressuposto de uniformidade imunológica. Parte-se, ao contrário, da heterogeneidade imunológica, elaborada de maneiras distintas em diferentes estudos. No entanto, premissas ainda são necessárias. No estudo da Science, há duas: a de que todos os infectados sobreviventes têm imunidade plena contra o vírus e de que essa imunidade é duradoura. Essas premissas, como a do agente representativo, são simplificações necessárias, do ponto de vista da pesquisa científica, para elucidar um aspecto daquilo que se busca entender. Como disse antes e insisto aqui, ambas carecem de evidências científicas para sustentá-las; isso não invalida um modelo que se propõe a avaliar os fatores que podem influenciar a imunidade de rebanho, mas invalida seu uso para defender a reabertura econômica prematura.

O uso indevido de cálculos para a imunidade de rebanho tem consequências econômicas diversas. Ele expõe a população desnecessariamente – sobretudo a mais vulnerável economicamente – ao risco de contágio, com consequências sobre a desigualdade. Ele põe em risco pessoas que podem vir a apresentar sequelas, tornando-as dependentes de um sistema de saúde sub-financiado e as retirando do mercado de trabalho caso apresentem problemas mais graves decorrentes da exposição ao vírus. Para resumir, o uso indevido dos cálculos e do conceito de imunidade de rebanho põem a economia em outro patamar de risco. Economistas não usariam modelos de agente representativo para recomendar políticas de combate a uma crise econômica aguda. Da mesma forma, tudo o que existe sobre imunidade de rebanho deve ser deixado em seu devido lugar: entre os pesquisadores e cientistas que buscam compreender um vírus novo em plena evolução.

 

15 de julho de 2020

PORTA DE ENTRADA PARA A INCLUSÃO SOCIAL!

(Romeu Chap Chap, Arthur Parkinson e Juliana Marques – O Estado de S. Paulo, 14) Há décadas o Brasil fecha os olhos para o crescimento desenfreado das cidades e para a enorme deficiência no modo de vida urbano, decorrentes da desigualdade social cada vez mais acentuada. Só não vê quem não quer. E, em tempos de pandemia, não precisamos nem sair de casa para nos depararmos com essa dramática realidade.

Recentemente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) antecipou os resultados do Censo 2020 sobre os aglomerados subnormais (onde se incluem as favelas) em razão da covid-19, confirmando a crítica e alarmante situação da moradia no Brasil. São considerados aglomerados subnormais essencialmente aqueles cujos moradores não possuem a titularidade dos imóveis – e estes somam hoje mais de 13 mil, distribuídos em 734 municípios e concentrando mais de 5 milhões de domicílios em condições precárias, uma população de 35 milhões de habitantes.

Em relação ao último Censo (2010), não só não houve efetivo combate ao problema, como também perdemos o controle sobre seu aumento. O número de domicílios em situação precária, o de aglomerados subnormais e a quantidade de municípios mais que dobraram em dez anos.

Esta realidade habitacional tem revelado sua face ainda mais cruel com o avanço do coronavírus nas comunidades vulneráveis. Segundo o IBGE, nos aglomerados subnormais residem, em geral, populações com condições socioeconômicas, de saneamento e de moradia mais insatisfatórias. Como fator agravante, muitos desses aglomerados têm uma densidade de edificações extremamente elevada, o que pode facilitar a disseminação do vírus. Em São Paulo, levantamento da Prefeitura municipal mostrou que a quantidade de mortes por covid-19 disparou nas periferias: a letalidade é dez vezes maior do que em bairros mais centrais e de classe média.

O levantamento mostra que o modo de viver em precariedade continua avançando vertiginosamente nas cidades brasileiras. Em face da pandemia, as consequências são ainda mais nefastas para essa população, o que torna urgente e vital a implantação de um programa nacional direcionado para a melhoria das condições desses assentamentos.

