Voto da direita

Publicado em 24/10/2009 em Folha de São Paulo

OUTRO DIA , o presidente Lula disse que essa será a primeira eleição em que a direita não terá candidato.

A menos que o voto seja restrito, no melhor estilo do século 19, ela votará e escolherá um dos candidatos. Mas quem são esses eleitores de direita? E o que representam? Há anos que pesquisas vêm estudando esse voto “ideológico”. São duas forma básicas de avaliação.

Uma, clássica, quando se oferece ao eleitor uma régua de 1 a 10 e se indica direita, centro-direita, centro, centro-esquerda e esquerda e se pede que o eleitor se posicione.

Pode-se fazer o mesmo com letras sequenciais do alfabeto ou com outros números sequenciais, para não parecer nota. De qualquer forma, na pesquisa seguinte, inverte-se a ordem -esquerda-direita- e se a compara com a anterior.

Sempre os que marcam direita são em porcentagem maior que os da esquerda. E, se somarmos direita+centro-direita e esquerda+centro-esquerda, a vantagem à direita permanece, um pouco menor.

Quando se cruza com as avaliações de governo ou até intenções de voto, se vê que o eleitor que se diz de esquerda está mais próximo de seu candidato que o de direita, que vota de forma mais pragmática, espalhando mais o voto. O eleitor que se diz de direita, com uma margem de flutuação maior, pode ser enquadrado entre os potencialmente indecisos, devendo ser um alvo prioritário dos candidatos.

Mas a surpresa vem quando se listam temas sempre atribuídos ao pensamento de direita ou de esquerda e se pede ao eleitor que faça sua opção numa tabela de opostos, que vai desde os costumes até o eixo Estado-mercado, procurando facilitar a compreensão do eleitor.

A tabela apresenta uma lista de alternativas. Depois elas são incluídas num gráfico de quatro campos, onde os que defendem o mercado são classificados como de direita, e os que defendem o Estado, de esquerda. E da mesma forma em relação a valores: família, religião, costumes, propriedade, lei… A opção conservadora é listada como de direita; a “liberal”, de esquerda.

Meses antes da última eleição francesa, a Ipsos fez uma ampla pesquisa assim, de forma a definir ideologicamente o eleitor francês sem que ele se autoclassificasse. O resultado não correspondeu a nenhum dos partidos.

O eleitor francês era majoritariamente conservador em relação aos valores e estatizante na economia. Ou seja, era de direita em relação aos valores e de esquerda em relação à economia. Esse era o “partido” majoritário na França.

O GPP repetiu a mesma pesquisa no Brasil. Aqui também, e até em maior proporção, o eleitor é de direita em relação aos valores e de esquerda em relação à economia. Em 2010, quem quiser que recuse o voto da direita.

Chavismo por aqui?

Publicado em 16/10/2009 em Folha de São Paulo

CADA DIA MAIS, políticos brasileiros -ditos- de esquerda perdem a inibição de elogiar Chávez. Um dos elementos da estabilidade política brasileira foi o PT na Presidência da República e o exercício do poder dentro das regras do jogo.

O PT tem dois vetores. De um lado, o sindicalismo, social-liberal por natureza, na dialética empregado-empregador, e pela sólida posição da CUT em sindicatos de bens duráveis de consumo, não estatizáveis. Em crises, reduzem-se os impostos. Do outro lado, a esquerda -dita- de origem revolucionária, que controlou a direção do partido até o “mensalão”, quando caiu, arrastando a anterior. A partir daí, os sindicalistas assumiram a direção do partido.

O comando do PT pelo sindicalismo e a presença hegemônica em postos-chave do governo, do presidente aos fundos de pensão, conselhos do FGTS e do FAT, são um duplo poder. O Bolsa Família caiu como uma luva por sua marca social-liberal de igualação do ponto de partida. Com isso, associa a distância sindicalismo e marginalizados.

Aliás, a transposição de líderes sindicais a dirigentes partidários foi criticada por Lênin em seu “O Que Fazer” (1902). E Marx e Engels nunca integraram os marginalizados ao proletariado e repetiam que o lumpemproletariado era a massa de manobra do capital (“Manifesto”, 1848).

Os poderes, partidário e governamental, assumidos pelos sindicalistas da CUT, do ponto de vista da estabilidade política, não gera riscos, por sua natureza social-liberal. Porém, como forma de sinalizar aos militantes do PT um sentido tático nas ações de governo, usa-se a política externa em relação ao hemisfério Sul. Por sorte, Chávez radicalizou na frente, e a parte visível da política externa brasileira foi a moderação do presidente. Por mais sinais chavistas dados pelo co-chanceler-sul, o Brasil foi empurrado para o centro por Chávez.

Quando Lula indicou uma candidata da -dita- esquerda revolucionária para presidente, criou uma sensação de descontinuidade no caso de vitória. Mas os meses foram mudando essa sensação, e veio um certo alívio. Até a informação de que o coordenador-geral da sua campanha será o co-chanceler-sul, ostensivamente mesclado ao chavismo.

O desdobramento pós-eleitoral dos coordenadores-gerais de campanha é sempre uma posição destacada no governo (Sergio Motta, Dirceu-Palocci). Dessa forma, o que se pode esperar dessa decisão, de proximidade orgânica com o chavismo, é a certeza disso, e desde agora. Uma notícia preocupante para os que têm a democracia como estratégia, e não só como tática.