A iniciativa privada tem demonstrado aptidão para atuar com o poder público em parcerias comprometidas em reverter a situação de carência habitacional, a exemplo do Minha Casa Minha Vida. O setor reúne condições para o estabelecimento de parcerias público-privadas focadas também no desenvolvimento de programas que objetivam a qualificar os aglomerados subnormais, melhorando a realidade urbana das comunidades vulneráveis, sem lhes tirar o endereço.

Mudar de vida sem mudar de CEP, garantindo cidadania aos moradores de aglomerados subnormais, é a base de um programa habitacional nacional preliminarmente nomeado Minha Comunidade Cidadã (MCC). A princípio, a ação se baseia na melhoria dos acessos e da circulação, no provimento de infraestrutura (essencialmente saneamento básico, o que será tremendamente estimulado pelo novo marco regulatório do setor) e na implantação de equipamentos urbanos (comércio, educação, saúde, cultura, esporte, lazer). Trata-se de um programa que visa a garantir a regularização fundiária com a titularidade dos imóveis aos proprietários; que olha para as questões de cada território e de cada comunidade, com foco na cidadania.

O programa nacional proposto é porta de entrada para a inclusão social e tem tudo para recuperar o que lamentavelmente deixamos acontecer. É o setor da construção civil em seu papel de fazer cidades com foco na cidadania.

14 de julho de 2020

ENTRE O SUCESSO E A MÁ FAMA!

(Editorial – O Estado de S. Paulo, 13) Sucesso do agronegócio e ingresso de capital estrangeiro dependem de competência na produção, de atenção às condições de comércio e da imagem do País.

Batendo mais um recorde, o Brasil deve atingir 251,4 milhões de toneladas na atual safra de grãos, segundo o Ministério da Agricultura. Serão 3,9 toneladas por hectare, se confirmada a nova estimativa. Em 15 anos a produção por hectare aumentou 63,4%. Com base na ciência, na difusão de tecnologia e no trato eficiente do solo, o agronegócio brasileiro produziu volumes crescentes de alimentos e matérias-primas poupando terra e preservando o ambiente. Esse é o agronegócio relevante, competitivo e presente em mercados de todo o mundo. Comprometido com a preservação de florestas, sua imagem tem sido, no entanto, manchada por grileiros e aventureiros criminosos, favorecidos pela péssima política ambiental do governo e por sua retórica irresponsável.

Enquanto a pandemia derruba a atividade industrial e a produção de serviços, o agro se mantém como o setor mais firme da economia brasileira, com mais um ano de crescimento garantido.

Com a colheita de 120,9 milhões de toneladas, número calculado pelo Ministério da Agricultura, o Brasil recupera a posição de maior produtor mundial de soja, tomada em 2018 dos Estados Unidos e perdida em 2019.

Soja e derivados continuam sendo os principais itens vendidos ao exterior pelo agronegócio. O complexo soja rendeu em maio US$ 5,88 bilhões, mais de metade do valor faturado pelo setor (US$ 10,93 bilhões). Esta soma, um novo recorde, representou 60,9% da receita brasileira de exportações em maio.

As vendas externas do setor, amplamente superavitárias, têm sustentado, há anos, o saldo positivo da balança comercial de bens. Os US$ 42 bilhões faturados pelo setor nos cinco primeiros meses de 2020 superaram por 7,9% o valor vendido no mesmo período do ano passado e foram, historicamente, a maior receita obtida no período de janeiro a maio.

O aumento do volume, de 13,7%, permitiu esse resultado, porque o índice de preços foi 5,1% inferior ao de igual período de 2019. O superávit de US$ 36,59 bilhões garantiu o saldo positivo de US$ 16,35 bilhões na balança comercial. A China importou produtos no valor de US$ 16,52 bilhões, e se manteve como principal cliente. Como região, a Ásia continuou em primeiro lugar (US$ 23,62 bilhões), seguida por União Europeia, América do Norte e Oriente Médio.

Com mais uma grande safra de grãos e oleaginosas, o agronegócio deve continuar sustentando as contas externas do Brasil, enquanto os demais setores, especialmente a indústria de transformação, enfrentam severas dificuldades comerciais. O superávit no comércio de produtos agrícolas e pecuários é muito mais que um êxito setorial. Tem sido, e será provavelmente por muito tempo, um fator de segurança econômica.

O saldo positivo na balança comercial de bens compensa, em geral parcialmente, resultados negativos nas contas de serviços e de rendas. Isso mantém as transações correntes – normalmente deficitárias – em condições administráveis e seguras. O financiamento desse déficit por meio de investimento direto estrangeiro reforça a segurança e favorece o crescimento econômico.

Nenhum desses bons efeitos é uma bênção gratuita e garantida para sempre. O sucesso do agronegócio e o ingresso de capital estrangeiro dependem de competência na produção, de atenção às condições de comércio e da imagem do País. A função do governo é essencial para a manutenção dessas condições. No caso brasileiro, a imagem externa tem sido prejudicada principalmente pelo desmonte dos mecanismos de proteção ambiental, pela retórica irresponsável do presidente e de vários de seus ministros e por uma diplomacia desastrosa. Os erros diplomáticos incluem provocações e ofensas a importantes clientes do agronegócio, como a China e países muçulmanos. Pressionado, agora, também por grandes grupos brasileiros, o governo anuncia, por meio do vice-presidente, um decreto de suspensão das queimadas na Amazônia por 120 dias, como no ano passado. Mas a devastação cresceu, como indicaram dados de satélites, provavelmente continuará crescendo, se nada mais sério for feito, e a imagem do País acabará carbonizada.

13 de julho de 2020

A TOLERÂNCIA PARA O DEBATE ABERTO!

(O Estado de S. Paulo, 12) Espécie de ajuste de contas com o passado não pode levar a uma restrição do debate, fazendo com que, a cada dia, mais assuntos, temas ou opiniões sejam proibidos.

No dia 7 de julho, a revista americana Harper’s publicou em seu site uma carta assinada por mais de 150 professores, escritores e artistas de renome mundial, na qual apoiam as manifestações por justiça racial e social que se iniciaram nos Estados Unidos e se difundiram pelo mundo inteiro, após a morte de George Floyd em Minneapolis no final de maio. Ao mesmo tempo, os signatários da Carta sobre justiça e debate aberto – entre eles, Francis Fukuyama, Noam Chomsky, Gloria Steinem, J. K. Rowling e Salman Rushdie – alertam para o “clima de intolerância que se instalou por todos os lados”. O texto oferece uma interessante reflexão sobre a chamada “cultura do cancelamento”.

A carta relata perseguições que vêm ocorrendo em nome da justiça social: “Editores são demitidos por publicar materiais controvertidos, livros são removidos por suposta inautenticidade, jornalistas são impedidos de escrever sobre certos assuntos, professores são investigados por citarem livros de literatura durante a aula, um pesquisador é demitido por circular um estudo acadêmico revisado por pares”. E constata que, “quaisquer que sejam os argumentos relativos a cada caso em particular, o resultado tem sido estreitar constantemente os limites do que pode ser dito sem a ameaça de represália”.

Trata-se, portanto, de um clima oposto ao que se deve esperar de um ambiente no qual se respeitam as liberdades. Por exemplo, a liberdade de expressão significa precisamente que cada um deve dispor de tranquilidade para expressar o que bem entender, sem medo de represália ou punição. Não pode haver em um Estado Democrático de Direito mais limites à liberdade que aqueles determinados pela lei.

No entanto, os autores da carta afirmam que “a livre troca de informações e ideias, força vital de uma sociedade liberal, está se tornando cada vez mais restrita”. A atitude de censurar quem pensa de forma diferente já não está restrita a alguns grupos extremistas. Ela “está se expandindo em nossa cultura”, denunciam.