Atomizar, polarizar

Publicado em 03/10/2009 em Folha de São Paulo

A PEDAGOGIA dos historiadores quase sempre busca uma data para marcar a fronteira entre períodos. O 9/11/1989, a queda do Muro de Berlim, é a data escolhida para o fim da Guerra Fria.

Assim, a política foi se desideologizando e todos caminharam para o centro. A esquerda ficou social-democrata, e a direita, social-liberal, ambas como faces do mesmo centro. O que não impede que se passe de um lado para o outro sem nenhuma cerimônia. Programas de renda mínima (Bolsa Família…), tão caros aos governos à esquerda, são tipicamente social-liberais: buscam igualar o ponto de partida para as iniciativas individuais.

Essa indiferenciação crescente, entre partidos e entre governos, terminou por estimular a atomização partidária. Os EUA são uma exceção, porque, nas primárias, permitem que forças que poderiam ser novos partidos aceitem disputar eleições pré-presidenciais e concordar com seus resultados.

O Uruguai é outra exceção, e pela mesma razão. Até a Alemanha, com um sistema eleitoral feito para eliminar os extremos, hoje é parte dessa atomização, com o crescimento dos pequenos partidos e a criação de mais um, à esquerda.
Com isso, os governos são e serão de coalizão. O Reino Unido conta hoje com três partidos competitivos e um -nacionalista- em ascensão. Isso para não falar da nossa América Latina, onde a atomização é a regra. O Chile adotou um sistema de grandes coalizões, transformando seis partidos em dois blocos, mas está às vésperas de desmontar o seu inteligente sistema binário.

Junto à atomização vem a tecnologia eleitoral, que permite a antipolíticos serem transformados em estrelas a golpes de ilhas de edição.
A performance dos presidentes-estrelas se descola da avaliação de seus governos. Na América Latina é assim em geral, e só há convergência, no inverso, quando o presidente desmancha. Com isso, a oposição só é eficaz personalizando a crítica.

O presidente-estrela, com a atomização, joga todos para dentro do governo, fazendo sua maioria parlamentar. E tanto faz, pois seu governo não afeta sua popularidade. Consolidada a maioria, governa de forma autocrática e provoca a oposição de forma a estimular a máxima polarização. Um dos polos é ele, e nunca seu governo.

Essa é a fórmula. Nas democracias mais avançadas, suavemente. Nas democracias pela metade, de forma descarada, onde, depois da eleição, e já no exercício do poder, o regime se torna autoritário, aberto ou disfarçado. Eliminam-se assim os direitos políticos dos cidadãos.

Em economias mais fortes, como o Brasil, os excessos vêm disfarçados pelos riscos: a resistência é maior. Mas, sublinhe-se: apenas disfarçados.

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200 anos depois

Publicado em 10/10/2009 em Folha de São Paulo

EM 2009 e 2010, comemoram-se os 200 anos da independência das colônias hispânicas. Os atos foram iniciados em julho, na Bolívia, fazendo memória da revolta de La Paz, liderada por Pedro Murillo. E prosseguem em 2010: no México, com o Grito de Dolores, na Argentina, com a Revolução de Maio…

Os processos de independência na América hispânica se deram em duas etapas. Na primeira, com a invasão do exército de Napoleão na península Ibérica, em 1808. Em Portugal, mal durou oito meses e o exército inglês assumiu o controle do país. Dom João permaneceu no Brasil até 1821. Na Espanha, foi até 1812, período no qual o rei Fernando 7º e seu pai, Carlos 4º, permaneceram presos por Napoleão, renunciando à coroa a favor de José Bonaparte.

Com o retorno de Fernando 7º, em 1814, derrubando a constituição liberal das cortes de Cádiz e reinstalando o absolutismo, as Juntas Governativas instaladas nas colônias foram sendo derrubadas e reconstituíram-se os vice-reinados. A exceção foi o Paraguai, totalmente independente desde 1811.
O segundo ciclo de independências, no qual o Brasil se inseriu, se deu a partir das revoluções liberais na Espanha e em Portugal. Na Espanha, a relação com as colônias foi flexibilizada, o que acelerou ações que culminaram em independências definitivas. Em Portugal, com o retorno de d. João 6º e a perda de poder central de seu filho, a independência foi precipitada entre 1822 e 1823 (no Nordeste-Norte).

Essas duas etapas explicam bem as razões da instabilidade política generalizada na América hispânica. Tendo a Independência dos EUA como referência de república, a sua declaração, em 1776, foi, na verdade, um documento de consenso, em que se repetem 19 vezes as expressões “leis” e “Legislativo” e nenhuma vez “presidente”, “chefe” ou “Poder Executivo”. Só sete anos depois veio a independência de fato, e apenas em 1787 a Constituição foi aprovada.

O processo americano estabeleceu amplo consenso entre as partes, e a partir deste é que se construiu a ossatura da Presidência. O poder do rei tinha uma forte base de legitimação, por sua origem divina e associação com a igreja. A transição para a República deveria ter uma densa legitimação para substituir a Coroa. Mas, ao contrário dos EUA, o único consenso se deu em relação à expulsão dos colonizadores. Depois, a luta pelo poder foi aberta durante 150 anos, com um vendaval de constituições, golpes de Estado e guerras civis.

Ao comemorar esses 200 anos, num ciclo de reinvenção do “presidente vitalício” proposto por Bolívar em 1825, não há tema mais relevante do que as bases efetivas da democracia no acesso, exercício e alternância do poder e de suas regras.