O clamor mundial por mais justiça racial e social deve levar a mudanças efetivas, como a reforma da polícia, a proibição de práticas discriminatórias ou a adoção de políticas públicas de inclusão. No entanto, essa espécie de ajuste de contas com o passado não pode levar a uma restrição do debate, fazendo com que, a cada dia, mais assuntos, temas ou opiniões sejam proibidos de serem ditos. “A restrição do debate, seja por um governo repressivo ou por uma sociedade intolerante, prejudica invariavelmente aqueles que não têm poder e torna todos menos capazes da participação democrática”, diz a carta. Diminuir a liberdade sempre tem consequências nefastas para todos, especialmente para os mais vulneráveis e os grupos minoritários.

É um erro, portanto, pensar que se pode promover a justiça reduzindo as liberdades. “Nós recusamos qualquer falsa disjuntiva entre justiça e liberdade, já que uma não pode existir sem a outra”, dizem os signatários da carta. Existem sim ideias perniciosas, que causam danos, reforçam estereótipos ou reproduzem desigualdades. Mas “o caminho para derrotar as más ideias é expor, argumentar e persuadir, e não tentar silenciá-las ou querer excluí-las”.

Um ponto especialmente importante é abordado no final do texto publicado na Harper’s. “Como escritores, precisamos de uma cultura que nos deixe espaço para a experimentação, o risco e até erros. Devemos preservar a possibilidade de discordar de boa-fé sem terríveis consequências profissionais”. Para existir liberdade, é preciso que seja permitido errar. Certamente, a liberdade inclui a correspondente responsabilidade. Eventuais danos e prejuízos causados devem ser reparados, por meio de um processo judicial isento, com respeito ao contraditório e ao direito de defesa. Nem por isso se deve deixar que alguns poucos, por gritarem mais alto ou serem mais desabridos no uso da violência, levem ao extermínio o que eles tacham de erro. Nesse modo de agir, não há liberdade, tampouco justiça. Há mera barbárie.

10 de julho de 2020

SEM MINISTRO E SEM RUMO!

(Zeina Latif  – O Estado de S. Paulo, 09) Muito foco tem sido dado à escolha do próximo ministro da Educação, mas muito pouco se discute sobre as medidas para reduzir o atraso educacional, combatendo a desigualdade de oportunidades e elevando a qualidade da mão de obra. É uma visão míope defender mais recursos públicos.

Nunca é demais repetir que o governo brasileiro gasta com educação mais que a média dos países da OCDE (6,2% do PIB em 2015 ante 5%) e que o aumento de recursos foi considerável na última década (4,5% em 2005).

É verdade que o gasto por aluno é bastante inferior (equivale aproximadamente a 41% da OCDE no ensino básico e 88% no superior), mas cabe lembrar que somos mais pobres que a média da OCDE (o PIB per capita do Brasil equivale a 35%) e gastamos mais do que países parecidos. O custo por aluno é sensivelmente maior aqui do que na média da Colômbia e do México, por exemplo (1,8 vez maior no ensino superior e em torno de 1,27 vez no ensino básico).

O aumento de recursos permitiu maior acesso à educação, mas houve avanço insatisfatório dos indicadores de qualidade. O momento atual demanda a melhor gestão e alocação de recursos, reduzindo a ênfase no ensino superior, mais frequentado pela elite.

São menos crianças ingressando na escola, por conta da menor fertilidade, mas ainda há muitas de fora. Apenas 29% das crianças pobres estão em creches e 7,4% delas estão fora da pré-escola. As discrepâncias regionais são elevadas, o que demanda maior flexibilidade nos orçamentos locais e a reprodução de experiências de sucesso.

São 71% dos jovens entre 15 e 17 anos matriculados no ensino médio, mas 35% não o concluem – para os mais pobres, a taxa sobe para 49,8%. A elevada evasão escolar está certamente associada à baixa qualidade do ensino. A taxa de proficiência em leitura no 3.º ano fundamental (dado de 2016) está em 45% (68% entre os mais ricos e 23% entre os mais pobres). Os números para a proficiência em matemática são parecidos.

Na comparação mundial fica ainda mais explícita a baixa qualidade do gasto com educação. As notas do Pisa estão praticamente estagnadas desde 2009 e são inferiores às da Colômbia, que exibiu sensível avanço. A diferença entre ensino público e privado é significativa.

A discussão da renovação do Fundeb será importante teste. A proposta em tramitação no Congresso propõe elevar significativamente a complementação de recursos da União – de 10% para 20%, implicando R$ 170 bilhões a mais em 10 anos. Há vários problemas: não há preocupação com a qualidade do ensino e se engessa ainda mais a alocação de recursos ao não alterar as regras vigentes desde 2009 que farão com que o aumento de recursos se traduza em elevação do piso salarial, já bastante valorizado (204% de ajuste desde 2009 ante inflação de 83%) nas regiões mais pobres.

O MEC não se manifesta, mas deveria ter proposta alternativa, com a manutenção do volume atual de recursos e estabelecendo critérios meritocráticos para a distribuição dos mesmos, levando em conta as diferentes realidades do País, e provendo maior liberdade para sua utilização. Cada administração local deveria definir suas prioridades de gastos.

Há outras tantas agendas importantes no MEC, como a coordenação de esforços regionais, propiciando replicar os vários casos de sucesso na educação.

É necessário introduzir meritocracia na universidade pública, lembrando que 85% das despesas é com pessoal, sobrando pouco para a pesquisa acadêmica.

Especialistas apontam para a necessidade de unificar programas de assistência estudantil para um direcionamento mais eficiente dos recursos, criar mecanismo de devolução de recursos de indivíduos que se beneficiaram de recursos públicos no ensino superior, reduzir a gratuidade do ensino superior para os mais ricos, viabilizar convênios entre as universidades públicas e a rede básica.

A crise atual aumenta o apelo para medidas populistas e pode afastar medidas mais estruturantes. Não podemos cair nessa armadilha.

09 de julho de 2020

PREGUIÇA MENTAL!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 08) Reforma, reforma, reforma, privatização. Repitam comigo: reforma, reforma, reforma, privatização. Agora outro. Teto, teto, teto, ou inflação. De novo: teto, teto, teto, ou inflação. Mais um: a dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. A dívida, a dívida, a dívida, crise fiscal. Resumese a isso o debate econômico no Brasil. Não, esqueci desse: a queda de oferta é maior do que a queda da demanda, logo, vai dar inflação. Em algum momento vai dar inflação. Aguardem aí que vai dar inflação. A palavra inflação fica ecoando no ouvido como uma taça tibetana, aquelas usadas para meditar, mais apropriadamente conhecidas em inglês como “singing bowls”. O som que emana delas é o ruído da preguiça mental, aquela névoa densa que caracteriza o debate econômico brasileiro.

Cresceu a produção industrial? É a retomada, a hora das reformas, o momento oportuno para privatizar, o tempo do teto, o desfile dos ajustes para conter a dívida. O problema? O problema é que passam-se os anos, passam-se as décadas, e as conveniências continuam as mesmas, pois impera uma preguiça mental. De nada vale um aumento pontual da produção industrial se o ponto de partida era péssimo. Trata-se daquela velha história: se algo que valia 100 caiu 50% de valor, para que volte a valer o que valia antes o aumento precisa ser de 100% — as condições iniciais importam. De nada vale o aumento da produção industrial em um mês, porque um ponto apenas não estabelece tendência do que quer que seja. Ah, mas a economia reabriu? Falemos sobre a reabertura da economia. Mas tratemos de não ignorar o contexto.

Temos uma epidemia que muitos ainda não entenderam. Como o vírus ataca os pulmões, prevalece a impressão de que a covid é uma doença do trato respiratório. Contudo, o que já se vê nos relatos clínicos e em estudos científicos é outra caracterização do mal que aflige o planeta, e o Brasil em particular. O vírus entra no corpo pelas vias respiratórias superiores, migra para o pulmão, mas também para a corrente sanguínea. Ele tem a capacidade de se ligar ao endotélio, a parede das veias capilares. A rede das veias capilares é a mais extensa e complexa do sistema vascular. Uma vez acoplado ao endotélio, o vírus migra com o fluxo sanguíneo para todos os tecidos e órgãos do corpo. Essa doença que chamamos de covid é, por isso, sistêmica: uma vez no sistema circulatório, o vírus trafega por toda parte. Isso explica por que os sintomas são tão variados. Também explica por que essa doença é tão traiçoeira.

Uma economia em que circula um vírus sistêmico sem qualquer controle é uma economia destroçada, ainda que os efeitos demorem a aparecer. Pois não basta que estejam abertos os estabelecimentos, as fábricas, os bares, os restaurantes. Se a população estiver desprotegida, ou se parte dela for negligente, muitas pessoas adoecerão. Quanto mais doentes, ainda que muitos apresentem sintomas leves, mais sofre a economia. Digo isso levando em conta o que sabemos. Se levarmos em conta o que não sabemos, caberá perguntar: já que o vírus é sistêmico, qual a chance de uma sequela permanente? Qual a chance de invalidez? Quantas pessoas sofrerão de fibrose pulmonar, problemas de coagulação sanguínea, problemas neurológicos? Quantas terão trombose, ou acidentes cardiovasculares? Enfim, quantas pessoas ficarão permanentemente, ou por um período muito longo, dependentes do sistema de saúde? Quantas dessas pessoas terão o SUS como única via? Nessas circunstâncias, como vamos dar os recursos necessários ao SUS? E se algumas pessoas não puderem voltar ao trabalho devido às sequelas da covid? Como haverão de se sustentar? Qual pode vir a ser o impacto de uma epidemia descontrolada na força de trabalho?

Essa lista de perguntas é apenas uma pequena amostra de tudo aquilo que nossos governantes, economistas, gestores de política pública deveriam estar se perguntando e para o que deveriam tentar mapear saídas. Sim, mapear. Respondê-las com qualquer grau de certeza é impossível. Contudo, em vez de perguntar e pensar, muitos de nossos pensadores e executores se entregam à preguiça mental disfarçada por um repeteco constante de mesmices. Se pudesse acrescentar um efeito colateral do vírus, seria esse de ele ter sido capaz de cruzar a barreira hematoencefálica provocando o adormecimento de muitos neurônios por aí.

08 de julho de 2020

ACERTO DE CONTAS!

(Folha de S. Paulo, 06) No quadro de desvalorização da moeda nacional e recessão aguda causada pelo novo coronavírus, a contrapartida é uma transformação radical nas transações do país com o restante do mundo.

As exportações caíram 6,4% no primeiro semestre, ante o mesmo período de 2019, refletindo a redução de atividade nos principais mercados. Estados Unidos, Europa e América Latina, cruciais para o Brasil, compraram muito menos, e as vendas da indústria caíram 15,1% no período.

Mais positivo é o desempenho dos produtos primários, cujas vendas chegaram a US$ 26,2 bilhões de janeiro a junho, alta de 23,8%, graças à demanda da China por itens como minério de ferro e soja.

O gigante asiático ocupa há anos o posto de principal comprador dos produtos brasileiros, e essa importância crescerá agora. A participação chinesa nas exportações deverá aumentar de 28,5% em 2019 para até 35% neste ano.

Ficam ainda mais temerários, nesse cenário, as recorrentes hostilidades ao parceiro vindos da diplomacia do governo Jair Bolsonaro.

A recessão e o real desvalorizado, por sua vez, levaram a uma retração das importações de 5,2% no primeiro semestre, mas a queda deve se acentuar com a menor demanda interna. Com isso, nas estimativas oficiais, a balança comercial encerrará o ano com saldo de US$ 55,4 bilhões, 15,2% acima do obtido em 2019.

Também há mudanças nas transações de serviços com o resto do mundo, tipicamente deficitárias, em razão de menores remessas de lucros e despesas de viagens internacionais. No agregado, as transações com o restante do mundo podem ficar perto do equilíbrio.

Trata-se de alteração substancial ante as projeções que apontavam para déficit anual na casa de US$ 60 bilhões antes da pandemia.

Compensa-se, assim, a continuada saída de investimentos estrangeiros de curto prazo. Com a taxa básica de juros em 2,25%, o Brasil se tornou —ainda bem— menos atrativo para dinheiro especulativo.

Mas com elevadas reservas em moeda forte, de US$ 348 bilhões no final de junho mesmo depois das intervenções no Banco Central nos últimos meses, não há crise de financiamento externo.

Juros baixos no mundo e o ajuste das contas externas sugerem que o país tem algum tempo para retomar reformas e favorecer o crescimento. Mas a situação é frágil e os riscos são maiores agora.

07 de julho de 2020

TEMPOS CONFUSOS!

(Fernando Henrique Cardoso – O Estado de S.Paulo, 05) Tempos confusos os que temos vivido. A tal ponto que estranhamos o que aconteceu no meio da semana: chamou a atenção o fato de o governo não haver arranjado nenhuma confusão nova. Isso depois de, sem se dar ao luxo de explicar melhor ao País as razões, o presidente haver dispensado vários ministros nas pastas da Educação e da Saúde. Pelo menos até a última sexta-feira, quando escrevo este artigo, não demitiu ninguém ou ninguém se sentiu na obrigação de abandonar o Ministério. Nem mesmo se viu o presidente ou seus porta-vozes atribuírem à oposição ou a alguém mais notório o estar “conspirando”. Daí a calmaria.

É assim que vai andando o atual governo, meio de lado. Sem que os “inimigos” façam qualquer coisa de muito espetacular contra ele, é ele próprio que se embaraça com sua sombra. De repente, quando não há nenhum embaraço novo, nenhuma “crise”, o presidente não se contém: fala e cria uma confusão.

É verdade que o governo federal não teve sorte. Não foi ele que criou a pandemia que nos aflige nem a paralisação da economia, que já vinha de antes. Mas a confusão política, desta ele se pode apropriar: foi coisa inventada pelo próprio presidente e seus fanáticos.

Por certo ela se agrava com a crise econômica e a da saúde pública. Mas o mau gerenciamento das crises e da política é o que caracteriza os vaivéns do governo Bolsonaro. No Congresso Nacional e nos tribunais (apesar de tão malfalados nos comícios pelos adeptos presidenciais) tem havido resistências à inação governamental e a suas investidas contra as instituições.

Comecemos pelo que mais importa, a saúde pública e a de cada um de nós. O governo federal desconsiderou os riscos da situação epidêmica no início e, depois, passou o bastão às autoridades locais. Compreende-se que sejam estas, mais perto das populações, a gerenciar o dia a dia. Mas o papel simbólico é sempre, para o bem e para o mal, de quem exerce a Presidência da República, tenha ou não culpa no cartório. Além disso é o que prescreve a Constituição, no seu artigo 23, sobre as competências comuns, entre as quais está a de zelar pela saúde pública, como deixou claro o Supremo Tribunal Federal (STF) em sua decisão a esse respeito.

Da mesma maneira é inacreditável que em tão pouco tempo o governo haja substituído dois ministros na pasta da Educação e que o País ainda não saiba quem será o próximo ministro. Os anteriores o pouco que fizeram foi suficiente para darmos graças por se terem afastado. Mas quem virá? E logo numa área crucial para o País.

Governo que não tem rumo nas principais áreas sociais dificilmente encontrará a lanterna mágica para nos levar a bom porto. Não são apenas pessoas mal escolhidas. É a falta de projetos, de esperança, o que nos sufoca.

Talvez esteja aí a falta maior do presidente: ele fala como qualquer pessoa, o que pode parecer simpático. É um [  ]uomo qualunque[/  ]. Diz o que lhe vem à cabeça, como qualquer mortal. Mas esse é o engano: o papel atribuído pelas pessoas ao presidente, qualquer deles, exige que ele, ou ela, mesmo sendo simples (para não dizer simplório), não pareça ser tão comum na hora de decidir ou de falar ao povo sobre os destinos da Nação.

Em certos momentos muita gente no País pode até apreciar a semelhança entre si e o chefe de Estado. A maioria mesmo: pois não foi ele quem ganhou as eleições? Afinal o presidente, dirão, é uma pessoa como qualquer outra. Mas quando há crises é quando mais se precisa que haja comando, rumo. Talvez por isso os “homens comuns” no poder acabem por ser incomuns, singulares na sua incapacidade de definir um rumo. Quando têm personalidade autoritária, investem e esbravejam contra as instituições democráticas. No Brasil, elas têm respondido bem ao desafio.

Onde iremos parar? Não tenho bola de cristal, mas é melhor parar logo. Se pudesse eu lhe diria: presidente, não fale; ou melhor, pense nas consequências de suas falas, independentemente de suas intenções. Sei que é difícil, afinal eu estava em seu lugar quando houve o “apagão” e também durante algumas crises cambiais. Não adianta espernear: vão dizer que a “culpa” é sua, seja ou não. E, no fundo, é sua mesma. Não se trata de culpa individual, mas política. Quem forma o governo (sob circunstâncias, é claro) é o presidente. A boca também é dele. Logo, queiramos ou não, sempre haverá quem pense que o presidente é responsável. Vox populi, dir-se-á…

É assim em nosso sistema presidencialista. E talvez seja assim nas sociedades contemporâneas. Com a internet as pessoas formam redes, tribos, e saltam as instituições. Por isso é mais necessário do que nunca que haja lideranças. Em nossa cultura e em nosso regime, já de si personalistas, com mais forte razão os líderes exercem um papel simbólico, falam pela comunidade. O líder maior é sempre o presidente, pelo menos enquanto continuar lá. Por isso é tão importante: se não souber falar, se tiver dúvidas, que o presidente se cale. Como nesta última semana.

Melhor, contudo, é que se emende e fale coisas sensatas, que cheguem ao coração e façam sentido na cabeça das pessoas razoáveis.

06 de julho de 2020

CESAR MAIA APROVA 9 EMENDAS AO PL DE 2021!

O vereador Cesar Maia (DEM) aprovou na tarde desta quinta-feira (02/07), durante sessão virtual da Câmara Municipal, nove emendas ao Projeto de Lei do Executivo que estabelece as diretrizes orçamentárias da Prefeitura do Rio de Janeiro (LDO) para o exercício financeiro do ano que vem, 2021.

As propostas garantem verba para a execução de programas que já existiram na Administração Pública durante as suas gestões à frente da Prefeitura.

São elas:

– Expansão do programa Ônibus da Liberdade -transporte gratuito de alunos da rede municipal de ensino, preferencialmente moradores da zona oeste, de casa para a escola e vice-versa;
– Retomada do programa Gari Comunitário -contratação de moradores de comunidades para a limpeza urbana de área onde reside;
– Retomada do Favela-Bairro;
– Implementação de novo Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração dos Servidores da Área de Saúde da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro;
– Retomada do programa de concessão de Carta de Crédito aos servidores municipais visando a compra da casa própria;
– Retomada do programa Remédio em Casa – entrega em domicílio de medicamentos aos diabéticos, hipertensos e pessoas com bronquite asmática crônica atendidos pela Rede Municipal de Saúde;
– Antecipação em forma de pecúnia da licença-prêmio dos servidores municipais em situações prioritárias;
– Transformação da Empresa Municipal de Informática da Cidade do Rio de Janeiro – IplanRio em Autarquia, assim como a Imprensa da Cidade – altera o regime jurídico dos funcionários, que terão seus empregos transformados em cargos, desde que tenham sido admitidos mediante prévia aprovação em concurso público.

Caberá ao Prefeito eleito nas próximas eleições a realização das propostas aprovadas.